Ficção científica ajuda ensino de ciência, desde que haja tempo adequado, infraestrutura e articulação curricular

Por Roberto Takata

Para especialista, gênero cria “clima cultural de valorização da ciência” mesmo quando não é cientificamente rigoroso. Pesquisa recente aponta baixo conhecimento de clássicos da ficção científica entre estudantes do ensino médio no Brasil, que ignoram até mesmo Guerra nas estrelas.

A leitura de obras de ficção científica (FC) atiça a curiosidade e desenvolve o vocabulário científico, incorporando expressões como “buraco negro” e metáforas como “efeito borboleta”. O valor da FC como canal para inocular uma semente de cultura científica é enfatizado por Osame Kinouchi Filho, físico, professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto e pesquisador de divulgação científica. “Mesmo sem ser cientificamente rigorosa, [a FC] ajuda a criar um clima cultural de valorização da ciência e de crítica da ciência quando mal usada que contrasta com [o efeito produzido por] filmes e livros sobre vampiros e Harry Potter na formação intelectual dos adolescentes”, afirma.

Tal uso da ficção científica é ainda mais rico quando ultrapassa o mero “conteudismo”. “A utilização de obras de FC na educação pode potencializar vários processos cognitivos, na medida em que desvela aspectos dos conteúdos científicos pouco explorados na escola — por exemplo, a problematização dos desdobramentos socioeconômicos e sociopolíticos da ciência”, diz Júlio César David Ferreira, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), físico e doutor em educação.

Além disso, para o físico Luís Paulo de Carvalho Piassi, doutor em educação e docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, o uso da ficção científica deve colocar o aluno em posição de protagonista de seu próprio desenvolvimento, aproveitando-se de seu potencial criativo. “Partindo-se de boas histórias de ficção científica, pode-se estimulá-los a pensar em projetos próprios, seja de criação de histórias ou de outras formas criativas como jogos, brincadeiras, performances, instalações, maquetes e mesmo da própria investigação e pesquisa”, afirma.

Tempo, infraestrutura, planejamento coletivo e currículo
Apesar das potenciais vantagens do uso das obras de ficção científica no ensino de ciências e na educação mais ampla, a abordagem enfrenta algumas barreiras. Além da escassez de tempo para desenvolver adequadamente a atividade, falta infraestrutura física e preparo de quem está usando o método. Além disso, há dificuldade em fazer relação entre objeto do conhecimento e o roteiro de ficção escolhido. É o diagnóstico de Leda Glicério Mendonça, farmacêutica, doutora em ensino de biociências e saúde e docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ). “Não se pode utilizar a ficção científica apenas como acessório. Se for assim é melhor nem usar”, alerta.

“Abordagens metodológicas a partir da leitura de um romance ou a partir do cinema, por exemplo, extrapolam os limites de tempo e espaço da sala de aula, portanto devem ser planejadas coletivamente por professores de diferentes disciplinas para um aproveitamento mais significativo”, pontua Ferreira, da Federal do Paraná.

Para Piassi (EACH-USP) também seria preciso mudar o foco do currículo. “Tudo isso só tem espaço de concretização em um ambiente em que o diálogo, a investigação, o senso crítico e o protagonismo do educando são colocados em primeiro plano”, defende. “O grande problema é o abismo entre ciência e cultura que foi naturalizado socialmente”, aponta Ferreira.

Boa intenção, ficção e a dura realidade
O contexto da ficção científica na educação enfrenta, porém, dificuldades em um plano mais geral, que extrapola as salas de aula. Em sua dissertação de mestrado “A ficção científica na ficção escolar: investigando as potencialidades do gênero no ensino da física”, defendido em 2008 na Universidade Estadual de Maringá, Fabiana Ribeiro de Almeida detectou em amostra de 30 estudantes do 3º ano do ensino médio um baixo conhecimento de clássicos da ficção científica, como as obras de Jules Verne (20% disseram conhecer) e mesmo grandes franquias cinematográficas como Star wars (23%) e televisivas como Star trek (17%). As maiores taxas de conhecimento foram da trilogia Matrix (47%) e de filmes do Superman (90%).

