| Patrimônio 
              engessado   Carlos Vogt
 I Se 
              se dissesse há alguns anos atrás que o nome do país 
              em que vivemos veio de um recurso genético biopirateado, 
              ou biogrilado, pelos portugueses, no século XVI, às 
              populações indígenas que aqui viviam, poucas 
              pessoas, talvez, se lembrariam, num teste de associação 
              rápida, do pau-brasil e do corante que dele se pretendia 
              extrair, "industrialmente", para concorrer com aquele 
              outro que abastecia, de Sumatra, as tecelagens da Europa.  É 
              que não havia ainda emergido nem a consciência, nem 
              tampouco a nomenclatura que lhe é simultânea, de que, 
              em se tratando de biodiversidade, o que importa, de fato, não 
              são tanto os recursos materiais, em si, mas sobretudo as 
              informações genéticas neles contidas. O Brasil, 
              como se sabe é um dos líderes mundiais em diversidade 
              biológica. O que é muito bom. Tanto pela riqueza da 
              variedade da vida, o que deslumbrou viajantes e estudiosos, desde 
              os primórdios do processo de ocidentalização 
              cultural de nosso território, como pelo interesse comercial 
              que essa mesma variedade despertou desde o início, atraindo 
              aventureiros, exploradores e predadores. O que não é 
              tão bom assim. II De 
              algum modo essa dicotomia de interesses permanece e, agora, já 
              desde há alguns anos, acirrada pelas características 
              próprias do processo de globalização da economia. De 
              fato, a sociedade contemporânea, através de suas formas 
              de produção, tende a enfatizar o processo de mensuração 
              do conhecimento, estabelecendo-lhe valores comerciais, antes difíceis 
              de imaginar. O desenvolvimento 
              da informática e das tecnologias da informação, 
              de um modo geral, não só imprimiu velocidade e simultaneidade 
              a dados, distâncias e acontecimentos em imagens, permitindo 
              uma circulação do capital financeiro internacional, 
              antes também desconhecido, como também trouxe uma 
              concretude e uma materialidade às abstrações 
              simbólicas de nosso universo cultural tal que vai se tornando 
              cada vez mais difícil, para os habitantes - mutantes, talvez 
              fosse mais apropriado dizer - dessas transformações, 
              distinguir o mundo de suas representações e nelas 
              ver-se a si mesmos representados. Certamente, 
              esses movimentos rápidos e fronteiriços das relações 
              do homem com o mundo e nestas, do homem consigo mesmo e com seus 
              (des)semelhantes têm muito a ver com as dificuldades para 
              o estabelecimento de padrões éticos de conduta e de 
              comportamento nas sociedades contemporâneas. Para 
              o conhecimento, como tive oportunidade de escrever em outras ocasiões, 
              alguns desafios se põem, desde logo, no quadro dessa axiomática 
              mundializada: o de sua produção, o de sua circulação 
              e difusão, o de sua transformação em valor 
              econômico, o de sua divulgação, que permite 
              ter medida de sua relevância social, e o de seu valor como 
              fundamento de riqueza cultural, isto é, o de sua gestão 
              com responsabilidade ética e social. No 
              caso da biodiversidade brasileira e do patrimônio genético 
              que ela encerra, esses desafios se apresentam emblemáticos, 
              quer pela complexidade do fenômeno enquanto objeto de estudo 
              de diferentes disciplinas e áreas do conhecimento, numa ponta, 
              quer pelo potencial econômico das informações 
              que dele podem ser extraídas visando inovações 
              tecnológicas de enorme valor agregado e, conseqüentemente, 
              de produtos comerciais fortemente competitivos e lucrativos nos 
              mercados nacionais e internacionais, na outra ponta. III
 O Brasil, há muito, vem se preparando de modo adequado para 
              cumprir as tarefas necessárias à produção 
              da pesquisa e do ensino nessa área do conhecimento e, assim, 
              cumprir com os grandes desafios que lhe são inerentes.
 Instituições 
              foram criadas, projetos foram implantados e desenvolvidos, linhas 
              de financiamento foram estabelecidas com sistemática regularidade, 
              pesquisadores foram formados, multiplicando nossa competência 
              de estudo e de conhecimento, e programas ambiciosos, pioneiros e 
              consistentes, como o Biota, da Fapesp, acabaram resultando, de forma 
              feliz, desse esforço cultural paradigmático na América 
              Latina. Mas 
              se o país se preparou academicamente e produziu resultados 
              de reconhecida qualidade científica, o mesmo não ocorreu 
              com o ritmo de desenvolvimento de nossa capacidade de transformação 
              desse conhecimento em riqueza. Depois 
              que o Brasil passou, em 1994, a ser signatário do TRIPs (Trade-Related 
              Intellectual Property Rights) incluindo-se, assim, no concerto das 
              nações comprometidas com o reconhecimento e o respeito 
              das regras e normas internacionais que regem a propriedade intelectual 
              e as patentes, esse desequilíbrio entre as ciências 
              e as tecnologias da biodiversidade tornou-se ainda mais dramático. 
              De um lado, pela falta de cultura e de estrutura próprias 
              da pesquisa voltada para aplicação com fins industriais 
              e comerciais e, de outro, pela necessidade, tornada, então, 
              ainda mais urgente, de legislar com competência, eficiência 
              e eficácia para proteger o rico patrimônio genético 
              do país. No 
              primeiro caso, esforços têm sido feitos e avanços 
              já podem ser reconhecidos, embora o país seja ainda 
              muito pouco competitivo, por exemplo, na indústria de fármacos, 
              para a qual a nossa rica biodiversidade poderia ser uma fonte de 
              riqueza econômica e social ímpar no mundo. Aquilo 
              que não temos conseguido nós próprios fazermos 
              é, contudo, objeto da avidez inovativa dos mercados e, como 
              temos hoje legislação específica para a proteção 
              desse patrimônio, o fenômeno da biopirataria, ou da 
              biogrilagem, como prefere Nuno Pires de Carvalho, chefe da seção 
              de Recursos Genéticos, Biotecnologia e Conhecimentos Tradicionais 
              Associados, da Organização Mundial da Propriedade 
              Intelectual (OMPI), em Genebra, corre solto. Isto 
              é, corre preso, às vezes, como no caso dos "turistas 
              alemães" Tino Hummel e Dirk Reinecke detidos no aeroporto 
              de Manaus quando tentavam levar para Bancoc, na Tailândia, 
              matrizes de vários peixes ornamentais, de comercialização 
              proibida, em caixas de isopor, cobertas com um papel alumínio 
              especial, num total de 280 peixes de 18 espécies diferentes. Esses 
              são os que foram pegos, mas há centenas que escapam 
              e, ao fazê-lo, movimentam cerca de US$ 1 bilhão no 
              país, deixando a ver navios ou a ver aviões, o país 
              e inclusive as comunidades indígenas e as populações 
              tradicionais que pela legislação teriam direito de 
              participação nas patentes derivadas dos estudos e 
              pesquisas desse patrimônio, se elas existissem e se os seus 
              registros fossem feitos respeitando esses direitos. IV Para 
              coibir a biopirataria ou a biogrilagem, as autoridades governamentais 
              responsáveis tomaram Medidas Provisórias que, no espírito 
              da cultura política paradoxal do país, vão 
              permanecendo: o decreto 3945, de 28 de setembro de 2001 as consubstancia 
              e a resolução 001, de 8 de julho de 2002 do Conselho 
              de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), as 
              reafirma. A intenção 
              é proteger o patrimônio genético nacional, regular 
              a exploração dos recursos biológicos, fiscalizar 
              a bioprospecção e, desse modo, oferecer condições 
              reais para a justa distribuição dos benefícios 
              advindos desses processos. Acontece, 
              porém, aqui, aquilo que, pelo vértice do paradoxo, 
              costuma acontecer com as boas intenções reguladoras 
              de muitos atos governamentais e legislativos: para impedir o pior, 
              mata-se também o bom, por via das dúvidas. Em 
              outras palavras, como no caso das Agências Reguladoras, e 
              da própria CTNBio - Comissão Técnica Nacional 
              de Biossegurança - que o governo atual parece pretender extinguir, 
              ou esvaziar, menos por seus defeitos e mais por suas virtudes, também 
              no caso da nossa biodiversidade, a força protetora da legislação, 
              é tão poderosa que antes de impedir a sua exploração 
              clandestina, sufoca a possibilidade de seu conhecimento pelos cientistas 
              brasileiros. Para 
              impedir o saque, a medida engessou a pesquisa. Daí o dramático 
              paradoxo que levou inclusive os pesquisadores do Programa Biota 
              Fapesp, reunidos na Universidade Federal de São Carlos para 
              o I Workshop de Síntese do Programa, a encaminhar no dia 
              26/10/2002 ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético 
              (CGEN) uma moção de apelo ao novo governo no sentido 
              de reconhecer, modificando no texto da legislação 
              a redação necessária, a acaciana, mas estratégica 
              e metodologicamente fundamental, distinção entre ciência 
              básica e as tecnologias de sua eventual transformação 
              em inovação e produtos de valor comercial. No 
              momento em que as autoridades constituídas do país 
              parecem mover-se por um explícito desejo de mudança 
              e de aperfeiçoamento de nossas instituições 
              democráticas, respondendo legal e legitimamente a aspirações 
              profundas e justas da população, é preciso 
              incluir, com ênfase, entre os pontos de pauta dessas mudanças 
              necessárias e desejadas, o urgente desengessamento da ciência 
              e da pesquisa no Brasil.  
              
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