Quem manda nas gigantes de tecnologia?

Por Alexandre W.S. Hilsdorf, Dimitria Coutinho, Fernanda Cruz, Juliana Stern

Plataformas digitais são desafio para os setores envolvidos na governança da internet, e novas legislações impõem limites

Durante o período eleitoral que antecedeu o primeiro turno das eleições brasileiras de 2022, a Meta, empresa que gerencia o Facebook e o Instagram, removeu mais de 600 mil conteúdos que circulavam nas plataformas. As publicações foram deletadas porque violavam as regras da empresa contra violência e discurso de ódio.

Esse é um exemplo de como a moderação de postagens funciona atualmente nas grandes plataformas digitais: as empresas criam suas regras, os usuários aceitam os termos e as companhias aplicam sanções às publicações e perfis que violam esses princípios.

Esse modelo é conhecido como autorregulação. “É um cenário totalmente favorável às plataformas”, afirma Júlia Caldeira, pesquisadora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (Iris), de Belo Horizonte. Ela acredita que a falta de interesse dos usuários em conhecer as regras e a falta de legislação apropriada fazem com que as redes sociais “possam escolher a forma como essa relação vai acontecer”.

Um dos problemas apontados por Caldeira é que, para escapar de uma pressão regulatória, as plataformas se aproveitam do modelo de autorregulação e utilizam estratégias como pouca transparência e termos de uso mal explicados. Para a especialista, isso faz com que, no fim, a rede funcione a favor dos interesses dos que comandam as plataformas.

Como consequência desse cenário favorável às empresas, muitos abusos foram      constatados nos últimos anos. O uso massivo de dados pessoais dos usuários, a ação lenta para conter a disseminação de desinformação e o discurso de ódio, a permissividade à manipulação política e a aplicação desigual de moderação de conteúdo em partes do mundo são alguns dos exemplos citados por especialistas.

Bruna Santos, pesquisadora visitante no Centro de Ciências Sociais de Berlim (WZB, na sigla em alemão) e ativista da Coalizão Direitos na Rede, afirma que o debate sobre a regulação de internet tem avançado nos últimos anos. “Tanto sociedade civil quanto governo chegaram a um acordo de que não dá mais para fazer vista grossa para os abusos que esses atores facilitam”, comenta.

Para a pesquisadora, fica cada vez mais evidente que as regras que regem esses atores não deveriam ser debatidas apenas por eles, mas por todos os interessados. “Isso é um assunto que faz parte do debate geral de governança da internet e deveria ser discutido de maneira igual entre todas as partes”.

O desafio de uma conversa multissetorial sobre a governança das plataformas digitais se dá porque as próprias empresas cresceram para além da prestação de serviço original, ocupando assentos em mais de um setor envolvido nesse debate. E, a cada dia, sua influência abrange mais camadas da internet.

Empresas como Meta e Google, que começaram suas atuações online apenas na camada de conteúdo, já atuam também na área de infraestrutura, fornecendo cabos de internet, por exemplo. Para Santos, mesmo assim as companhias continuam sujeitas às regras de governança da internet, pois fazem parte dela. “A internet é uma rede coletiva de muitos pontos. Mesmo se diversificando, as plataformas não conseguem existir sozinhas nesse ambiente”, explica a pesquisadora.

As regulações por trás da autorregulação

Um dos atores que participa da governança da internet é o poder público. Nos últimos anos, novas legislações têm surgido no mundo para tentar conter o poder que as big techs (grandes conglomerados que atuam em diversos setores de tecnologia) exercem na rede.

Por trás da autorregulação das plataformas, portanto, existem regras que devem ser seguidas. É o caso, no Brasil, da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que entrou em vigor em 2020. Essa lei obriga, por exemplo, a clareza no consentimento de uso e compartilhamento de dados pessoais dos usuários, além de dar uma camada extra de proteção a informações sensíveis, como aquelas relacionadas à saúde, religião e filiação política.

Antes disso, a principal legislação era o Marco Civil da Internet, de 2014, que já trazia algumas noções de privacidade de dados pessoais. O Marco também previa que as plataformas só fossem punidas por publicações de terceiros caso não cumprissem ordem judicial para bloquear determinado conteúdo.

