Poética da informação. Um estudo do papel da arte na representação da notícia

Por Rodrigo Marcondes e Antonio Carlos Amorim

É necessário nos questionarmos sobre como provocar indivíduos a ver no museu um tipo de conteúdo similar àquele que está́ disponível nos canais de comunicação convencionais. Qual é a medida estética para a apresentação desse conteúdo? As narrativas visuais que envolvem arte e informação correm grande risco de atingir um grupo extremamente reduzido de espectadores, sem perspectiva de expandi-lo. É necessário que, enquanto produtores, estejamos atentos à nossa audiência.

Este texto integra uma pesquisa que tensiona a reflexão sobre o espaço das artes visuais que se aliam a disciplinas como o jornalismo na busca de uma reinterpretação viável e original de fontes prévias de conteúdo utilizadas na produção artística, ao ponto de produzir novos sentidos de interpretação nas obras apresentadas. Questionaremos, portanto, se a abordagem das artes em suas estratégias, em geral mais focadas na invenção do que no conteúdo convencionalmente apresentado pelo jornalismo, seria capaz de apresentar um caminho viável de crítica à divulgação científica e cultural.

Artistas que apoiam seus trabalhos na recomposição e ressignificação de material de pesquisa, entrevistas e técnicas documentais estariam aptos a oferecer uma voz alternativa e confiável aos meios de comunicação usando suas próprias estratégias? E mais, seriam os espaços de exibição de arte (galerias, museus etc) um canal de fruição dessas pesquisas, posicionando-se como agentes ativos na criação de plataformas alternativas de distribuição de informação, focadas nesse viés de abordagem?

Ciro Lubliner (2017) propõe que a arte de recomposição, definida por ele como “obras de arte que fazem uso de materiais e fontes prévias (não necessárias e originalmente dotadas de viés artístico) para a construção e o rearranjo renovador de sentidos e sensações”, pode atuar em locais onde a arte e o pensamento entram em conjunção, tornando possível a produção de obras artísticas que se aprofundam em questões e produzem novos sentidos ético-estéticos. O autor vai além, e afirma que, quando se renovam de modo radical os sentidos do material de pesquisa na direção da construção e rearranjo renovador de sentidos e sensações, traça-se uma linha crítica-ética-estética que ele renomeia de recomposição imanente. O uso da palavra “imanente” se apoia aí na noção de “imanência” adotada em várias obras de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

Hito Steyrel (2011), artista e escritora que aborda questões sobre arte, filosofia e política, sugere que a dúvida em relação ao documentarismo seria, na verdade, a grande qualidade que o artista contemporâneo focado nesse tipo de produção poderia desenvolver. Para ela, o artista que questiona sua posição enquanto produtor e transmite as ansiedades não respondidas às suas obras cria um potencial de “hackear” a estratégia das fontes utilizadas em suas pesquisas. Desse modo, a autora afirma que o artista deve estar consciente do papel histórico que a ferramenta utilizada por ele representa e atento para não reproduzir as características desse tipo de produção que ele mesmo critica. Nesse sentido, o produtor deve criar obras que renovem de modo radical o sentido do material de pesquisa no qual se apoia. Um bom exemplo é a instalação multimídia Hell yeah we fucking die (2016[1]). Nela, Steyrel coleta vídeos do Youtube nos quais robôs estão sendo empurrados e agredidos em testes de equilíbrio e funcionamento. As imagens são então relacionadas a uma animação das cinco palavras mais utilizadas nas paradas musicais de língua inglesa da última década. Steyrel questiona conceitos como rapidez e eficiência, além de utilizar uma estratégia de combinação randômica de textos e imagens para comentar distorções na realidade.

A questão principal sobre a qual nos debruçaremos neste artigo é, portanto, se a arte pode ser aliada de disciplinas como o jornalismo investigativo, por exemplo, cumprindo função informativa, apesar de empregar estética experimental.  O ponto é que, se essa arte de recomposição tem potencial de impulsionar reflexão e gerar ressignificação, ela seria relevante na geração de uma estratégia que provoque abertura de horizonte do pensamento e da interpretação do universo sensível, desatando nós a partir da desconstrução de novos paradigmas estéticos.

A discussão apresentada acima oferece o contexto no qual propomos discutir resultados de uma pesquisa de mestrado. Nela, propusemo-nos a fazer uma reflexão sobre a obra do Coletivo Garapa e o lugar que ela ocupa no cenário das artes visuais no Brasil, vislumbrando uma visão mais abrangente de sua produção artística e, consequentemente, de nossas abordagens – muitas vezes instintivas – sobre temáticas e métodos utilizados na realização de nossos trabalhos. Realizou-se durante a pesquisa um exercício de reflexão sobre a produção em si do grupo, que pode contribuir nos processos criativos do Coletivo em futuros (e presentes) processos, além de oferecer ao leitor reflexões sobre um pequeno recorte do universo das artes visuais e do documentarismo contemporâneos no Brasil.

