Os Contrários dos Bois: rivalidade de bumbás amazônicos na imprensa nos primeiros anos após a abolição da escravidão

A imprensa, a despeito de um ou outro artigo mais simpático ao bumbás, regularmente publicava apelos à repressão desses grupos quando de sua circulação e de apresentações em espaços públicos. Esta preocupação correspondia ao incômodo das elites com a presença da população negra livre nas ruas, após 1888. A abolição da escravidão era uma memória recente no Brasil. Por isso, as tentativas de controle e repressão de festas, danças, músicas e outras formas de encontro da população negra, mestiça e pobre correspondiam à aspiração de intelectuais e agentes de estado de formação da nação segundo o modelo civilizacional representado pelos países hegemônicos da Europa Ocidental.

Por Antonio Maurício Costa

Povo do boi ao contrário
Para mim é maneiro
Cheguei na rua da prainha
Mandei asteá bandeira
Oh meu senhor ô ô
Na casa do Imperador

Boi ao Contrário. Toada do folclore junino de Óbidos-PA. Gravada pelo músico Eduardo Dias em 1994

O então jovem antropólogo Eduardo Galvão publicou na edição da revista Anhembi de junho de 1951 (número 7, volume 3) um artigo sobre uma “versão de boi bumbá do Baixo Amazonas”. A publicação resultava de um trabalho mais amplo de pesquisa realizado no município de Gurupá-PA, ao lado de seu orientador, Charles Wagley, antropólogo da Universidade de Colúmbia (EUA). O relato tem como base notas que não seriam incorporadas nos trabalhos principais divulgados por Galvão[1] e Wagley[2] sobre Gurupá na década de 1950.

Os primeiros parágrafos do texto do articulista tratam da rivalidade entre cordões de bumbá na região do Baixo Amazonas. As memórias de moradores mais antigos reportavam a existência de muitos grupos no passado, ao ponto de a população de Gurupá acompanhar simultaneamente a apresentação de quatro grupos de boi na cidade. Mas, naquele presente, isto é, na década de 1940, a divisão territorial dos bois era marcada pela existência de apenas dois grupos em cada município do Baixo Amazonas: um na área urbana e outro na zona rural. A regra prevalecente era de que esses grupos seriam rivais preferenciais, em permanente competição, atribuindo-se mutuamente o título de contrário. A inclinação competitiva dos apreciadores vertia-se em disposição combativa quando se encontravam.

Galvão afirma que os encontros ocasionais de cordões, em seus trajetos para apresentações, geravam desafios de coreografia e de versos improvisados e cantos com a ridicularização do rival. Animada pelo desafio e pela pinga, a disposição belicosa dos bois poderia transformar-se em confronto físico entre os componentes dos grupos. O objetivo do enfrentamento seria a captura ou a destruição do boi-artefato do rival. Por isso, segundo o pesquisador, as carcaças da figura bovina seriam feitas de armações de taquara reforçadas para enfrentar os embates. Um relato que surpreendeu o pesquisador informava a disponibilidade de cacetes sob a armação do boi para distribuição em caso de briga.

Se recuarmos no tempo para a última década do século XIX, veremos nas páginas da imprensa do Norte do Brasil que, em cidades como Belém e Manaus, os mesmos bumbás que percorriam as ruas e se enfrentavam quando dos encontros de cordões podiam também se dedicar a apresentações de cunho teatral. O folclorista Vicente Salles afirma, em texto de 1970[3], que a presença dos ranchos de boi em espetáculos de teatro de revista abriu caminho para o surgimento de cordões de outros “bichos” (onça, peixe, camarão etc.), mas principalmente de pássaros. À semelhança dos bumbás, os roteiros da farsa dos cordões tinham como cerne a morte e a ressureição de um animal numa trama que envolvia personagens do mundo rural brasileiro: fazendeiros, padres, médicos, indígenas, caçadores, trabalhadores negros, pajés, dentre outros.

