Estados Unidos e Israel, o que está por trás desta relação?

Por Reginaldo Nasser, Bruno Huberman e Shajar Goldwaser

Foram necessários poucos dias de governo de Donald Trump para que pudéssemos ver uma nova retórica justificando a relação “especial” entre EUA e Israel. O governo anterior, do democrata Joe Biden, tinha suprido Israel com um auxílio militar e financeiro nunca antes visto, Trump iniciou o governo com o estabelecimento de um cessar-fogo em Gaza. Mesmo assim, rapidamente passou a reprimir manifestações solidárias ao povo palestino. Apesar de ter se iniciado no governo anterior, a perseguição de ativistas da causa palestina nas universidades estadunidenses atingiu níveis apenas comparáveis aos protestos durante a guerra do Vietnã. Trump também manteve suas ameaças ao Hamas e à população civil da Faixa de Gaza. Não durou muito até o cessar-fogo ser rompido por Israel, ação que também contou com o apoio do novo presidente. Além disso, Trump deixou até aliados estupefatos com a proposta inverossímil de transformar a Faixa de Gaza numa “Riviera do Mediterrâneo”.

Embora as relações “especiais” entre EUA e Israel já venham de décadas, ainda são motivo de questionamentos a respeito de sua natureza. E ainda chega a surpreender a forma pela qual as autoridades estadunidenses se envolvem em blindar Israel de todo e qualquer tipo de crítica, como a denúncia ao genocídio em Gaza e a violação das leis internacionais que eles mesmo se dedicaram a construir.

O debate sobre a política externa norte-americana para Israel costuma estar dividido entre duas teses principais. Por um lado, entende-se que existe um poderoso lobby pró Israel dentro do país, liderado pelo American Israel Public Affairs Committee (AIPAC), que costuma fazer enormes aportes nas campanhas de candidatos de todo o espectro político e em vários níveis de poder: presidencial, estadual e municipal, tanto para o executivo como para o legislativo. Diversas leituras vão atribuir ao poder deste grupo a grande afinidade ideológica e/ou religiosa entre os políticos estadunidenses e seus pares israelenses.

O próprio AIPAC celebrou que nas primárias das eleições de 2024 ao menos um candidato apoiado por eles ganhou em cada distrito em que houve seu investimento. Venceram 129 candidatos nas primárias do partido Democrata e 193 candidatos no partido Republicanos que receberam seu apoio[1]. Esses dados expõem a imensa presença que este grupo de lobby tem nos diferentes espectros políticos, nas diferentes geografias e instâncias de poder nos EUA.

Por outro lado, há aqueles que entendem se tratar muito mais de uma convergência de interesses de uma perspectiva geopolítica e econômica. A aliança com Israel seria benéfica para o setor energético e industrial militar dos EUA, por exemplo, haja vista que o país serve de aliado num projeto de expansão e presença das forças militares e empresas de extração de petróleo dos EUA no Oriente Médio. Assim, Israel seria um aliado que se poderia confiar dentro de uma estratégia maior de domínio da região.

A novidade que Donald Trump adiciona a este debate é um nível de interesse pessoal, enquanto fiel representante de uma elite empresarial estadunidense no apoio a Israel. Já no seu primeiro governo, o seu genro e assessor especial, Jared Kushner, fez doações a empresas de caridade que contribuem com a construção de assentamentos ilegais na Cisjordânia. O presidente da Bet El Group, empresa que recebeu as doações, era David Friedman, escolhido por Trump para ser seu embaixador em Israel[2]. No atual governo, ele afirmou nos seus primeiros dias de mandato que iria “comprar a Faixa de Gaza”, e que a compreendia com um “grande potencial para o mercado imobiliário”[3]. O setor imobiliário é uma das principais áreas de atuação da Trump Organization, holding do presidente[4], e que possui expertise no ramo de hotelaria de luxo, o que converge com a sua proposta para Gaza. Isso nos mostra que, para além de uma relação de aliança geopolítica, ou de um alinhamento ideológico, Israel e Estados Unidos possuem um profundo entrelaçamento em negócios privados entre as suas elites. No lado israelense, isso também é notável. Israel possui 135 firmas com capital aberto na bolsa de Nova York (NASDAQ), sendo o quarto país com mais empresas nesta bolsa, ficando atrás apenas dos EUA, Canadá e China[5].