Neste texto, dedicaremos atenção especial ao livro de artista Postais para Charles Lynch[2], um trabalho que discute os linchamentos contemporâneos no Brasil e suas representações visuais. A obra tem como fagulha a onda de linchamentos ocorrida no país em 2014, iniciada com eventos noticiados pela mídia naquele ano. Como não há dados oficiais sobre linchamentos (o ato não é um crime tipificado no país), não se sabe ao certo se houve de fato um aumento no número de linchamentos ou se a visibilidade dos eventos foi maior por conta de sua veiculação nos meios de comunicação no período. De todo modo, a circulação das imagens de linchamentos em fotos e vídeos pela rede estimulou-nos a propor uma comparação entre o modo de divulgação e veiculação de tais imagens nos dias de hoje com as estratégias de circulação de fotografias de linchamentos no início do século XX nos EUA.

Naquela época, pessoas de diferentes estados e locais, trocavam entre si cartões-postais que estampavam fotografias de pessoas assassinadas por grupos de linchadores daquele país. Os linchamentos tinham como vítimas, em sua grande maioria, os negros do sul dos Estados Unidos; foram muito comuns após o fim da escravatura, mas os registros existentes chegam até os conflitos raciais do final dos anos 1960. É claro que há diferenças cruciais entre o contexto norte-americano e o brasileiro, o que torna a comparação bastante frágil: enquanto nos Estados Unidos dos séculos XVIII e XIX os linchamentos eram predominantemente rurais e de caráter racial, no Brasil, o fenômeno contemporâneo está diretamente ligado à intensa urbanização por que o país passou nas últimas décadas (ainda que existam registros também em áreas rurais), e em geral tem motivação moral.

Apesar disso, é possível buscar uma razão mais profunda para aproximar os dois contextos: para o pesquisador José de Souza Martins (1995), o caráter racial dos linchamentos nos Estados Unidos pós-escravidão representava uma crise mais profunda, que se manifestava como deterioração de uma hierarquia social preexistente, que na época colocava os brancos legalmente acima dos negros. Há uma dupla moral envolvida nos linchamentos, diz Martins, uma popular e outra legal. O linchamento representaria, em sua raiz, um julgamento dos códigos legais pela moral popular: “com seu ato, os linchadores indicam que há violações insuportáveis de normas e valores”. O linchamento não seria, portanto, uma manifestação da desordem, e sim de um questionamento da desordem, um questionamento da legitimidade do poder e das instituições. A crise brasileira que justifica os linchamentos é também uma crise de representação, e a violência uma forma de reação à sensação de desagregação de uma sociedade gestada pelo medo.

A partir da apropriação de imagens dos linchamentos publicadas na internet (sites como Youtube foram a fonte primária do trabalho), o Coletivo Garapa propôs a desconstrução das imagens da violência por meio da interferência nos arquivos digitais. Em um movimento de deformação criativa (Lubliner, 2017), as imagens apropriadas foram reconfiguradas utilizando o artifício de erro digital, conhecido como glitch. Este artifício tem sido incorporado ao universo das artes visuais nas últimas décadas por diversos produtores, e consiste na “quebra” de arquivos digitais (em sua maioria arquivos de imagem) e da incorporação dos derivados do processo em produtos artísticos. Elementos como a imprevisibilidade e o mal funcionamento, ou seja, o erro, passam dessa forma a integrar o trabalho de arte, tornando-se fonte de potência para interpretação das obras.

Em Postais para Charles Lynch, o glitch é causado pela utilização de comentários de ódio encontrados nos vídeos do Youtube, que são inseridos no código fonte dos frames de vídeo que integram o trabalho. O emprego dessas frases como “ferramenta” de destruição das imagens salienta uma camada fundamental da obra: aquilo que, de outra forma, seria recebido passivamente — um vídeo, fotografia ou gravação musical — agora tosse uma inesperada bolha de distorção digital. Seja ela intencional ou acidental, a falha (ou glitch) tem a capacidade de desnudar as estruturas (eletrônicas, econômicas, políticas) que organizam e se impõem ao mundo. Na medida em que somos apresentados a uma infinita e amorfa coleção de pacotes de dados, a poética, a estética e a ética voltem-se também para a discussão e a problematização dessas estruturas. Na falha reside uma potência poética (e política) de atuação.

Outra dimensão de Postais para Charles Lynch reside justamente na confecção do objeto. O livro de artista foi escolhido como forma para conectar as diferentes camadas da obra, que consistem em elementos analógicos e digitais. As imagens derivadas de arquivos digitais passam por um processo de manipulação, são impressas em método risográfico (procedimento gráfico de origem industrial que é um misto entre fotocópia e serigrafia) e costuradas manualmente a uma caixa de aço, previamente soldada. O livro reúne, então, as imagens (glitchs) em destaque, juntamente com alguns dos comentários de ódio utilizados para criar o defeito; um roteiro em formato televisivo/cinematográfico de um linchamento criado a partir dos áudios dos vídeos; uma fita LTO (linear tape-open), contendo o material visual bruto empregado na obra, acompanhado de um índice catalográfico em ordem alfabética do material.