À margem da atividade teatral dos cordões, eram recorrentes os enfrentamentos que envolviam o protagonismo de capoeiristas, dedicados a capturar o objeto mais precioso do adversário: o boi-artefato, a simulação de pássaro engaiolado ou qualquer outra alegoria de bicho. Tratava-se de uma animosidade ritualizada, regida por códigos implícitos quando das vias de fato: iniciar a contenda com toadas de desafio, recorrer a duelos físicos preferenciais entre capoeiristas de mesmo nível e encerrar o conflito com a captura do bicho do rival. Mais ainda, os embates envolviam a família do amo responsável pelo boi, seus agregados, amigos e vizinhos, de modo que os enfrentamentos abarcavam coletividades com fortes laços relacionais. Em adendo à demarcação socioespacial da particularidade de cada rancho, os grupos se distinguiam entre si por seus vínculos com representantes dos setores dominantes da sociedade: agentes de segurança pública, políticos e jornalistas.

A imprensa, por sua vez, a despeito de um ou outro artigo mais simpático ao bumbás, regularmente publicava apelos à repressão desses grupos quando de sua circulação e de apresentações em espaços públicos. Esta preocupação correspondia ao incômodo de gente das elites com a presença da população negra livre nas ruas, após 1888. A abolição da escravidão era uma memória recente no Brasil. Por isso, as tentativas de controle e repressão de festas, danças, músicas e outras formas de encontro da população negra, mestiça e pobre correspondiam à aspiração de intelectuais e agentes de estado de formação da nação segundo o modelo civilizacional representado pelos países hegemônicos da Europa Ocidental.

No entanto, desde o século XIX, festas públicas de cordões populares e irmandades religiosas de negros e mestiços contradiziam tal pretensão. Nas décadas de 1890 e 1900, essas manifestações aumentaram sua visibilidade nas grandes cidades do país. Elas eram muitas vezes calçadas numa base de associativismo de pessoas negras e mestiças, pelo qual a ajuda mútua relativa a tratamentos de saúde e gastos funerários, bem como a defesa de um pertencimento territorial na cidade e no campo, representado pelas vizinhanças, desempenhavam papel central.

Se, de um lado, progresso e civilização eram palavras-chave da utopia burguesa, orientada para o ideal de branqueamento da população brasileira via imigração europeia, de outro, cordões festivos e irmandades valorizavam a presença dos corpos negros no espaço público, o extravasamento festivo e devocional de seus participantes e o protagonismo social dos seus promotores. Sua crescente visibilidade tendia a garantir-lhes espaço em jornais e revistas da época, em textos que não apenas se limitavam a reportar ações repressivas da polícia.

É o caso do Boi Bumbá Pai do Campo, cordão de Belém do Pará criado em 1908 e que, desde seu nascimento, recebeu atenção positiva na imprensa, dedicada a reportar sua presença em competições com outros cordões e em apresentações teatrais. Diferentemente de outros grupos dos anos 1890 e início do século XX, que majoritariamente figuravam em notas policiais na imprensa regional, a circulação do Pai do Campo pela cidade era remetida à ideia de uma brincadeira pública, popular, que atraía amplos setores das classes trabalhadoras da cidade.

Isto certamente contribuiu, vários anos mais tarde, para a escolha do cordão para receber a visita da Missão de Pesquisas Folclóricas (MPF), do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo em junho de 1938. Expedição idealizada e dirigida à distância por Mário de Andrade, a MPF percorreu Paraíba, Pernambuco, Maranhão e Pará no primeiro semestre de 1938 com o objetivo de registrar o folclore musical brasileiro. Em Belém, orientada por Gastão Vieira, médico-literato paraense amigo do musicólogo e literato paulista, a MPF produziu registros audiovisuais de cerimônias afrorreligiosas no terreiro Babau Maitatá, no bairro da Pedreira, e da danças e toadas do Boi Bumbá Pai do Campo, do bairro do Jurunas[4].

Boi Bumbá Pai do Campo. Foto da Missão de Pesquisas Folclóricas. Belém, 26 de junho de 1938

As canções do bumbá jurunense foram publicadas em 1959 no volume 3 do livro póstumo de Mário de Andrade, Danças dramáticas do Brasil. Os cantos desse “boi”, assim como os de cordões de outros bairros da cidade (Jurunas, Umarizal e São João), ressaltavam o pertencimento socioespacial dos brincantes, pessoas que partilhavam condições semelhantes de trabalho, moradia e vida familiar. Ressaltava-se nelas a disposição guerreira dos grupos, as assim chamadas toadas de desafio, pelas quais os oponentes chamados de “contrários” eram desafiados a “pisar no terreiro” do rival, ameaçados pela quebra do boi-artefato e advertidos a não falar mal do provocador.

