Mares e florestas na fila de espera – como é a escolha de uma área a ser preservada

Por Laura Segovia Tercic

No Brasil o mapeamento de áreas prioritárias reúne o conhecimento de pesquisadores e de comunidades locais, além do uso de softwares, para destacar os fragmentos de natureza que mais merecem atenção. O governo investe menos de 16% do que é necessário nas unidades de conservação

Imagem: Unsplash.com

Em março deste ano, um estudo publicado na revista Nature mostrou o trabalho de um time de 26 pesquisadores de diversas partes do mundo que se reuniu para tentar responder a uma pergunta bastante direta: quais são as áreas no oceano com prioridade para proteção?

O estudo foi liderado por Enric Sala, explorador residente da National Geographic Society, e considerou os efeitos positivos ambientais e sociais ao se conservar determinada área marítima por meio de três critérios: proteção de biodiversidade, fonte alimentar (especialmente pesqueira) e capacidade de estocagem de carbono – que possui influência direta nas mudanças climáticas.

Assim, o grupo chegou a algumas conclusões. Há, por exemplo, a previsão de conservação de mais de 80% dos habitats de espécies marinhas ameaçadas, e de aumento de mais 8 milhões de toneladas métricas de pesca caso os pontos mapeados recebam atenção e ação global. Por outro lado, os pesquisadores também projetaram um cenário em que nenhuma das áreas receberia atenção – e tudo o que não for protegido ficará perdido. Não é um cenário bonito para nenhuma nação.

No Brasil, as Unidades de Conservação (UCs) se dividem em dois grandes grupos: as unidades de proteção integral (estações ecológicas, reserva biológica, parques nacionais, estaduais ou municipais) e as unidades de uso sustentável (reservas extrativistas, florestas nacionais, estaduais ou municipais, reservas particulares de patrimônio natural).

O professor José Cardoso da Silva, que pesquisa a relação entre desenvolvimento socioeconômico e preservação ambiental na Universidade de Miami (EUA), explica que no Brasil há unidades de conservação públicas e privadas. Para criar uma unidade de conservação privada basta o proprietário da terra apresentar uma proposta ao governo e aguardar o reconhecimento. No caso das unidades públicas, a iniciativa de criação de uma unidade de conservação pode partir tanto da sociedade civil como dos governos. “É preciso estudar a área e fazer uma proposta de criação da unidade de conservação. Depois, esse estudo é debatido dentro de um dos níveis de governo (municipal, estadual ou federal) e com a comunidade local. Por fim, se tudo correr bem e houver consenso, a unidade de conservação é criada”, detalha o pesquisador.

Fluxograma do procedimento para criação de uma unidade de conservação no Brasil. Fonte: Roteiro de criação de UCs do Ministério do Meio Ambiente

Identificação de áreas prioritárias

Silva explica que o Brasil tem uma excelente tradição de usar dados científicos (biológicos e socioeconômicos) para planejar a criação das suas unidades de conservação e diz que “além disso, sempre há consultas públicas para levar em conta os interesses e anseios das comunidades locais”. É a combinação desses fatores que determinará os limites e a categoria da unidade.

Segundo o pesquisador, o país fez um grande esforço nas últimas décadas para considerar informações sobre a biodiversidade na definição de uma lista de áreas prioritárias para conservação. “O Brasil já usa os melhores métodos disponíveis para selecionar as áreas. É de fato um dos melhores exemplos mundiais de como usar ciência nesse processo”, ressalta.

O uso de ciência para mapear as áreas naturais de prioridade não implica, por si só, na garantia de criação ou ampliação de UCs, pois nem sempre os gestores usam os mapas e relatórios de especialistas como base para orientar suas medidas. Desde 1997 o Ministério do Meio Ambiente  atua na identificação de áreas prioritárias e de recomendação de ações nesses locais, mas foi em 2004, por meio do Decreto 5092, que a tarefa se tornou uma atribuição formal do órgão.

A analista ambiental e bióloga Luciane Lourenço Paixão é uma das participantes da equipe do ministério que coordena o processo de identificação de áreas prioritárias. Ela explica que em 2004 foi concluído o primeiro relatório e que, depois disso, vieram mais duas atualizações considerando novos fatores sociais e descobertas da biodiversidade brasileira, uma em 2007 e a outra em 2018, que é a que está em vigor atualmente.

