Os mapas e o tempo

Por Leonardo Fernandes e Marcos Botelho Jr.

Historiadores estão utilizando novas tecnologias de mapeamento para visualizar e investigar o passado

Apesar do nome, a cidade do Rio de Janeiro não foi construída ao longo de um rio. Alguns mapas do começo do século XVI, especialmente a carta náutica elaborada pelo almirante otomano Piri Reis, foram os responsáveis por confundir as águas da Baía de Guanabara. O erro foi consagrado oficialmente pelos portugueses quando fundaram, no topo do Morro do Castelo, o assentamento de São Sebastião do Rio de Janeiro em 1565. Mas uma coisa é certa nessa história: a busca por água potável para abastecer esse núcleo urbano foi o que moldou a metrópole que conhecemos hoje.

De acordo com o artigo Water and Social Space: Using georeferenced maps and geocoded images to enrich the history of Rio de Janeiro’s fountains (Água e espaço social: usando mapas georreferenciados e imagens geocodificadas para aprimorar a história das fontes do Rio de Janeiro, inédito em português), da historiadora americana Alida Metcalf, quando os primeiros moradores desceram a colina e construíram casas, lojas e igrejas ao longo das ruas retas paralelas à costa se viram cercados de pântanos, lagoas e mangues – mas, infelizmente, nada era adequado para beber. A cidade era abastecida de água doce graças ao trabalho dos aguadeiros, muito deles escravos africanos e indígenas que carregavam os recipientes nas cabeças.

A primeira fonte pública do Rio foi a da Carioca, concluída em 1723. O aqueduto que ligava o rio Carioca até a cidade levou seis décadas para ser completado. A fonte em si foi esculpida em Lisboa e enviada de navio para o Rio, onde foi instalada na praça hoje conhecida como Largo da Carioca. Tinha dezesseis bicos ornamentais de bronze e no topo do monumento reinava solene o brasão de armas de Portugal. O chafariz foi completamente reconstruído nos anos 1830, e durou até 1926 quando foi demolido. Mas parte da memória da mais importante obra de saneamento da cidade ainda permanece de pé, com a ponte dupla dos Arcos da Lapa que conecta os Morros de Santa Teresa e de Santo Antônio.

“A cidade foi amplamente abastecida com água através desse único aqueduto até o início do século XIX. As fontes públicas eram vitais para o Rio, não só de um ponto de vista utilitário, mas também social e político. Projetadas para serem esteticamente agradáveis, as grandes fontes ficavam em praças ou ao longo das ruas, e ao redor delas foi criado um espaço público. Se a limitada infraestrutura de água da cidade tinha uma vantagem, era dar aos escravos e aos negros livres um lugar onde poderiam se reunir, apesar de seu trabalho ser duro e longo”, afirma a professora titular do departamento de História da Universidade Rice no Texas, EUA.

Além do papel

A pesquisa de Metcalf sobre a história social do Rio examina como essa escassez de água foi usada para reforçar instituições como a escravidão, por exemplo. A cidade tinha a maior população de escravos urbanos das Américas na primeira metade do século XIX e um número significativo dessa força de trabalho era utilizada para transportar água e lavar roupa. Uma pesquisa difícil de empreender devido às inúmeras intervenções urbanas que a cidade passou.

Para estudar as grandes transformações na paisagem local como a construção de novos chafarizes e aquedutos e as drenagens e aterramentos, a pesquisadora recorreu à tecnologia de georreferenciamento de mapas históricos. Isto significa ligar um lugar no mapa histórico como um ponto central de um cruzamento de duas ruas, por exemplo, as coordenadas de latitude e longitude do endereço atual. Em 2011, em parceria com Farès el-Dahdah, diretor do Centro de Pesquisa em Ciências Humanas (HRC) da Rice University, eles criaram a plataforma ImagineRio, um atlas interativo da ocupação urbana da cidade do Rio de Janeiro, abrangendo desde 1502 até hoje em dia.

O projeto usa a precisão de dados captados via satélite para localizar antigas informações cartográficas, plantas baixas (tanto de edifícios construídos quanto de projetos abandonados) e documentos visuais de vários arquivos e bibliotecas do Rio de Janeiro. Um controle deslizante na parte superior do site permite que os usuários avancem para frente ou para trás no tempo.

Dependendo da época selecionada, mapas históricos georreferenciados aparecem em uma barra vertical à esquerda. É possível também acompanhar o curso de rios ao longo dos anos ou a expansão de ruas. A plataforma ainda alia iconografia à pesquisa, apresentando aquarelas, desenhos ou pinturas inspiradas em um determinado ponto da cidade. Uma nova parceria com o Instituto Moreira Salles tem adicionado fotografias históricas, como de Augusto Malta e Marc Ferrez, à plataforma. Cada imagem é geolocalizada, tornando-se possível visualizar o que o artista retratou em cima do mapa do período.

Para localizar o que os documentos oficiais não forneciam, Metcalf se baseou nas obras de pintores como o francês Jean-Baptiste Debret e o austríaco Thomas Ender que visitaram o Rio de Janeiro no início do século XIX em missões artísticas a convite do príncipe regente Dom João. Apesar de trabalhar para a corte e retratar com pompa a presença real na cidade, Debret registrou que as fontes públicas eram lugares onde os escravos não só trabalhavam como também conviviam, comiam juntos e cantavam. Já as aquarelas de Ender mostram que mesmo que a tarefa de levantar grandes jarros de água ou barris de madeira ​​exigisse fisicamente, os escravos são retratados na maioria das vezes conversando em volta dos chafarizes.

“O Rio foi uma cidade planejada, imaginada de inúmeras maneiras. Com o ImagineRio é possível não só visualizar como era o Rio no passado, mas também o que poderia ter sido. Quando um mapa é georreferenciado, ele está vivo de novo”, definiu Alida.

Novas fronteiras

Outra iniciativa que vem expandindo as possibilidades do estudo da cartografia histórica é a Biblioteca Digital de Cartografia Histórica da Universidade de São Paulo (USP). O acervo conta hoje com cerca de 70 exemplares digitalizados, que abrangem principalmente a América do Sul e o Brasil entre os séculos XVI e XIX. Através do site é possível acessar além das imagens em alta resolução, informações técnicas e editoriais de cada peça, assim como verbetes explicando o processo de produção, circulação e apropriação dos documentos cartográficos.  Criado em 2009, a Biblioteca ainda está em expansão: o objetivo é digitalizar os 280 mapas que integravam originalmente a coleção do Banco Santo e foram depositados na instituição.

O conjunto revela muito mais do que informações geográficas. Permite também perceber o imaginário europeu sobre o Brasil, retratado como uma terra exótica e incomensurável em diversos mapas. A historiadora Iris Kantor, professora do Departamento de História da USP e uma das coordenadoras do projeto, aponta que os mapas impressos não devem ser tomados como representação verossímil da realidade geográfica, sendo, em sua maior parte, produzidos para adornar as casas das famílias abastadas da época, e consumidos como objetos de prestígio e ostentação.

“São documentos que falam muito mais das concepções espaciais dos homens que fizeram esses mapas do que do espaço geográfico tal qual temos conhecimento hoje. Acho que revelam, sobretudo, esse desejo imperial de conquista, de presença da Europa no novo mundo”, afirma Kantor.