Diversidade, participação e representatividade na governança da Internet

Por Laura Conde Tresca

A democracia é um regime político que tem como uma de suas características a qualidade de ser inteiramente, ou quase inteiramente, responsivo a todos os seus cidadãos (Dahl, 1997). Uma democracia pode ser considerada mais desenvolvida quanto melhor conseguir lidar com as diferenças que existem dentro de uma sociedade.

Outro pressuposto que também deve ser levado em consideração diz respeito ao fato de que, para um governo continuar sendo responsivo durante certo tempo aos seus cidadãos, é necessário que todos estes tenham oportunidades plenas de: a) formular suas preferências; b) de expressar suas preferências a seus concidadãos e ao governo através da ação individual e coletiva; c) de ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem discriminação decorrente do conteúdo ou da fonte de preferência. (Pereira, 2014)

Quanto maior a oportunidade de organizar e expressar interesses, maior a probabilidade de que eles sejam representados. Por isso, a participação de diferentes grupos de cidadãos nos processos democráticos precisa ser estimulada e valorizada. E ninguém melhor que representantes desses grupos para defender as questões que lhes interessam. Uma vez que os interesses hegemônicos tendem a se reproduzir ao longo do tempo, condições objetivas de participação devem ser facilitadas para grupos historicamente excluídos ou minorizados.

Homens e mulheres não vivenciam nem se beneficiam de maneira igualitária da internet. Também não há igualdade de oportunidades para seu desenvolvimento e tampouco para participar de sua governança no Brasil e internacionalmente. O cenário é ainda pior quando se trata de pessoas negras. Assim, para a formulação de diretrizes democráticas para o acesso, uso e desenvolvimento da internet, as diferenças entre homens, mulheres, brancos, negros, indígenas e outras interseccionalidades precisam ser elaboradas, expressas e enfrentadas.

Apreender o todo da internet é uma tarefa muito difícil. Envolve conhecer telecomunicações, eletrônica, protocolos lógicos, linguagens de programação, além de todo conhecimento sobre regulamentos e leis. Em princípio, tudo é muito complexo, técnico, fragmentado e especializado. E cada camada da internet tem seus fóruns específicos de formulação de diretrizes, normas e até acordos tácitos. Tal qual a própria internet, a governança da internet é complexa.

A governança da internet ocorre, na prática, por diversos métodos, em diferentes espaços de negociações. O multilateralismo tradicional e a regulação estatal mostraram-se insuficientes para estabelecer regras e criar parâmetros relacionados à internet; por outro lado, as decisões de mercado também se mostraram limitadas. Nesse contexto, ganha relevância e importância ações multissetoriais de governança. Às vezes, os parâmetros da internet são estabelecidos pelo amadurecimento do debate entre as partes interessadas, sem necessidade de uma regulação tradicional. São espaços de negociação de posições, determinação de princípios, estabelecimento de padrões. Espaços em que o exercício de fala é exercício de poder. Surgem códigos de conduta, termos de uso, declarações de princípios, posicionamentos, recomendações, guias etc.

As instituições de governança como o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), os fóruns de internet como o Fórum da Internet no Brasil (FIB) ou o Internet Governance Forum (IGF) e outros eventos de governança são espaços importantes para incidir nos rumos da internet, mas não são os únicos. Pode ocorrer participação em consultas públicas, reuniões de advocacy no legislativo e executivo, representação em conselhos públicos ou privados relacionados às novas tecnologias, audiências públicas, entre outras possibilidades que formam todo um campo de atuação e incidência (Tresca, 2021).

A complexidade é real, mas existem processos criados para tudo se tornar um nicho em que só algumas pessoas – homens brancos com alto grau de escolaridade e especialização – conseguem ou têm disponibilidade para acompanhar. A própria afirmação constante de que os debates são muito técnicos, em si, é um elemento que inibe a participação e afasta interessados, principalmente mulheres. Embora as “portas abertas” sejam celebradas em muitos desses fóruns, cada um tem suas barreiras para a participação e diversidade.

A participação e a diversidade têm que ser estimuladas, fomentadas. Por exemplo, passa por apoiar materialmente quem não tem recursos financeiros para estar nesses fóruns, muitas vezes implica em explicar os conceitos mais básicos para que as pessoas estejam bem informadas ou ter uma dinâmica específica de facilitação de reuniões. Participação exige condições político-sociais, ideológicas, materiais, institucionais, metodológicas para ser possível e efetiva.

Não é suficiente que eventos, fóruns e instituições sejam apenas lugares abertos à participação “de quem quiser”. Por exemplo, ao longo de sua história, o CGI.br teve 227 conselheiros e conselheiras, titulares e suplentes. Destes, 27 são mulheres, apenas 14 foram titulares, o que representa somente 11,9% de todos/as conselheiros/as titulares (Tresca, 2021).