Outra novidade deste governo é uma guinada retórica em favor da ideia de que qualquer crítica a Israel seria uma forma de antissemitismo. Nas palavras do próprio Trump, essas manifestações seriam “pró-terroristas, antissemitas e antiamericanas”[6], o que evidencia como se adota esta retórica não só em defesa do país aliado, mas considerando as críticas como uma ameaça à própria segurança nacional. Não que o governo anterior, no momento em que eclodiram manifestações de solidariedade aos palestinos em muitas universidades do país, não tivesse usado essa narrativa para relativizar a repressão policial. Mas a transformação pode ser vista pela forma como foi realizada a primeira prisão de um dos líderes destas manifestações, o pós-graduado na Universidade de Columbia e ativista de origem síria-palestina Mahmoud Khalil, que foi preso em sua residência dentro do campus e está em processo judicial para ser deportado[7]. As acusações, como explicitado pelo Secretário de Estado, Marco Rubio, seriam o seu “apoio ao Hamas”, partido politico palestino considerado terrorista pelos EUA[8].

Alias, esses são os mesmos motivos, vagos e associados ao “terrorismo”, que as Forças Armadas de Israel utilizam para justificar a prisão de civis palestinos nos territórios ocupados. Assim, os métodos de repressão historicamente usados por Israel contra os palestinos estão agora sendo empregados pelos EUA contra imigrantes pró-palestinos do Sul Global, unindo a pauta xenofóbica de Trump com o apoio incondicional a Israel. Neste processo, vale destacar como organizações pró-Israel, a exemplo do site Canary Mission, vem nos últimos anos denunciando ativistas da causa palestina e professores universitários que criticam Israel. Esta prática de doxxing[9], para além de intimidar estes indivíduos, tem sido apontada como fonte de informação que as próprias forças de repressão estadunidenses estariam usando para fazer prisões. Entre seus doadores destacam-se a Natan e Lidia Peisach Family Foundation, cujo tesoureiro é casado com uma das membras do conselho curador da Universidade de Pensilvânia, que ganhou um forte destaque dentre as denúncias do site. Além disso, a fundação acumula doações a Friends of the Israel Defense Forces. Outro doador é Michael Leven, antigo alto funcionário do Las Vegas Sands, cassino de propriedade do falecido mega doador de extrema direita pró-Israel, Sheldon Adelson[10]. Sua esposa, Miriam Adelson, foi uma das maiores doadoras para a última campanha de Donald Trump[11]. Ela é proprietária do jornal israelense com maior distribuição no país, Israel Hayom, alinhado com o atual primeiro-ministro Benjamin Netanyahu[12].

Portanto, mais do que apenas uma relação baseada em interesses mútuos diplomáticos, as elites e os negócios israelense e estadunidense se mostram muito próximos e interdependentes. Ainda faltam pesquisas mais aprofundadas que consigam mapear tais relações construídas em clubes exclusivos e nos jogos de golfe frequentados por bilionários. Porém, as dinâmicas nas quais a retórica em relação ao futuro da Faixa de Gaza é construída pelo presidente Trump, as doações de empresários estadunidenses a campanhas políticas, meios de comunicação, organizações não governamentais e projetos de expansão de assentamentos ilegais israelenses na Cisjordânia indicam haver uma certa coerência na defesa de um projeto político próprio para a região, que não passa pelo voto israelense e ignora os direitos dos palestinos.

