Angra 2
 

A visão científica sobre a energia nuclear

Perguntamos a duas das maiores autoridades sobre energia nuclear no Brasil, os físicos José Goldemberg e Rogério Cézar Cerqueira Leite, a sua opinião sobre algumas questões centrais envolvendo o tema. Leia as respostas:

1. A energia nuclear é indispensável no país?
José Goldemberg - Energia nuclear para a produção de eletricidade não é indispensável para o País. Ela é útil contudo na área de aplicações médicas e industriais mas para isso os reatores nucleares de pesquisa (de baixa potência) são suficientes
Rogério Cerqueira Leite - A energia nuclear é uma forma primária de energia que só pode ser aproveitada, dentro dos limites atuais da tecnologia, se transformada em eletricidade que por sua vez deverá ser transformada em outra forma de energia aproveitável para a humanidade, tais como calor, energia mecânica, luz. Ela compete, portanto, com outras formas de energia primária para a produção de eletricidade (eletricidade é apenas um vetor, um meio de transporte de energia). Para decidirmos se precisamos ou não de energia nuclear devemos compará-la com outras formas de energia primária que também servem para produzir eletricidade, sob aspectos diversos tais como econômico, segurança, ecológico, sociológico, etc. Para complicar a questão, praticamente qualquer forma de energia natural dispõe de tecnologias confiáveis para transformação em eletricidade. São concorrentes da energia nuclear, sob este aspecto limitado, o petróleo, a biomassa, o carvão, o gás natural (energias químicas), os recursos hídricos, ventos, marés (energias mecânicas), a luz solar (energia luminosa) etc. Entre estes, os concorrentes tradicionais da energia nuclear são o carvão, o petróleo, o gás natural e a hídrica. Os Estados Unidos abandonaram a opção nuclear não apenas por causa dos custos, mas também porque dispõem de carvão em abundância. O carvão é mais seguro, mas questões de poluição ainda permanecem, embora o progresso recente, sob este aspecto, seja significativo. A Alemanha abandonou, recentemente, e pela segunda vez, a energia nuclear não somente pelos custos imprevisíveis dos processos de decomissionamento e armazenamento do lixo radioativo, mas também por apreensão quanto à questão de segurança. Sob nenhum aspecto parece que para o Brasil deva ser a energia nuclear preferível. Em primeiro lugar sob o aspecto financeiro. Ela é mais cara que qualquer outra tanto para grandes blocos de eletricidade, quanto para geração localizada. Esta afirmativa se torna inquestionável quando consideramos os custos de decomissionamento e de disposição dos rejeitos.

2. Quais as alternativas energéticas do país?
Goldemberg - As alternativas tradicionais são a energia hidroelétrica e a produção de eletricidade a partir de usinas termoelétricas a gás. Não há problemas de abastecimento no Brasil mas problemas de planejamento. Na pior das hipóteses poderá ser importada energia da Argentina. O uso das outras alternativas (vento, fotovoltaicas e biomassa) ainda são incipientes no País mas poderiam representar um maior papel.
Cerqueira Leite - Hoje parece evidente que muitas fontes de energia primária deveriam colaborar para suprir as necessidades nacionais de produção de eletricidade, embora também seja evidente que por muito tempo esta necessidade ainda continue a ser suprida pelo abundante potencial hídrico ainda disponível. A opção da atual administração para compensar o problema de geração concentrada em pontos distantes das zonas de consumo foi a adoção do gás natural. Esta opção, ao contrário da energia nuclear, tem custos de investimentos baixos, mas custos de produção elevados. É, portanto, uma escolha oportunista, pois produzirá energia elétrica a custos muito mais elevados que os atuais. Todavia, o gás natural é pouco poluente em comparação ao petróleo e ao carvão e não é mais caro que estas duas últimas alternativas. O problema é que as reservas medidas e inferidas do único fornecedor seguro, a Bolívia, são muito limitadas, o que transforma em risco econômico elevado esta opção. Uma revisão das verdadeiras potencialidades do sistema hidrológico nacional é fundamental. Outras fontes como a eólica, a solar e a biomassa (principalmente bagaço da cana) são quantitativamente limitadas, mas podem também concorrer parcialmente, pois são economicamente competitivas com a nuclear e menos poluentes.

3. Numa escala de riscos humano e ambiental, quais as fontes energéticas mais e menos seguras?
Goldemberg - Todas as fontes de energia tem problemas ambientais e ameaças de riscos a seres humanos mas uma possível ordenação na ordem crescente de problemas é: energia hidroelética energia termoelétrica gerada pela queima de madeira energia termoelétrica a gás energia termoelétrica a carvão ou petróleo energia nuclear
Cerqueira Leite - Não há produção de energia que não signifique uma intervenção no meio ambiente. A captação de energia solar evoluiu e a ocupação de grandes áreas que deixam de receber o Sol é significativa. Esta sombra é uma forma de poluição. Mas esta seria a forma menos poluente que podemos imaginar. Em segundo lugar, temos a energia eólica cujo maior mal é uma redistribuição de ventos o que, portanto, se usada em larga escala, pode intervir em micro climas. Mas solar e eólica são opções absolutamente seguras. A hidroeletricidade tem como maior inconveniente a necessidade de represamento freqüente alterando o ecossistema local. Às vezes, essas alterações são benéficas mas frequentemente provocam mudanças violentas no sistema. São, entretanto, contornáveis esses danos, se houver um planejamento adequado para toda a bacia hidrológica e percepção da questão ambiental. Qualquer opção que envolva combustível fóssil resultará em aumento do efeito estufa. Por unidade de massa de gás carbônico emitido por unidade de energia produzida o carvão será pior que o petróleo, que, por sua vez, é pior que o gás natural. Quanto à poluição local devido à contaminação do combustível por enxofre e outros poluentes, a hierarquia é a mesma. A biomassa é muito menos poluente pois não contribui para o efeito estufa e emite menores índices de poluentes químicos. Quanto à segurança, as formas tradicionais e alternativas (fósseis, hídrica, biomassa, solar) de conversão para eletricidade são equivalentes e satisfatórias. A ocorrência de acidentes é comparável a qualquer outra das formas de utilização de máquinas convencionais, e depende apenas dos cuidados costumeiros na operação. É sob este aspecto que a energia nuclear difere das demais, pois as consequências são catastróficas, embora muitos especialistas acreditem que a probabilidade de acidente seja baixa. Basta um Chernobyl, qualquer que tenha sido a sua causa, para condenarmos a energia nuclear definitivamente. É claro que se houver ameaça de extinção da humanidade por falta de energia, ou de sofrimento comparável àquele provocado pelo acidente de Chernobyl, então deveríamos assumir o risco.

4. Anunciada a desativação do programa energético nuclear na Alemanha, isso pode ter alguma influência no Brasil dado que aqui foi adotado o sistema alemão?
Goldemberg - Sim porque as usinas nucleares brasileiras (Angra 2 e 3) foram produzidas na Alemanha. Com a desativação gradual da indústria nuclear alemã haverá dentro de alguns anos problemas em obter peças e equipamentos de substituição. É o mesmo que ocorre quando se compra um carro cuja linha de produção foi desativada pela fábrica que o produziu.
Cerqueira Leite - É pouco provável que a desativação do programa nuclear alemão afete tecnicamente a operação de Angra. Devemos lembrar, no entretanto, que o histórico de usinas nucleares que tiveram sua construção interrompida por tanto tempo quanto Angra, é muito ruim. Jamais operaram adequadamente, como aliás já vem ocorrendo com Angra 1 que também teve atrasos, embora não tão longos quanto os de Angra 2.

5. Do ponto de vista econômico é possível recuperar os investimentos feitos em Angra2 até agora?
Goldemberg
- Não. Grande parte do custo foi absorvido pelo Tesouro, incluindo juros. A única coisa que é possível recuperar é o custo de operação.
Cerqueira Leite - Os investimentos feitos em Angra 2 (6 bilhões de dólares) dificilmente seriam recuperados nos 20 ou 25 anos de vida que têm, em média, reatores deste porte. Mas o faturamento talvez seja suficiente para pagar o decomissionamento do sistema e o tratamento do lixo nuclear.

6. O Brasil tem efetivamente o domínio de todo o ciclo?
Goldemberg - Não inteiramente porque as usinas de enriquecimento não atingiram ainda plena escala industrial.
Cerqueira Leite - O ciclo do combustível se constitui de 3 etapas, além da extração e da concentração do urânio. A primeira etapa que é aquela referente ao enriquecimento do urânio foi dominada a nível de planta piloto mas arrisca ser perdida por falta de continuidade das pesquisas. A segunda etapa, a construção de reatores, foi interrompida ainda em nível laboratorial. Decididamente, não detemos a tecnologia de produção de reatores. A terceira fase do ciclo é constituída dos processos de tratamento do combustível usado e recuperação do urânio, do plutônio e de outros derivados economicamente interessantes. Não chegamos sequer a tentar dominá-lo, exceto por algumas iniciativas extemporâneas esparsas e sem resultados tecnológicos e econômicos aceitáveis.

7. Se fossem desativadas Angra1 e Angra2 que conseqüências isso traria para o país?
Goldemberg
- Poucas, juntas elas fornecem menos de 3% de eletricidade do País e um melhor planejamento da Eletrobras poderia suprir sua falta.
Cerqueira Leite - Angra 2 ainda não entrou em operação e Angra 1 não é confiável. Resta a promessa futura de uma participação no sistema elétrico nacional que seria de uns 3% em potencial instalado. Se um dia vierem a funcionar.

8. A questão da energia nuclear tem um demônio intrínseco ou é mais uma questão de gerenciamento e gestão do sistema com normas de segurança eficazes?
Goldemberg
- Energia nuclear tem 3 demônios intrínsecos: riscos de acidentes de grande vulto como Chernobyl, o problema do armazenamento do lixo radioativo e os problemas referentes à proliferação de produtos que podem permitir a produção de armas nucleares.
Cerqueira Leite - Gerenciamento e normas, além de instrução adequada e consciência são fatores que podem enjaular o demônio. Mas qualquer negligência, ou erro humano pode liberá-lo, e os operadores são humanos. Às vezes até as máquinas se comportam como os humanos e se enganam. O risco sempre existirá, como em qualquer outra atividade humana por maior que seja a automatização e por melhores que venham a ser os mecanismos de salvaguarda.

   
           
     

Esta reportagem tem
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10,
11
, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19 documentos
Bibliografia | Créditos

   
     
   
     

 

   
     

Atualizado em 10/08/2000

   
     

http://www.comciencia.br
comciencia@epub.org.br

© 2000
SBPC/Labjor
Brasil