No caso do CGI.br, as próprias regras institucionais vão modelando a organização e as possibilidades de participação. Os procedimentos para composição do CGI.br no passado não foram estabelecidos com uma preocupação com a diversidade e atualmente mudanças institucionais são um desafio enorme e difíceis de serem alcançadas. No caso de representantes eleitos, a primeira barreira é ser apontada como candidata, porque na disputa estão homens – que só por serem homens já têm privilégios em nossa sociedade. Se organizações que se preocupam com essa pauta sequer compõem o colégio eleitoral do CGI.br, a diversidade nunca teria sido pauta dentro do CGI.br.

Embora o CGI.br e o NIC.br, ao longo do tempo, em suas atividades cotidianas (participação em mesas, seleção de participantes, composição de comissões de avaliação etc) tenham uma preocupação demonstrável com a diversidade, essas ações muito pontuais tinham alcance limitado para influenciar a formulação de diretrizes para o acesso, uso e desenvolvimento da internet no Brasil mais igualitária. Atento a esse grande desafio, a partir da proposta de conselheiras mulheres, o CGI.br desde 2021 ampliou suas atividades com relação ao tema e criou um grupo de trabalho específico para tratar de gênero, raça e diversidade.

Como parte do plano de trabalho desse grupo, ao longo de 2022 foram realizadas três consultas multissetoriais, em São Paulo, Brasília e Recife com o objetivo de identificar quais eram os desafios para que homens e mulheres se beneficiassem de maneira mais igualitária da internet. Esses desafios foram priorizados, trabalhados analiticamente e resultaram na identificação de 10 temas principais:

  1. Produzir dados com recorte de gênero, raça e etnia sobre presença e participação no setor de tecnologia;
  2. Promover políticas com perspectiva de gênero, equidade e diversidade;
  3. Desenvolver políticas públicas e privadas que promovam a diversidade e equidade no acesso à internet;
  4. Apoiar e fomentar iniciativas da sociedade civil que promovam a diversidade dentro do ecossistema da internet;
  5. Capacitar meninas e mulheres em TICs, consideradas as perspectivas interseccionais de classe, raça, idade, sexualidade e das pessoas com deficiência;
  6. Criar um ambiente de trabalho favorável para mulheres nas empresas de internet e tecnologia;
  7. Empoderamento econômico das mulheres online;
  8. Garantir o acesso à informação e o exercício da liberdade de expressão de mulheres na internet;
  9. Enfrentar a violência de gênero, raça e diferentes formas de opressão nas plataformas de redes sociais/ na internet;
  10. Garantir diversidade de gênero e raça nos espaços de governança da internet

As participantes também formularam possíveis ações que poderiam ser adotadas para redução das desigualdades digitais e seus impactos na sociedade. Tais sugestões estão sendo processadas, analisadas e devem gerar um documento de orientação para atuação no tema não só por parte do CGI.br, mas para toda a sociedade. É o que estamos chamando de Agenda de Gênero, Raça e Diversidade. Considerando o papel do CGI.br para formulação de diretrizes estratégias para desenvolvimento da internet no Brasil, se espera que essa ação específica possa fomentar uma internet mais plural e diversa, não só em seu uso, mas também com relação a sua governança.

Há muito se sabe que as tecnologias não são neutras. Elas são desenvolvidas para atender certas necessidades. Em um mundo capitalista, as necessidades do capital. Essa tecnologia produzida a partir da lógica de mercado tende a reproduzir as estruturas sociais em que vivemos – também necessária para a reprodução do capital. Isso também ocorre com a internet. Mas não precisa ser assim. É possível desenvolver tecnologias baseadas em direitos fundamentais, princípios de inclusão, da valorização dos saberes locais e que se empenhe em não reproduzir as desigualdades, exclusões e violências existentes em nossa sociedade. Por isso, a participação, a diversidade e a representatividade na governança da internet importam.

Laura Conde Tresca é cientista social pela USP, jornalista e mestre em comunicação pela Umesp. Atua com políticas de internet desde 2007. Membro do CGI

Referências

Dahl, R. A. Poliarquia: participação e oposição. Edusp, 1997.
Pereira, A. K. B. Teoria democrática contemporânea: o conceito de Poliarquia na obra de Robert Dahl. Caxambu: 38º Encontro Anual da Anpocs, 2014.
Tresca, L. C. “Participação de mulheres na governança da internet no Brasil”. In: Comitê Gestor da Internet no Brasil [CGI.br]. (2021). Coletânea de Artigos – TIC, Governança da Internet e Gênero – Tendências e Desafios. https://cgi.br/media/docs/publicacoes/4/20210422084146/ColetaneadeArtigos_TIC_GovernancadaInternet_Genero_digital_CGIbr.pdf