Livro revela ativismo abolicionista de Machado de Assis

Beatriz Maia

Em crônicas de humor publicadas no jornal Gazeta de Notícias, o autor reage à efervescência dos debates abolicionistas sob o pseudônimo de Lélio

As experiências históricas de Machado de Assis no final do século XIX reveladas em uma coluna de humor são o tema do livro As máscaras de Lélio – Política e humor nas crônicas de Machado de Assis (1883-1886), de Ana Flávia Cernic Ramos, professora do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). A obra integra a Coleção Várias Histórias, publicada pela Editora da Unicamp, sob a coordenação do Centro de Pesquisa em História Social da Cultura da Unicamp (Cecult).

Ana Flávia explica que a crônica tem como uma de suas principais características o compartilhamento do tempo histórico entre autor e leitor, por trazer elementos intrínsecos ao momento em que é produzida. Comentam-se assuntos partindo do pressuposto de que o leitor os conhece. “É tudo aquilo que está nas entrelinhas do texto, que vai ser fonte de riso ou de outros sentimentos a partir do momento em que o leitor compartilha daquele tempo. Existe uma rede de diálogo maior, que extrapola o texto da crônica”, explica a autora.

No século XIX, os jornais eram um dos principais meios de circulação de literatura no Brasil, e, por isso, a leitura completa do periódico torna-se tão fundamental na análise do texto literário. Nesse sentido, o livro olha para as formas pelas quais a literatura do jornal dialoga com as notícias, com editoriais, ou com os anúncios de produtos cosméticos, e venda de escravos. “É uma tentativa de entender como o autor está articulando o mundo do qual ele faz parte. A crônica funciona, entre outras coisas, como uma grande leitora do jornal”, destaca.

Balas de estalo

A Gazeta de Notícias era uma publicação de bastante prestígio, e conhecida por incentivar a literatura. Era o jornal com a maior circulação da época, com 24 mil exemplares diários, e as penas mais célebres do final do século XIX, como Eça de Queirós, Olavo Bilac e o próprio Machado de Assis.

Na seção intitulada “Balas de estalo” eram publicados textos humorísticos de um grupo com mais de uma dezena de expoentes da literatura, que criaram seus próprios personagens-narradores, e assinavam cada um sob um pseudônimo. O nome da seção guarda propositalmente múltiplos significados. No vocabulário da época, balas de estalo poderiam ser bombinhas inofensivas de festa junina, doces envoltos em pequenos versos, ou munição de artilharia. Os diferentes sentidos – pueril, doce ou agressivo -, fazem alusão aos diferentes humores dos textos, que surpreendiam o leitor a cada edição.

“Os autores comentam principalmente a política cotidiana, parlamentar, ministerial, o cotidiano da política imperial, dos assuntos do dia a dia, a escravidão e a monarquia. Cada um dos personagens-narradores tem suas próprias características e assuntos de preferência. Cada dia a Gazeta trazia um confeiteiro diferente, e o leitor nunca sabia qual seria o sabor da bala”, comenta a autora.

Embora Machado de Assis tenha sido majoritariamente um cronista de séries solitárias, esse é um dos poucos momentos em que é possível vê-lo atuar coletivamente, em um debate constante com seus companheiros de série. Para Ana Flávia, a coluna representa uma oportunidade importante de ver o autor debatendo coletivamente temas da política imperial e da história nacional: “A rapidez das publicações diárias permite que se capte a experiência do autor enquanto ele vive os acontecimentos, e produz sua literatura em pequenas doses. Feitas no calor do momento, em meio aos impasses e incertezas políticas de seu tempo histórico, as crônicas mostram os embates sociais nos quais o autor estava inserido”.

Abolição

Para a coluna, Machado de Assis cria o personagem-narrado Lélio, um jovem bem-humorado inspirado na commedia dell’arte e nas obras de autores como Molière. Através dele, Machado vivenciou em 1885 a criação da “Lei dos Sexagenários”, que instituiu a liberdade dos escravos maiores de 60 anos. A análise das “Balas” se debruça sobre como o literato experimentou a criação de uma lei emancipacionista em um momento de efervescência do movimento abolicionista e em um contexto de fortes questionamentos internacionais da escravidão no Brasil. Naquele momento, o movimento abolicionista ganhava cada vez mais força nas ruas, os grandes atos públicos se multiplicavam, avolumam-se as rebeliões dos escravos e cresciam as tensões nas senzalas, nas fazendas e nas cidades. Ganhavam força também os movimentos intelectuais, que clamavam para que o Brasil se posicionasse sobre os rumos da abolição.

