Preservação do patrimônio cultural é fundamental para hubs de conhecimento

Por Lívia Mendes Pereira

A criação do Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável (Hids) em Campinas visa à construção de uma estrutura que combina ações sustentáveis e impactantes nos eixos social, econômico e ambiental. Nesse contexto, o patrimônio histórico-cultural material e imaterial ganha destaque, e ações de preservação são pensadas para incorporá-lo aos projetos educativos, ambientais e tecnológicos.

A cidade de Campinas, até meados do século XX, era movida pela agricultura, e até hoje se destaca pelo expressivo território rural, correspondendo a 48% do total. Como destaca o arquiteto André Argollo, até fins do século XVIII a região era pouco habitada, servindo apenas de caminho para tropeiros que conduziam animais de São Paulo a Goiás, e pequenos núcleos urbanos davam apoio aos trabalhadores de passagem. Mais tarde foi povoada pela atividade de exploração da cana-de-açúcar, que em seguida foi substituída pela do café, que transformou Campinas num grande centro produtor. Há fazendas dessa época espalhadas pela cidade, e a região em que está sendo implementado o Hids abriga remanescentes de quatro delas.

Como destaque do patrimônio material, podem ser assinaladas as edificações das fazendas Pau d’Alho e Anhumas. Tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas (Condepacc), a casa principal da Fazenda Pau d’Alho foi reformada pelo arquiteto Ramos de Azevedo, e a da Fazenda Anhumas está em estudo de tombamento. Porém, ao contrário do que se pensa, o tombamento de uma edificação significa uma questão em aberto diante dos desafios da conservação. “A primeira coisa que temos que pensar é qual o nível de integridade do bem que queremos preservar. Esse bem é permeado por transformações que devem ser detectadas. Foi tombado em que nível? O que está tombado?”, destaca Mirza Pellicciotta, doutora em história cultural pela Unicamp e membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos Brasil). Junto com o arquiteto Fabio Di Mauro, ela divulga trabalhos de salvaguarda de bens históricos no site Patrimônio e Conservação.

No caso da fazenda Pau d’Alho, a historiadora lembra que o espaço foi vendido, na década de 1950, da família Aranha para a família de imigrantes holandeses Dutilh para criação de gado e produção de leite, embora no decorrer dos anos tenha tido outros usos. Em 2004, a casa principal foi adaptada pela iniciativa privada Casa Cor para uma exposição de decoração. “A fazenda foi objeto dessa intervenção e aquela propriedade do século XIX, que tem características suntuosas para uma zona rural, foi comprometida”, destaca Pellicciotta.

A historiadora defende que o diagnóstico dos patrimônios materiais e imateriais seja realizado em camadas históricas e não somente em escala arquitetônica, para que a partir daí sejam estabelecidas estratégias de conservação. “O universo da conservação é interdisciplinar e o estabelecimento de um plano de ação envolvendo pessoas é onde mora o segredo máximo. Conectar o ensino, a tecnologia e a preservação, trazendo pessoas para participar e entender os processos”, pondera Pellicciotta.

O fato de as fazendas Pau d’Alho e Anhumas estarem no território de um parque tecnológico e universitário traz possibilidades de transformação de suas sedes em laboratórios de conservação, a partir da interdisciplinaridade, que abre caminhos para diversas formas de intervenção. Como apontou Laura Martins de Carvalho, pós-doutoranda no Centro de Estudos sobre Urbanização para o Conhecimento e a Inovação (Ceuci), “a função da universidade é do ensino, da pesquisa e da extensão e tudo isso passa pela cultura. Desde a menor startup até as grandes multinacionais interessadas em fazer parte do Hids, elas têm que enxergar os patrimônios culturais como um valor diferenciado”.

Incentivos legais para a conservação patrimonial

A maior dificuldade para a conservação de patrimônios históricos no Brasil é a falta de regulamentações e políticas públicas que conciliem desenvolvimento urbano, preservação e recuperação de patrimônios. No âmbito da legislação existente, Laura Carvalho lembra que há a possibilidade de utilização da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), que é a criação de uma Unidade de Conservação (UC) de domínio privado, gravada na matrícula do imóvel, com o objetivo de conservar a diversidade biológica. Pessoas físicas ou jurídicas proprietárias de imóveis rurais ou urbanos podem requerer o documento. O selo UC traz alguns benefícios, como direito de propriedade preservado, isenção do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), prioridade na análise dos projetos pelo Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) e possibilidades de cooperação com entidades privadas e públicas na proteção, gestão e manejo da unidade. Porém, como lembra a pesquisadora, esse documento só se refere à questão natural e à biodiversidade, como nascentes e rios. No caso da junção entre patrimônio histórico-cultural e reserva natural particular ainda não há documentação legal.

Porém, assim como no RPPN, instrumentos de mediação entre proprietários e governo vêm sendo criados para patrimônios edificados. Mirza Pellicciotta cita o caso da legislação do Departamento de Patrimônio Histórico de São Paulo, em que os proprietários podem negociar o potencial construtivo de seus bens e obter compensações legais, como isenção do IPTU. No caso dos patrimônios existentes no território do Hids a historiadora sugere que a universidade passe a ser uma espécie de fiadora e corresponsável, estabelecendo uma parceria com os proprietários dos imóveis. Dessa maneira, ficaria mais fácil captar recursos para potencializar ações de acesso, turismo e educação, sem deixar de lado o rigor de preservação.

Exemplos de sucesso

Modelos de soluções que já foram colocados em prática e abrangem a preservação de patrimônio e a sustentabilidade podem servir de guia para a implementação do projeto de preservação patrimonial do Hids Campinas.

Pellicciotta destaca como exemplo a abertura do Museu Nacional do Açúcar e do Álcool, fruto do resgate da estrutura de uma usina de cana no interior de São Paulo, em Sertãozinho. A família que adquiriu a fazenda, com 15 prédios da antiga fábrica da família Schimidt, fez uma parceria para realizar a zeladoria na sede do Engenho Central por um custo baixo, pois o projeto abrangeu a triangulação com a educação formadora nas artes e ofícios de jovens da região.

Outro exemplo de território do conhecimento com soluções semelhantes ao previsto no Hids Campinas, como lembrou a pesquisadora Laura Carvalho, é a Floresta Nacional de Ipanema, no interior do estado de São Paulo, entre os municípios de Iperó, Araçoiaba da Serra e Capela do Alto. Desde 1992 ela é uma Unidade de Conservação Federal, administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Ministério do Meio Ambiente. Essa UC tem a missão de proteger, conservar e restaurar os remanescentes de vegetação nativa do domínio de Mata Atlântica e abrange a preservação de seus atributos naturais, históricos e culturais. Em seu território há um sítio histórico que reúne construções de diversos períodos da siderurgia brasileira. Essas construções datam de 1811 a 1913 e estão abertas à visitação.

Os dois exemplos demonstram como ciência, tecnologia e preservação podem andar juntas na construção de interpretação de diagnósticos, na dimensão educativa e interdisciplinar do processo conservativo, interconectando comunidade, território e universidade.

Lívia Mendes Pereira é doutora em linguística (Unicamp) e cursa especialização em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp