Entre a obsolescência programada e a eternidade transumanista

Por Marta Kanashiro

Vocês que vivem seguros em suas cálidas casas, vocês que, voltando à noite, encontram comida quente e rostos amigos, pensem bem se isto é um homem que trabalha no meio do barro, que não conhece paz, que luta por um pedaço de pão, que morre por um sim ou por um não. (É isto um homem?, Primo Levi) (1)

A obsolescência programada, expressão que compõe o título deste artigo, está voltada para o universo da produção de bens de consumo de curta vida útil, ocasionando um número maior de compras desses produtos por parte dos consumidores. Como eixo central de um projeto para estimular consumo e produção, essa perspectiva surgiu em 1932, com o artigo escrito pelo investidor imobiliário Bernard London, sob o título “O fim da depressão através da obsolescência programada” (2).

Na década de 30, London buscava uma estratégia para superar a crise econômica de 1929 e provavelmente não imaginava que quase um século depois a ideia estaria não apenas vigente, mas em pleno funcionamento como modo corrente de produção e consumo, causando graves problemas como a geração de lixo, o desperdício de recursos e impactos muito negativos sobre o meio ambiente e a saúde (3). Em parte, talvez já estivéssemos diante do que muito mais tarde Naomi Klein (4) chamou de doutrina do choque, referindo-se a soluções implementadas em meio às crises ou desastres, que se tornam duradouras e compõem a expansão de modos de funcionamento do capitalismo.

Vinte e quatro anos depois da proposta de Bernard London, o filósofo Günther Anders (5) estava atento à centralidade do consumo e à velocidade de transformação dos produtos que o humano fabricava. Esse processo visto por Anders resultava na incapacidade de estarmos atualizados com aquilo que produzíamos ou naquilo que ele denominou como uma das diferenças que compõem o desnível prometeico. “Além da diferença considerada pelo marxismo”, nos diz Anders, “há o desnível entre fazer e imaginar, entre agir e sentir, entre ciência e consciência e, enfim, e principalmente, entre o instrumento fabricado e o corpo humano, que não é feito com a mesma medida do corpo do instrumento”. A partir dessa assincronização, Anders conecta a velocidade de transformação daquilo que produzimos com uma incapacidade de pensar consequências, afinal, quando imaginar vem depois de fazer, o ser humano é capaz de fabricar uma bomba de hidrogênio sem antever os resultados. Guiado pela noção moderna de progresso, o desenvolvimento constrói-se, para este autor, junto com a cegueira para o apocalipse. Assim, dentre as questões fundamentais exploradas pelo filósofo e que atravessam os temas da técnica, da velocidade e do consumo está o nazismo e a capacidade humana de aniquilar a humanidade.

Para Anders, o humano segue a reboque da velocidade de transformação daquilo que ele mesmo produz, num ritmo ao qual se deve adequar mas que excede a sua condição humana, colocando em questão seus próprios limites ou, no caso da bomba, a sua própria existência. Como aquele que se adéqua ao que é produzido, o humano se torna produto, parte ou engrenagem de um conjunto maior, mas integrando-o a partir da percepção de ser o humano o “humilhadíssimo retardatário”.

É com essa sequência que vai da obsolescência programada de London ao humano antiquado e humilhado de Anders, portador de uma vergonha prometeica, que é possível começar a vislumbrar elementos e contornos de um modo de pensar que cria condições de possibilidade para a extrapolação ou melhoramento do humano, tal como pretende o transumanismo. Se com Anders vemos emergir a obsolescência do humano, com o transumanismo pode-se ver como essa é também uma forma de obsolescência programada.

Ainda que essa trajetória pudesse ser traçada a partir de muitos outros autores, passar de Bernard London à Günther Anders permite destacar alguns elementos singulares. Em primeiro, a produção como parte de um circuito simultaneamente marcado pela velocidade, pela descartabilidade e pela sensação de insuficiência, seja dos produtos que nunca chegam a adquirir durabilidade, seja do humano que nunca está atualizado diante daquilo que produz. Insuficiência e descartabilidade são dois aspectos importantes que serão retomados logo adiante e que requerem destaque a esta altura do artigo pela sua conexão na atualidade com o esgotamento dos recursos planetários, da saúde humana, animal e ambiental, em suma, com processos de destruição da vida e das condições de sua reprodução em todas as suas dimensões.

Outro ponto importante que pode ser pensado a partir de Anders é que se por um lado podemos ver em seu trabalho uma espécie de incapacidade de agência ou de resistência do humano diante da tecnologia por ele criada, também podemos ver o produto da criação ou da agência humana entrar numa relação circular ou de retroalimentação que coloca em cheque o próprio humano e sua capacidade de imaginar, movimento este que se não é impeditivo de futuras transformações que escapem a esse loop, ao menos cria muitos entraves. Colocar a situação nesses termos se relaciona  com um recurso que Anders chamou de “exageração” com vistas a, por um lado, estar de acordo com os exageros do próprio desenvolvimento tecnológico e, por outro, instigar a olhar a trajetória que está sendo trilhada, aonde há metamorfoses em andamento. Assim, talvez diga menos sobre incapacidade de agência e mais sobre o tamanho do problema e a quantidade de empenho necessário para a criação de possibilidades novas que rompam com esse circuito.

Enquanto Günther Anders, em 1956, expunha de forma provocativa a obsolescência do humano em termos de uma revisão da nossa incapacidade de imaginar e de questionar o aniquilamento da humanidade, o biólogo Julian Huxley (em 1957) cunhava o termo transumanismo em seu ensaio “New bottles for new wine” (6). Ainda que o termo apareça pela primeira vez com Huxley, as ideias do transumanismo visando o aperfeiçoamento do humano já transitavam desde a década de 1920, sendo que alguns autores veem, nesse período, possíveis aproximações do transumanismo com o pensamento eugenista.

Desde então, muitos diferentes grupos têm desenvolvido ciência e tecnologia mirando o “humano aumentado”, “ampliado”, “melhorado” (ou simplesmente h+) seja em seu desempenho físico ou mental, ou na superação de “problemas” humanos como o envelhecimento e a morte. É nesse sentido que alguns transumanistas compreendem que o humano (se ainda puder ser chamado assim) que resultará desse processo será enfim o próximo passo da nossa escala evolutiva. Na atualidade, a vertiginosa aceleração tecnológica que pode levar ao h+ é especialmente atravessada pela convergência de, pelo menos, quatro áreas, conhecidas pela sigla em inglês NBIC: nanotecnologia, biotecnologia, tecnologias da informação e ciências cognitivas, as quais provavelmente Elon Musk acrescentaria aquelas que podem possibilitar viagens espaciais.

As grandes empresas de tecnologia, em sua maioria localizadas no Vale do Silício (Califórnia), abrigam muitos entusiastas do transumanismo, incluindo os singularistas que preveem que o crescimento exponencial dessas tecnologias alcançará de forma súbita um ponto de não retorno, mudando por completo o ser humano, provavelmente atingindo um formato que enfim tenha superado a morte e o envelhecimento. Eis a eternidade transumanista superando as condições humanas.

Como indiquei anteriormente, em um texto (7) de 2008, ainda que previsões como essa não sejam certeiras, importa menos o acerto do que o projeto que se cria ao enunciá-las. Nesse sentido, é para o que se produz na atualidade que se deve deslocar a observação, a ponto de compreendermos que previsões podem ser um guia para colonizar o futuro, em especial considerando que são realizados vultuosos investimentos para que o futuro tenha o sentido e a direção que correspondam ao que se previu. Com o transumanismo “vem à tona uma série de projetistas como Irving John Good, Marvin Minsky, Vernor Vinge, Hans Moravec, e até Craig Venter, todas as suas empresas, patentes, financiamentos, debates, disputas e apostas no futuro a ser colonizado”. A obsolescência do humano aqui é programada como parte de um projeto bastante específico de futuro.

Para continuar deslocando a observação para o que é produzido no presente também é necessário desconectar a recorrente aproximação dessa perspectiva de um universo ficcional. Quando dizemos que com o transumanismo o limite humano estará rompido, extrapolado, e que não será mais tal qual o conhecemos, as imagens da ficção científica parecem chegar mais rápido às mentes do que aquilo que talvez esteja muito mais próximo de todos nós. Aliás, esse é o motivo pelo qual busquei não mencionar neste texto nenhum dos feitos prometidos e relativos à inteligência artificial ou qualquer outro tema vinculado a essa aceleração tecnológica. Enquanto ocupamos a nossa capacidade de imaginar com a fascinação pela tecnologia ou com a atribuição de descrédito ao transumanismo pelo seu caráter fantasioso e ficcional, deixamos de avaliar a concretude dessas propostas hoje e a produtividade desse projeto que, em andamento, já imprime efeitos na realidade cotidiana.

Esse deslocamento requer ainda que se note alguns pontos que recentemente indiquei no prefácio da tradução brasileira do livro Robôs fazem amor? (8). Em primeiro lugar é preciso constatar que as grandes empresas de tecnologia que sustentam e incentivam o projeto transumanista têm uma inigualável possibilidade de influência sobre governos e sobre o futuro por reunirem mais informação do que muitos Estados Nacionais e por somarem juntas mais do que o Produto Interno Bruto da maior parte dos países do planeta. Em segundo é necessário sublinhar fortemente que transumanistas como Alexandre Laurent e muitos outros reduzem algumas questões políticas a um erro inerentemente humano, ligado às emoções humanas, destacando que esse é um defeito que as máquinas não possuem (9). Essa perspectiva deixa entrever “os desejos cibernéticos de expulsão do humano recaindo sobre a negação das possibilidades da linguagem humana, da filosofia, das artes, da partilha do sensível (10), assim como, das capacidades humanas de negociar, argumentar, deliberar e fazer política”. Ainda neste prefácio, destaco que Laurent indica claramente que “uma política cibernética ou de inteligência artificial, que atua puramente como gestão e cálculo, dentro de uma lógica computacional binária de erro e acerto, já está em elaboração, especialmente conduzida pelas empresas que compõem a sigla GAFAM (Google, Apple, Facebook, Microsoft). É dessa forma que o transumanismo flerta com uma perspectiva reduzida da noção de política, e que traz como constituinte um alto potencial totalitário.” (8)

Além desses aspectos, observar o transumanismo em suas produções mais atuais exige que se observe como esse modo de pensamento é atravessado pela noção de insuficiência e descartabilidade anteriormente anunciadas neste artigo. Na lógica da aceleração tecnológica a insuficiência humana (ou aquilo que nos faz tão humanos) transforma-se em falha e erro e a descartabilidade de produtos incide sobre o humano como produto, enfim sobre a própria vida. Atingimos assim uma ampliação sem precedentes da vergonha prometeica apontada por Günther Anders, que caminha pari passu com processos de destruição da vida e das condições de sua manutenção e reprodução.

Assim, olhar para o presente produzido pelo transumanismo significa não aderir a uma crítica comum a esse pensamento que indica os futuros processos de exclusão de boa parte das pessoas que não terão acesso às possibilidades de melhorias na saúde humana, na ampliação de capacidades físicas e mentais, na extensão da vida, ou do alcance da eternidade tecnoprometida por esse projeto. Ainda que esta crítica seja válida, especialmente por questionar a quem se destina essa aceleração tecnológica, para o deslocamento para a produção presente do transumanismo importa menos que pessoas não poderão usufruir das benesses do melhoramento do humano, e mais que insuficiência e a descartabilidade já estão em andamento enquanto esse futuro é produzido.

A aceleração tecnológica transumanista cada vez mais estimulada por esse modo de pensamento tem nas pontas desse processo a mineração, o esgotamento de recursos, o trabalho escravo, a poluição ambiental e é, portanto, olhando para o presente que encontramos as vidas precárias (11) e os aspectos necropolíticos (12), ou as políticas de morte e lutos invisibilizados, todos entranhados em seu funcionamento. Deleuze (13) ao apontar a crise das instituições, antevista por Michel Foucault, com sistemas abertos substituindo os fechados, nos permite no atual contexto ressituar os espaços de extermínio (de que nos fala Primo Levi) para os lugares a céu aberto, às vistas de todos. Imagens aliás que têm povoado os jornais de forma aterradora, intensa e constante.

Certamente as políticas de extermínio incidem de maneira mais constante, contundente e aberta onde vidas e populações são consideradas descartáveis de forma estrutural e que coincidem muitas vezes com os lugares de intensa extração de recursos (14). Isso exige que questionemos também em que lugar desse processo diferentes populações e países estão.