Paixão conta que no processo de 2018 houve, através de quatro oficinas, a reunião de especialistas em diversos grupos taxonômicos (répteis, aves, plantas, entre outros) de todos os biomas, inclusive de áreas costeiras e marinhas. À essa expertise somou-se o conhecimento e os interesses de comunidades indígenas e quilombolas, e também de setores econômicos da sociedade. “Participaram então Ministério de Minas e Energia e empresas como a Petrobrás, por exemplo”, diz a analista.

Além disso, ONGs e turismo ecológico também têm sua contribuição. No caso de zonas marinhas e costeiras, por exemplo, estiveram na 3ª oficina em 2018 organizações como o Projeto Tamar e representantes de iniciativas de turismo com mergulho e com observação de baleias.

“Com essa junção é que chegamos às áreas com prioridade para conservação, utilização sustentável e repartição de benefícios da biodiversidade” – explica Paixão. “Para cada área prioritária as ações recomendadas são as que estiverem mais relacionadas com as peculiaridades do local (atividade pesqueira, usufruto de comunidades quilombolas, conservação integral dos recursos, ente outros)”.

Esquema das etapas no Ministério do Meio Ambiente durante a criação de “Áreas e ações prioritárias para a conservação, utilização sustentável e repartição dos benefícios da biodiversidade”

Diversos fatores de hierarquização são utilizados na determinação das áreas prioritárias. Ganham pontuação boa, por exemplo, regiões que já estavam no mapa anterior. Têm peso também os interesses de comunidades locais, a existência de espécies endêmicas ou ameaçadas, a informação de que a região é visada para algum interesse de desmatamento/construção e a proximidade de atividades econômicas com potencial conflito para o ambiente (portos, exploração de petróleo, rodovias). “O ideal é fugir dessas áreas na delimitação, para isso chamamos especialistas e tentamos avaliar o quão, de fato, pode ser conflituoso”, explica Luciane Paixão.

Todos esses dados e critérios são então jogados em um software chamado Marxan, que a bióloga conta ser amplamente utilizado em análises para políticas públicas de outros países. “Com ele, podemos aplicar um comando para que, por exemplo, o limite escolhido fuja da área de conflito, mas que, ao mesmo tempo, cumpra as metas definidas nas oficinas 1 e 3”.

Paixão também explica que é difícil comparar os métodos utilizados por eles com os internacionais, como o do artigo da Nature. Isso porque os do Brasil consideram mais detalhes e se aprofundam nas características das regiões, o que é vantajoso para decisões pontuais. No entanto, em um estudo global, que visa acomodar ecossistemas e culturas distintas e de todo o mundo, há a necessidade de certa padronização e simplificação dos critérios. Para a bióloga, “com a padronização abre-se mão desse detalhamento em estudos globais, mas é uma forma de se evitar vieses”.

A definição de áreas prioritárias pela equipe do Ministério do Meio Ambiente é uma ferramenta útil apenas se for bem aproveitada. Para tanto, desde a última etapa em 2018, o setor responsável tenta promover a divulgação dos resultados obtidos e engajar os órgãos públicos dos estados, municípios e o federal (ICMBio) para que possam usar esse mapa como um dos critérios na criação de novas unidades de conservação ou ampliação das já existentes.

O pesquisador José Cardoso da Silva afirma que “não pode haver desenvolvimento humano sem unidades de conservação estrategicamente bem planejadas e gerenciadas”. As unidades costeiras e marinhas, em especial, chamam muita atenção pela influência na oferta de alimentos e sensibilidade com as mudanças climáticas. Para ele, o principal obstáculo para a criação de unidades de conservação no Brasil é a oposição sistemática de setores da sociedade que se beneficiam da degradação ambiental. “Esses setores são politicamente poderosos, pois controlam uma parte significativa da economia do país”, diz.

O professor também aponta o problema financeiro dentro das unidades brasileiras já estabelecidas. “Os governos, em todos os níveis, investem muito pouco nas UCs”, afirma. Um estudo de Silva com pesquisadores da Universidade Federal do Amapá (Unifap) mostrou que o governo federal investe menos de 16% do que é necessário para fazer com que as unidades de conservação federais terrestres cumpram a função para a qual foram criadas.

Laura Segovia Tercic é formada em biologia e tem especialização em jornalismo científico (Labjor).

Colaborou Betânia Santos Fichino