| Escravidão 
              genética: o dever de ser bem sucedidopor determinação de outrem
 Paulo 
              José Leite Farias  No 
              filme americano Gattaca, descreve-se a situação de 
              um ser humano "geneticamente imperfeito", por ter sido 
              concebido pelo "método natural" assexuado da união 
              dos espermatozóides de seu pai e do óvulo de sua mãe 
              sem manipulação genética, que luta contra o 
              seu "destino" genético e consegue alcançar 
              o sonho de ser astronauta. 
  O nome Gattaca, sigla das primeiras letras de nucleotídeos 
              do DNA (Guanina, Adenina Timina e Citosina), condiz com a discussão 
              travada no filme a respeito do destino de uma pessoa poder ser determinado, 
              ou marcadamente influenciado, pela sua composição 
              genética.
 Elisabeth 
              Beck-Gernsheim descreve, de modo claro, como se dá o processo 
              de convencimento da opinião pública, das novas técnicas 
              de genética: no início, a indignação 
              moral para, no fim, ocorrer a aceitação. A despreocupação 
              da humanidade com a ética, com a presença de relativismo, 
              mostra-se cada vez mais marcante na sociedade contemporânea. Gattaca 
              apresenta excelente metáfora para a discussão relativa 
              à comercialização das técnicas de manipulação 
              genética que garantiriam uma vida "tranqüila" 
              e "bem sucedida" para o ser geneticamente perfeito. No 
              filme, os pais de Jerome, personagem principal já descrito, 
              após comprovarem as imperfeições do método 
              natural, optam por uma segunda gestação oriunda da 
              manipulação genética na qual geram com auxílio 
              da engenharia genética Eugene (em uma interpretação 
              simplista "bom genes"). As novas ofertas de técnicas 
              de reprodução, tal como a clonagem e a manipulação 
              genética parecem ir ao encontro do interesse dos compradores, 
              sendo de tal forma relevante esse interesse que, com o passar do 
              tempo, a preocupação moral empalidece. O direito de 
              ter um filho, menos problemático, parece sobrepor-se a critérios 
              morais, mesmo utilitários como o de que o custo-benefício 
              da concepção desse ser perfeito poderá não 
              ser favorável a essa escolha e que não há a 
              garantia de que o ser gerado terá vida bem sucedida e tranqüila.. O patrimônio 
              genético de um recém-nascido parece ser, indevidamente, 
              compreendido como destino inexorável que determinará 
              o fracasso ou o sucesso da pessoa. A vida da pessoa apresenta-se, 
              nessa visão pré-determinada. Habermas destaca que 
              a ambigüidade gramatical da questão ética fundamental 
              de "quem somos e quem queremos ser", explica-se pelo fato 
              de que nós já somos alguém em um determinado 
              momento, no tempo e no espaço. Somos 
              responsáveis pelo próprio destino e pelas próprias 
              ações, que não são meramente fruto da 
              nossa carga genética. A diferença científica 
              entre genótipo e fenótipo ressalta, bem, o aspecto 
              de que o homem interage com ações externas que o acabam 
              moldando; não há determinismo darwiniano de que o 
              geneticamente mais capaz terá melhores condições 
              de sobrevivência. No 
              filme em análise, por exemplo, há significativo momento 
              em que Jerome e Eugene, dois irmãos, um com genes naturais 
              e o outro com genes previamente programados, resolvem participar 
              de uma competição no mar para aferir qual dos dois 
              seria o mais exímio nadador. Apesar da "carga genética 
              desfavorável ", Jerome vence a competição, 
              movido pela vontade de superar-se, enquanto Eugene perde em face 
              do não controle pela vontade do medo de ser inferior, quando 
              o destino já lhe teria assegurado a superioridade. Eugene 
              tinha-se tornado escravo do seu patrimônio genético 
              como se só ele determinasse a vida. Nesse aspecto, a manipulação 
              genética comercial apresenta-se, também, condenável 
              por apresentar propaganda enganosa e escravizar a pessoa humana 
              ao patrimônio genético, escolhido de forma predeterminada 
              com base na vontade de outra pessoa. Juridicamente, 
              a propaganda enganosa, considerada desvalor pelo ordenamento jurídico, 
              enquadra-se como delito no Código de Defesa do Consumidor 
              (arts. 67 e 68):  
              ART. 
                67 - Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria 
                saber ser enganosa ou abusiva:Pena - Detenção de três meses a um ano e multa.
 ART. 68 - Fazer ou promover publicidade que sabe ou 
                deveria saber ser capaz de induzir o consumidor a se comportar 
                de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou 
                segurança:
 Pena - Detenção de seis meses a dois anos e multa.
 A 
              escravidão da pessoa humana, vivida de forma existencial 
              por Eugene, é destacada por Habermas, ao afirmar que:  
               "Escravidão 
                é uma relação jurídica e significa 
                que uma pessoa dispõe de uma outra como da sua propriedade. 
                Portanto, ela é incompatível com os conceitos constitucionais 
                vigentes hoje em dia de direitos humanos e de dignidade humana"1 Relacionado 
              a esse aspecto, devem-se colacionar, nesse momento, as indagações 
              às pessoas sobre qual a diferença entre um clone e 
              gêmeos unvitelinos. A escravidão de vincular-se o patrimônio 
              genético à escolha pré-determinada de outra 
              pessoa constitui, filosoficamente, a principal diferença. 
              O problema da clonagem não é a semelhança das 
              partes provenientes de uma mesma célula; essa semelhança 
              inclusive poderá deixar de existir com a diferença 
              já mencionada entre genótipo e fenótipo. O 
              ponto crucial jurídico-filosófico prende-se à 
              subjugação do patrimônio genético de 
              uma pessoa a outra. Habermas, 
              no mesmo diapasão, afirma: 
               "No 
                caso do procriador, que se arvora em senhor dos genes de um outro, 
                essa reciprocidade (de respeito a autonomia de cada um ter o seu 
                patrimônio genético aleatório) fundamental 
                encontra-se suspendida".2 Outro 
              aspecto fundamental do paralelo da manipulação genética 
              com a escravidão, constitui-se na circunstância da 
              impossibilidade de "lei áurea" para revogação 
              da escravidão genética. O código genético 
              é irrevogável; não no aspecto da conduta da 
              pessoa, como visto, mas na atribuição de um direito 
              de personalidade indelével a determinado indivíduo. 
               Por 
              fim, de forma jocosa, afirme-se que o máximo do narcisismo 
              é a clonagem de si próprio. Aqueles que almejam que 
              o seu programa genético seja duplicado, agem com vaidade 
              de julgarem-se perfeitos, a tal ponto que estariam ajudando a Natureza 
              a duplicar essa criatura incomparável! Notas:1. 
              Habermas, Jürgen. "Fronteiras morais dos progressos da 
              medicina da reprodução". In A constelação 
              pós-nacional: ensaios políticos. Trad. Márcio 
              Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, p. 209-211, 2001, 
              p. 210.
 2. Habermas, op. cit., p. 211.
 
 Paulo 
              José Leite Farias é doutorando em Direito pela UFPE, 
              mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília, 
              professor da FESMPDFT, Promotor de Justiça do MPDFT. 
              
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