O livro foi desenhado de modo a revelar e guardar em proporções calculadas. Ao mesmo tempo em que as imagens de violência recebem uma camada de informação digital que as altera, seu conteúdo mantém-se preservado. A fita LTO tem também essa função. As fontes primárias (vídeos do Youtube) infringem as regras de veiculação da plataforma e são, portanto, extremamente voláteis no universo digital (a plataforma deleta-os constantemente). Ao mantê-los em um meio altamente estável como é a LTO, a obra garante o arquivamento desse material. O livro é, desse modo, guardião de todo esse conteúdo, mantendo-o sob controle para que tais imagens não sejam esquecidas, mas também não circulem livremente, “encarnando uma espécie de caixa de pandora contemporânea” (Lubliner, 2017).

Postais para Charles Lynch traz consigo a sugestão de hackear a apatia e entorpecimento causados pelas imagens de violência, especificamente aquelas de linchamentos. É um livro que contém um elemento de ativismo, no sentido de que se constitui em um contexto que perpassa a criação artística, relacionando-se com o universo social no qual está́ inserido, gerando crítica e, possivelmente, ativação do público. A obra contribui na discussão sobre como as imagens podem nos ajudar a enxergar os conflitos sociais que emergiram no Brasil nos últimos anos.

Do mesmo modo, a produção do Coletivo Garapa reverbera nessa frequência. Propomos uma criação documental livre das estratégias convencionais do documentarismo, mas atrelada intrinsicamente à interpretação da história. Ela aceita a fragilidade do narrador, e supõe que os elementos de uma história são interpretados por quem a conta. A precisão rigorosa abre espaço para a interpretação poética e a consequente aceitação de que a fronteira entre fato e ficção é um território mais amplo do que imaginamos.

Quais os gestos criativos capazes de transformar em estético o anestésico? Como fixar a memória e assim reagir à barbárie? Se a arte luta contra o caos para torná-lo sensível, como disseram Deleuze e Guattari (1992), como então tornar sensível aquilo que parece nos encaminhar à insensibilidade?

Inúmeras questões vêm à tona ao tratarmos da arte que lida com informação. Seu conteúdo não deve ser apenas reprodução da estética do jornalismo, por exemplo, pois não seria plausível substituirmos o jornalismo com nossas narrativas. É necessário que encontremos a medida da crítica reflexiva sobre esse formato de serviço público (o jornalismo). Afinal, as artes tradicionalmente impulsionam a estética da cultura popular e do jornalismo e esse é o nosso objetivo enquanto produtores.

Nossos trabalhos têm potencial de servir como alavanca para a produção de informação. Como vimos, os espaços de distribuição desse conteúdo também são parte do questionamento. Transformar espaços de distribuição de arte em espaços que mostram esse tipo de documentário implica em uma adequação do público, que nem sempre está disposto a lidar com essa natureza de conteúdo no espaço de museus e bienais. É necessário nos questionarmos sobre como provocar indivíduos a ver no museu um tipo de conteúdo similar àquele que está́ disponível nos canais de comunicação convencionais. Qual é a medida estética para a apresentação desse conteúdo? As narrativas visuais que envolvem arte e informação correm grande risco de atingir um grupo extremamente reduzido de espectadores, sem perspectiva de expandi-lo. É necessário que, enquanto produtores, estejamos atentos à nossa audiência.

Acredita-se que, através da produção artística engajada, aquela que relaciona a prática artística com o ativismo, há um caminho no qual o fazer documental encontra tensão para criar narrativas que sejam relevantes em um cenário de crise de representação como o que vivemos hoje. Enquanto produtores de narrativas visuais, devemos colocar em diálogo a história da imagem técnica e suas tradições, com o novo contexto em que se insere a imagem a partir do avanço tecnológico exponencial no qual estamos inseridos.

Rodrigo Marcondes é mestre em divulgação científica e cultural pela Unicamp. Artista visual e pesquisador com ênfase na produção documental, nas áreas da fotografia, vídeo e instalação.

Antonio Carlos Amorim é pesquisador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) e professor na Faculdade de Educação, ambos na Unicamp.

Referências

Deleuze, G.; Guattari, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
Lubliner, C. Arte em imanência ou da insensibilidade à sensibilidade: Postais para Charles Lynch. In: Colóquio de cinema e arte da América Latina, 5., 2017, São Paulo. Anais. São Paulo: Universidade Anhembi Morumbi, 2017. v. 1, p. 15 – 15. Disponível http://docs.wixstatic.com/ugd/cf7463_494b7075122443b1bb5262bceffb7eb3.pdf.Acesso em: 02 abr. 2018.
Martins, J. S. “As condições do estudo sociológico dos linchamentos no Brasil”. Estud. av.[online]. 1995, vol.9, n.25, pp.295-310.
Steyerl, H. “Documentary uncertainty”. Re-visiones, 2011. Disponível em: <http://www.re-visiones.net/spip.php%3Farticle37.html> Acesso em 02 abr. 2018

Notas

[1] https://www.youtube.com/watch?v=sWw7CPczmU0
[2] Disponível em: https://vimeo.com/148360747