Embora tenham ocorrido avanços, a legislação brasileira ainda dá margem para que as plataformas digitais cometam alguns abusos. Uma das questões debatidas entre pesquisadores do tema e atores da sociedade civil é o aumento da transparência das redes sociais no que diz respeito à aplicação de suas próprias regras. Esse é um dos tópicos debatidos no Projeto de Lei nº 2.630/2020, conhecido como PL das Fake news, que tramita no Congresso.

Inspiração europeia

No que diz respeito a leis relacionadas à governança da internet, a Europa vem tomando a liderança nas decisões, inspirando legislações em todo o mundo. A LGPD, por exemplo, tomou como base diversos aspectos do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR, na sigla em inglês) europeu, de 2016.

Em julho deste ano, a União Europeia aprovou duas novas leis que regulam a atuação das big techs no bloco: a Lei de Mercados Digitais (DMA, na sigla em inglês) e a Lei de Serviços Digitais (DSA, também em inglês). Enquanto a DSA foca na proteção dos direitos dos usuários na internet, a DMA tem o objetivo de coibir práticas anticompetitivas, gerando um mercado online mais justo.

Com a DMA em vigor, as gigantes de tecnologia estarão sujeitas a regras que garantem a competitividade. Por exemplo: grandes mensageiros, como Whatsapp, Facebook Messenger e iMessage, terão de interoperar com aplicativos menores, permitindo a troca de mensagens entre um app e outro; para que seus dados pessoais sejam usados com fins publicitários, os usuários terão de autorizar; ao comprar um novo smartphone, as pessoas poderão escolher o navegador, o assistente virtual e o mecanismo de pesquisa, sem ter de usar o que é imposto pelo fabricante.

Para Camila Leite Contri, advogada e pesquisadora do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e coordenadora do Núcleo de Direito Concorrencial e Economia Digital (Nuced) da Universidade de São Paulo (USP), a DMA teve as regras balizadas pelo histórico de práticas já investigadas e punidas pelas autoridades europeias.

Um exemplo foi uma multa aplicada ao Google, em 2017, por conta da ferramenta de comparação de preços Google Shopping. Uma investigação mostrou que a empresa estava priorizando o Shopping em detrimento de outros recursos concorrentes nos resultados da busca. A prática é conhecida como autorreferenciamento.

“A conduta não só influencia negativamente o surgimento de outras plataformas concorrentes, como também prejudica os consumidores, porque eles não encontram as alternativas”, defende Contri.

Na ocasião, autoridades antitruste (que verificam a formação de trustes, cartéis e monopólios) da União Europeia condenaram o Google em 2,42 bilhões de euros (aproximadamente 12 bilhões de reais). Em processo semelhante realizado no Brasil, diferentemente da Europa, as autoridades brasileiras arquivaram as denúncias de má conduta da plataforma, resultando na falência de alguns buscadores de preço no país, como o Buscapé.

“A combinação de dados faz com que uma empresa se torne cada vez mais forte em diferentes segmentos, muitas vezes sem garantir uma transparência para os consumidores”, argumenta a pesquisadora do Idec.

Procurado pela reportagem, o Google informou que fez modificações no Shopping após a condenação. “As alterações que fizemos nos anúncios de Shopping em 2017 estão funcionando com sucesso, gerando crescimento e emprego para centenas de serviços de comparação de compras, que operam mais de 800 websites em toda a Europa. O sistema está sujeito a um monitoramento intenso realizado pela Comissão Europeia e por dois peritos externos. Aguardamos com expectativa a defesa do nosso caso no tribunal”, afirma a empresa, em nota.

Leis como DMA e DSA podem servir de inspiração para discussões em outras partes do mundo, inclusive no Brasil. A tropicalização de regras de internet similares às europeias já ocorreu no país – com a GDPR, por exemplo –, e as discussões recentes mostram que isso pode se repetir.

Para Santos, muitas das diretrizes que estão nas novas regulações europeias são discutidas também no Brasil. “São debates já postos no país que talvez mereçam apenas ser reforçados de maneira mais categórica”.