Um enorme ser humano, uma enorme obra: o primeiro livro de Toni Morrison, O olho mais azul

Por Tainá Scartezini

Uma mulher negra revira a lixeira. Procura algo: um objeto descartado, restos de comida, talvez. Enquanto mexe no lixo, fala sozinha, repete uma história que a cada nova enunciação fica menos pontuada, menos espaçada, mais fragmentada. Encontramos com essa mulher pelas ruas de muitas cidades: Rio, São Paulo, Lorain, insira aqui a sua também. Em São Paulo, de onde escrevo, no trajeto entre minha casa e a padaria mais próxima, vejo mais de uma. O que aconteceu com ela para que ficasse assim? O que aconteceu conosco para que a deixássemos assim? É no espaço vazio deixado por perguntas como essas que Toni Morrison (1931-2019), professora emérita da Universidade de Princeton, tece a narrativa de O olho mais azul.

A autora ganhou o Pulitzer em 1988 por sua obra Amada e recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1993, sendo a primeira, e até o momento única, mulher negra laureada na categoria. Seu romance de estreia, O olho mais azul, publicado originalmente em 1970, conta a história de Pecola Breedlove, uma menina de 11 anos traumatizada pelos perversos efeitos do racismo e da desigualdade social. Essa garota se tornará uma dessas mulheres.

Ao longo do romance, acompanhamos o crescimento de Pecola, a protagonista, e de Claudia MacTeer, uma das narradoras, na mesma cidade em que nasceu a escritora, em Lorain, Ohio, no norte dos Estados Unidos, nos anos 1940. A narrativa, que vaga pelo tempo, explorando o passado e o futuro das personagens, concentra-se num outono de 1941, época na qual as leis de segregação racial, conhecidas como leis Jim Crow, ainda eram vigentes. Ali, nessas circunstâncias, Pecola e Claudia têm suas primeiras experiências e descobertas de vida. São jovens meninas negras de diferentes origens; a primeira, filha de migrantes do sul, e a segunda, de uma família afro-americana do norte, que descobrem ao mesmo tempo a menstruação, os padrões de beleza e a violência. Embora façam parte da mesma geração, essas meninas reagem a tais descobertas de modos díspares, por vezes antagônicos. Enquanto Pecola reza todas as noites para ter olhos azuis, Claudia destrói a boneca da Shirley Temple (atriz mirim loira de olhos claros popular nos anos 1940) que ganhara de Natal. Experiências contrastantes, sem dúvida, mas ambas decorrentes de respostas a um mesmo padrão estético que as exclui daquilo que é belo. Exclusão esta que é operada por meio de duas vias complementares: pela associação de elementos culturais e físico negros ao que é feio, e pela consideração de que apenas características fenotípicas brancas são bonitas.

Escrito entre 1965 e 1970, portanto contemporâneo ao movimento pelos direitos civis, o livro aborda temas acalorados da década, como injustiça, discriminação, racismo e desigualdade. Foi só nesse período, na década de 1960, que as leis de segregação racial, consideradas inconstitucionais em 1954, foram amplamente revogadas em todos os estados americanos. Mas o livro passa por outros temas também, como  o amadurecimento, a infância, o sexo e a religião. Para tanto, a autora intersecciona gênero, raça e classe nas experiências dos personagens.

Apesar de centrado em Pecola, a obra contém uma pluralidade de experiências de vida negras, as quais nos são contadas por dois narradores e por pequenos trechos que remetem a um surto psicótico. Uma das vozes narrativas é Claudia, em dois momentos de sua vida. Na infância, quando transcorrem os principais acontecimentos do livro, e já adulta, relembrando o que aconteceu no outono de 1941. A outra é um narrador oculto que relata o passado de alguns personagens secundários, provendo mais informações sobre eles e também sobre a história afro-americana. Não obstante, o livro é dividido ainda em quatro partes, nomeadas de acordo com as estações, cada qual subdividida em capítulos e cenas.

Tal estrutura, aliada aos temas sensíveis, pode tornar a leitura um tanto quanto difícil. Mas o compromisso da literatura, afinal, não é com a facilidade. Antes, se é que alguma forma de arte tem algum compromisso, é provocar e desestabilizar, e isto Morrison faz com maestria. Mesmo assim, por conta dessa narrativa não-linear que espelha tanto a memória de uma Claudia adulta refletindo sobre algo que aconteceu em seu passado, bem como a crescente loucura de Pecola, alguns trechos podem soar um pouco confusos, produzindo incertezas sobre quem é o narrador.

Nesse labirinto de memória e de deterioração da lucidez, somos convidados a acompanhar Pecola e Claudia em suas histórias cujos passado e presente se fazem simultâneos. No entanto, ao contrário das estações, em constante mudança, percebemos que não haverá outro outono para Pecola. Presa para sempre no delírio de ter olhos azuis, forma que encontra para expressar a necessidade, que lhe é negada, de receber o mesmo carinho e proteção conferidos às vidas brancas, Pecola não conseguirá recriar sua própria vida. Mas, ao fornecer uma linguagem para pensar a respeito daqueles que a perderam, narrando o dano ao discernimento de um sujeito, Morisson nos devolve, justamente, a razão.

Toni teria completado 89 anos em fevereiro. Por ocasião de seu falecimento no ano passado, Fran Lebowitz, também escritora, a descreveu para a The Paris Review, proeminente revista americana no meio intelectual, como “um enorme ser humano. Conheci muitas pessoas inteligentes na minha vida, mas Toni era a mais sábia”. Em 2019, O olho mais azul ganhou uma nova edição da Companhia das Letras e foi também editado pela Tag Curadoria, por indicação de Djamila Ribeiro. Sua leitura, em tempo nos quais movimentos como o Black Lives Matter continuam mais do que necessários, é incrivelmente atual.

Tainá Scartezini é mestranda em antropologia pela USP e cursa a especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp. Desenvolve um podcast de divulgação científica de antropologia, o Selvagerias.