Ainda que se entendesse, naquele período, que o final da escravidão era inevitável, pairavam as dúvidas sobre quando e como seria instaurada. A expectativa era agravada pelo hiato de treze anos sem nenhuma legislação que avançasse rumo à abolição, desde a “Lei do Ventre Livre” criada em 1871. “Hoje sabemos que a abolição aconteceu em 1888, então, estudando o período, corremos o risco de entender cada nova medida como um passo no tabuleiro rumo à medida final. O livro tenta romper um pouco com essa visão. Esses homens do século XIX não têm a menor ideia do que vai acontecer em seguida, a abolição é pura indeterminação. Cada movimento desse jogo de tabuleiro para eles poderia significar o tudo ou o nada”, explica Ana Flávia.

Na visão da autora, a análise dos jornais demonstra como o projeto de lei começa como uma grande promessa para os abolicionistas. O primeiro projeto em discussão no Parlamento previa a libertação dos escravos sem indenização para os senhores, e não chega a ser votado. A ausência de indenização representava o reconhecimento da ilegalidade daquela propriedade, e por isso mesmo, a cláusula foi alterada na legislação aprovada, que indenizou os proprietários de escravos. “Foi uma das batalhas mais acirradas do Parlamento em torno de qual lei seria aprovada. Tentando fugir um pouco dessa visão evolutiva da história, eu queria mostrar essa efervescência em torno dessa lei, que estava bastante presente nos jornais e nas ruas”, examina.

A desilusão de Lélio

Na série de crônicas, Machado de Assis pauta as desventuras das batalhas políticas e jurídicas em torno da Lei. Para a autora, é um momento muito feliz para mostrar Machado acompanhando diariamente a micropolítica, e as formas pelas quais isso se reflete na desilusão de Lélio. “Durante muito tempo se disse que o Machado de Assis se importou pouco com a escravidão, tematizou pouco a escravidão na sua obra. A análise das “Balas de Estalo” mostra o quanto estava profundamente envolvido com o debate da criação de uma lei emancipacionista”, afirma Ana Flávia.

Se o Lélio de Machado de Assis do momento de sua entrada na série, em julho de 1883, até o momento da aprovação da “Lei dos Sexagenários” havia sido um personagem brincalhão, a decepção com os termos da aprovação – vista como um retrocesso pelos abolicionistas-, abate os humores do autor e do personagem, que deixa a série em pouco tempo. A partir da derrota, o tom do personagem muda, e passa a ter uma abordagem mais severa da realidade. “O livro tenta mostrar como o contexto histórico impacta a forma literária. O material que alimenta o personagem Lélio é fluido, e o Machado vai tendo que adaptar a sua criação literária a essa indeterminação histórica”, comenta a autora. “Muitos literatos brasileiros a partir de 1870 passam a se enxergar como portadores de uma missão civilizatória. Eles sabem que serem lidos por tantas pessoas mobiliza a opinião pública e pressiona os poderes institucionais” completa.

A minuciosa análise mostra Machado de Assis não só preocupado em tematizar a escravidão em seus textos, mas também em pensar e em intervir, e consolida-se como um ator importante desse processo histórico. Um importante registro histórico que corrobora a análise é a fotografia da Missa Campal celebrada em ação de graças pela abolição da escravatura, feita em 17 de maio de 1888. Na imagem, Machado de Assis aparece ao lado da princesa Isabel, entre um seleto grupo de figuras que apoiaram publicamente a abolição.

Detalhe da Missa Campal celebrada em ação de graças pela abolição da escravatura, realizada no dia 17 de maio de 1888, no Campo de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Na imagem, Machado de Assis (no canto direito, o segundo de baixo para cima) aparece ao lado da princesa Isabel (ao centro). Crédito: Antonio Luiz Ferreira/ Coleção Dom João de Orleans e Bragança sob guarda do IMS.

As máscaras de Lélio – Política e humor nas crônicas de Machado de Assis (1883-1886)
Preço: R$ 33,60 (408 páginas)
Autor: Ana Flávia Cernic Ramos
Editora: Editora Unicamp
Disponível em: http://www.editoraunicamp.com.br/produto_detalhe.asp?id=1126

Série “Crônicas de Machado de Assis”
Disponível em: http://www.editoraunicamp.com.br/produtos.asp?id=51