Ailton Krenak (15) nos ajuda a deixar claro como isso se desdobra de forma incisiva e violenta sobre algumas populações e como isso está conectado com uma catástrofe que atinge a humanidade. “Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar, um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. Eles inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local, alienados de tudo, e se possível tomando muito remédio. Porque, afinal, é preciso fazer alguma coisa com o que sobra do lixo que produzem, e eles vão fazer remédio e um monte de parafernálias para nos entreter”.

A tecnopromessa da futura eternidade transumanista tem como custo inegável a vida humana e planetária, trata-se da forma presente de aniquilamento do humano que compõe a proposta de seu melhoramento. Olhar para as capilaridades desse processo é fundamental e urgente, quando se nota que entre a obsolescência programada e a eternidade transumanista habita e desenvolve-se o extermínio. Ainda que imaginemos a morte de ambientalistas e de comunidades indígenas inteiras como algo muito distante de qualquer abordagem sobre tecnologia ou transumanismo, a conexão entre esses aspectos nos permite uma revisão sobre o lugar em que nos posicionamos nesse debate e nessas lutas.

Marta M. Kanashiro é doutora em sociologia pela USP, pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp e membro fundadora da Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits).

(1) LEVI, Primo. É isto um homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1988

(2) LONDON, Bernard. Ending the depression through planned obsolescence, 1932. Documento digitalizado, Universidade do Wisconsin – Madison, 2009.

(3) É importante acrescentar que além dos impactos gerados pela extração de minérios e geração de lixo, a lógica da obsolescência programada também afeta a saúde. Um relatório (link https://www.who.int/publications/i/item/9789240023901 ) de junho de 2021, da Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta que os volumes de lixo eletrônico cresceram 21% nos cinco anos até 2019, quando 53,6 milhões de toneladas métricas de lixo eletrônico foram geradas. Os trabalhadores do setor de reciclagem são continuamente expostos a substâncias tóxicas como chumbo, mercúrio e níquel presentes no lixo eletrônico com consequências graves para a saúde humana, animal e ambiental. Para uma revisão da noção de obsolescência vinculada a ideia de destruição e sua aproximação da duração de objetos sem uso no mundo ver: ROLLOT, Mathias. L’obsolescence: ouvrir l’impossible. MétisPresses, 2016.

(4) KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008

(5) ANDERS, Günther. O homem está antiquado. In: Revista Temáticas, n. 35/36, ano 18, 2010.

(6) HUXLEY, Julian. New Bottles for New Wine: Essays. Chatto & Windus, 1957

ver também artigo de título similar HUXLEY, Julian. New Bottles for New Wine: Ideology and Scientific KnowledgeThe Journal of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, Vol. 80, No. 1/2 (1950), pp. 7-23.

(7) KANASHIRO, Marta. Prever o futuro como guia para colonizá-lo. Revista Ciência e Cultura, São Paulo, v. 60, n. 1, p. 45-46, 2008. http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v60n1/a18v60n1.pdf

(8) KANASHIRO, Marta. Prefácio In: Besnier, Jean Michel e Laurent, Alexandre. Robôs fazem amor?, tradução Gita Guinsburg. São Paulo, Editora Perspectiva, 2022.

(9) Falha humana: Vale notar que é recorrente que o pensamento de desenvolvedores de tecnologia, em especial de sistemas de segurança, atribuam falhas e erros não aos sistemas computacionais, mas ao elemento humano que se liga (projeta e faz funcionar) esses sistemas.

(10) RANCIÈRE, Jacques. Partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005 Jacques Rancière aproxima as noções de arte e política como forma de ampliar a noção do fazer político que para ser democrático deve ser constituído pela e incentivar a multiplicidade. É pelo múltiplo e pelo sensível que esta perspectiva pode ser observada em oposição à lógica binária computacional.

(11) BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Trad. Andreas Lieber. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

(12) MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção e política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018

(13) DELEUZE, Gilles. “Post-scriptum das sociedades de controle” In: Conversações, São Paulo: Editora 34, 1992.

(14) Quando tratamos de tecnologias de ponta, em especial das tecnologias de informação, é necessário incluir entre os recursos (trabalho humano, recursos naturais etc) àqueles que dizem respeito ao esgotamento mental e de capacitada criativa também em função da nossa conexão em tempo integral com os sistemas informáticos e que, no limite, corresponde à escalada da sensação de insuficiência humana buscando se adequar ao funcionamento da máquina.

(15) KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.