O atrevimento ritualizado nos versos cantados e acompanhados por gestos e pela percussão cumpria um roteiro já conhecido pelos brincantes. Os grupos que se encontravam por acaso ou de propósito pelas ruas da cidade eram liderados nas contendas por capoeiristas. A maloca, conjunto de homens fantasiados de “índios” (como se dizia na época) era responsável por uma coreografia específica nas apresentações, além de reunir os especialistas em capoeira que, ao lado do “tripa”[5], eram protagonistas nos combates.

A cidade que assistia a uma grande transformação nas primeiras décadas republicanas, marcada pela expansão dos serviços públicos (iluminação, saneamento, telefonia, transporte) e por novas infraestruturas urbanas (ampliação e abertura de ruas e avenidas, construção de novos prédios públicos, demolição de cortiços, criação de monumentos e espaços de lazer), testemunhava a persistência e a ampliação de solidariedades festivas  baseadas em vínculos etnicorraciais e territoriais oriundos das regiões pobres da cidade. Nesse cenário, brincar o boi, nas ruas e nas praças, era algo que flertava com o risco dos combates. Mas se tratava de um jogo de animosidade conhecido publicamente e regido por alianças cruzadas (entre pessoas de diferentes classes sociais), pela inimizade entre participantes de cordões e por reivindicações de territorialidade demarcadas por laços de vizinhança.

Foi neste contexto em que a imprensa da capital paraense[6], majoritariamente, se dedicava a denunciar os bois bumbás como manifestação incivilizada e incitava incursões policiais contra as apresentações públicas. A percepção dos jornalistas dos bumbás como “divertimento popular arcaico” ou como “desordem imoral” indicava a distância social que havia entre eles e o mundo das vizinhanças de bairro pobres. Longe da ideia de imoralidade, as brigas de bois eram um aspecto, pontual apenas, da brincadeira coletiva, que celebrava e reforçava a solidariedade de grupo e o inseria, a contrapelo e pela notoriedade, no mercado de entretenimento da cidade, inclusive com apresentações contratadas por particulares.

Os jornalistas se posicionavam mais ou menos combativamente contra os brincantes, identificando neles heranças do mundo da escravidão, bem como supostas inclinações raciais à desordem, imoralidade e delinquência. Involuntariamente, os textos da imprensa reconheciam os bumbás: favoráveis ou não, as folhas jornalísticas contribuíram inadvertidamente para o reconhecimento da relevância social desses eventos e de seus agentes no alvorecer dos tempos republicanos.

  • Trabalho publicado em formato de artigo científico em: Costa, A. M. “Guerreiros da pândega: batuques negros e encontros de bois-bumbás nos jornais de Belém do Pará no pós-Abolição (1888-1908)”. Tempo, v. 27, n. 2, p. 247–268, maio 2021.

 Antonio Maurício Costa é professor titular da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará.

Notas

[1] Galvão, E. The religion of an Amazon community: a study in culture change. Doctor Degree of Philosophy, Faculty of Political Science, Columbia University, New York, 1952. [Edição brasileira: Galvão, E. Santos e Visagens: um estudo da vida religiosa de Ita, Baixo Amazonas. São Paulo, Editora Nacional, 1955].
[2] Wagley, C. Amazon Town: a study of man in the tropics. London: The MacMillan Co., 1953. [Edição brasileira: Wagley, C. Uma comunidade Amazônica. Estudo do homem nos trópicos.  São Paulo, Editora Nacional, 1957].
[3] Salles, V. O “boi-bumbá” no ciclo junino. Brasil Açucareiro (Rio de Janeiro), n. 6, p. 27-33, jun. 1970.
[4] Fotos, vídeos, gravações sonoras e cadernetas de campo da MPF estão disponíveis em Cerqueira, V. L. (ed.), Missão de pesquisas folclóricas: as cadernetas de campo. São Paulo: Associação dos Amigos do Centro Cultural São Paulo (DVD-Rom), 2010.
[5] Homens que carregavam a carcaça do boi-artefato, realizavam a dança do bumbá e defendiam a alegoria máxima do grupo.
[6] Representada por jornais como A República, O Democrata, A Pátria Paraense, O Industrial, O Liberal do Pará, Correio Paraense e O Pará.