Podemos estar assistindo um dos momentos mais trágicos na historia do povo palestino desde a Nakba. Com o fim do cessar fogo há mais de um mês (desde a data em que este artigo foi escrito), o genocidio foi retomado com mais intensidade. Neste período, Israel bloqueou o acesso de qualquer tipo de ajuda humanitária a Gaza e já matou mais de 1.500 palestinos, o que eleva o número de vítimas a passar da cifra dos 50.000, desde o início da ação militar em outubro de 2023[13]. Nem a condenação da Corte Internacional de Justiça, o mandado de prisão a líderes israelenses pelo Tribunal Penal Internacional, ou a resolução 2728/2024 aprovada no Conselho de Segurança da ONU que demanda de Israel um cessar-fogo imediato foram capazes de frear a tragédia à qual o povo palestino foi submetido. Nenhuma das grandes potências mundiais nem nenhuma potência regional parece disposta a tentar impedir Israel e os EUA de suas ações. Resta então aos movimentos políticos e sociais, de perfil transnacional, resistirem a todo custo na luta pelos direitos do povo palestino.

Reginaldo Nasser é professor do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) e pesquisador do INEU.

Bruno Huberman é professor do curso de Relações Internacionais da PUC-SP e pesquisador do INEU.

Shajar Goldwaser é mestrando em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas e pesquisador do INEU.

[1] Dados disponíveis em: https://www.aipacpac.org/winning-candidates-2024. Acesso em: 14 abr. 2025.

[2] Dados disponíveis em: https://www.propublica.org/article/jared-kushner-kushner-companies-donating-west-bank-settlement. Acesso em: 14 abr. 2025.

[3] Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2025/2/10/us-committed-to-buying-and-owning-gaza-trump-says. Acesso em: 14 abr. 2025.

[4] Disponível em: https://www.dw.com/en/gaza-donald-trump-real-estate-trump-organization/a-71564349. Acesso em: 14 abr. 2025.

[5] Dados disponíveis em: https://www.state.gov/reports/2023-investment-climate-statements/israel/. Acesso em: 14 abr. 2025.

[6] Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2025/04/10/governo-trump-ira-monitorar-redes-sociais-de-migrantes-em-busca-de-atividade-antissemita.ghtml. Acesso em: 14 abr. 2025.

[7] Até o momento em que este artigo foi escrito, Mahmoud Khalil ainda não fora deportado, mas segue preso. Ele responde em cárcere privado a um processo judicial no qual sua defesa contesta a ordem de deportação emitida pelas autoridades migratórias dos EUA. No dia 11 de Abril, um juiz de imigração autorizou sua deportação.Disponível em: https://edition.cnn.com/2025/04/13/us/mahmoud-khalil-deportation-ruling-appeals/index.html. Acesso em: 14 abr. 2025.

[8] Disponível em: https://www.independent.co.uk/news/world/americas/us-politics/marco-rubio-green-card-deport-palestine-hamas-b2712715.html . Acesso em: 14 abr. 2025.

[9] Doxxing é a prática de expor publicamente, sem consentimento, informações pessoais ou identificáveis de um indivíduo na internet, geralmente com o intuito de constrangê-lo, ameaçá-lo ou causar-lhe dano.

[10] Disponível em: https://theintercept.com/2025/04/02/penn-israel-canary-mission-peisach/. Acesso em: 14 abr. 2025.

[11] Disponível em: https://www.reuters.com/world/us/republican-mega-donor-adelson-back-major-pro-trump-spending-group-2024-05-30/. Acesso em: 14 abr. 2025.

[12]Disponível em: https://www.middleeasteye.net/news/miriam-adelson-who-is-israeli-billionaire-backing-trump. Acesso em: 14 abr. 2025.

[13] Dados disponíveis em: https://www.middleeastmonitor.com/20250414-no-breakthrough-in-gaza-talks-say-egyptian-and-palestinian-sources/. Acesso em: 14 abr. 2025.