Baixo interesse em ciência (e visões estereotipadas sobre cientistas) também são um problema na Europa. Para atacá-lo, entre 2012 e 2014 a Comissão Europeia implementou o projeto “Ficção científica na educação” (SciFiEd). No estudo “Science fiction in education: case studies from classroom implementations”, de 2015, sobre os resultados do programa SciFiEd, Charalambos Vrasidas e colaboradores apontaram que uma das principais queixas dos professores que utilizaram os kits do projeto foi, como no Brasil, a falta de tempo para trabalhar o material, não permitindo que os alunos tivessem oportunidade de participar mais durante as aulas e expressar suas opiniões com frequência. Outros entraves mencionados foram a estrutura curricular escolar centralizada, o desenvolvimento profissional dos professores e a disponibilidade de recursos e materiais.

A ideia de aproveitar obras de ficção científica na sala de aula é antiga. Em 1954, por exemplo, o artigo “Original science fiction useful in teaching the geologic time table” [Ficção científica original para o ensino da escala de tempo geológico], publicado na revista The American Biology Teacher, trazia dois contos de ficção que, como o título do trabalho sugere, procuravam explorar a escala geológica.

A relação entre a ficção científica e a educação como objeto de pesquisa acadêmica, no entanto, parece um tanto negligenciada. Na base do Google Acadêmico, encontram-se somente 143 registros em inglês com os termos “science fiction” e “teaching” no título; em português, são 43 registros retornados [resultados de julho de 2017].

Ferreira, da UFPR, contrasta o número de publicações com as potencialidades da área: “Não há um número expressivo de publicações sobre a temática no Brasil, se levarmos em consideração a riqueza de possibilidades não somente didáticas, mas de ampliação do universo científico-cultural de professores e estudantes ao apreciarem a ficção científica e sua linguagem”. “A presença da ficção científica na educação – formal, não-formal ou informal – tem sido pouco investigada”, diz Piassi, da EACH-USP.

Baixo ou não, o interesse pelo tema parece ser crescente – ainda que de modo oscilante – no tempo.  Nos registros no Google Acadêmico, apenas 3 são de até 1969, saltando para 21 entradas durante a década de 1970 e 34 nos anos 1980. Nos anos 1990, há apenas 15 registros; voltando a aumentar então para 28 datados entre 2000 e 2009. De 2010 para cá são 42 registros.

O que ler e assistir (para além do entretenimento)
Quais autores e obras merecem destaque no contexto do ensino e educação? Ferreira, da UFPR, faz uma lista encabeçada por Jules Verne. Para o pesquisador, os clássicos do escritor francês continuam sendo inspiradores, representando uma vertente que antecipou as conquistas científicas e suas implicações sociais. Arthur C. Clarke e Isaac Asimov entrariam na mesma linha. As visões pessimistas de Aldous Huxley, como em Admirável mundo novo, de H.G. Wells e de Ray Bradbury também merecem ser destacadas, além do pioneirismo de Mary Shelley com seu Frankstein. No cinema, Ferreira destaca os clássicos Viagem à Lua de Georges Méliès e Metrópolis de Fritz Lang. Entre os contemporâneos, Stanley Kubrick, Ridley Scott, Steven Spielberg e os alternativos Neill Blomkamp e Michel Gondry.

Leda Mendonça (IFRJ) esclarece que as obras que utiliza são mais restritas em função de se limitar ao ensino de futuros profissionais de farmácia – valendo-se mais de obras que tratem do uso de substâncias com efeitos terapêuticos –, mas, entre os usados no ensino básico, destaca Jurassic Park, Planeta dos macacos, Avatar, Matrix e Gattaca. Aponta também para a fluidez do gênero, havendo obras que se misturam a dramas, comédias e romances.

Kinouchi (USP Ribeirão) recomenda também filmes clássicos e modernos para “propagar uma cultura mais científica em um nível básico e geral” sem visar a “ensinar ciência em detalhes ou com rigor”. Sua lista inclui Gravidade, Enigma de Andrômeda, A chegada, 2001 - Uma odisseia no espaço, Perdido em Marte, Europa report, Vida, Impacto profundo, Efeito borboleta, Mr. Nobody, O predestinado, Avatar, Soylent green, Solaris, Contato, Congresso futurista, Matrix e Décimo-terceiro andar.

Roberto Takata é graduado em ciências biológicas, mestre em biologia e doutor em genética/biologia evolutiva pelo Instituto de Biociências da USP, além de especialista em jornalismo científico pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp.