Por Tainá Scartezini
Equipes multidisciplinares trabalham para que as pinturas durem e encantem por centenas de anos.
Restauro e conservação de arte são a mesma coisa? Para Yara Petrella, que trabalha há 29 anos no Museu Ipiranga, também conhecido como Museu Paulista da USP e localizado no conjunto arquitetônico do Parque da Independência na cidade de São Paulo, a resposta é sim e não. Ela afirma que “em certa medida essas palavras são sinônimos, mas a conservação é um conjunto de intervenções. Conservar uma obra evita que ela seja restaurada no futuro. Por isso incentivamos a conservação, para minimizar danos e evitar restauração mais intensa”.
No entanto, alerta que ambas, conservação e restauração, são altamente científicas. A primeira envolve profissionais de ventilação e até microrganismos e pragas urbanas, exigindo amplo conhecimento no assunto; a segunda, também bastante interdisciplinar, requer conhecimentos específicos de análise química e física.
Yara, formada em arquitetura e doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, atualmente se dedica à restauração do quadro Independência ou morte (1888), do pintor brasileiro Pedro Américo, o qual retrata a proclamação da independência por Dom Pedro I. A obra será destaque em 2022 por ocasião do bicentenário da independência e da reabertura do Museu do Ipiranga.
O quadro de Américo é um exemplo da natureza interdisciplinar da atividade de restauro, pois contou com a assessoria dos físicos Márcia Rizzuto e Pedro de Campos, além das químicas Dalva de Farias e Isabela Sodré dos Santos, todos pesquisadores da USP. Esse tipo de colaboração com cientistas é recorrente, justamente pela característica interdisciplinar da atividade. “Nenhum restaurador abarca tudo, sempre precisa de auxílio”, diz Yara, relembrando que algumas obras restauradas do museu já contaram com análises não só de pesquisadores da USP como também do Instituto e Pesquisa Aplicadas (IPT), para identificação de elementos químicos presentes na tela.
Contudo, segundo Yara, alguns testes para identificar pigmentos são realizados no próprio museu. Em geral, eles não necessitam de muitos equipamentos, a exemplo do exame de fotografia ultravioleta (UV), que consiste em fotografar o quadro enquanto ele é exposto à luz UV. Caso apareçam marcas arroxeadas, significa que a obra foi retocada ou alterada. Isso permite ver as áreas que receberam pigmentos novos, afirma, pois “as tintas mais recentes se apresentam mais escurecidas, mais arroxeadas, diferentes das antigas”.
Existem ainda outras técnicas usadas pelos restauradores para analisar o estado de conservação das obras. É o caso do exame com infravermelho, o qual permite observar além da última camada de tinta sem danificar a pintura. Este exame revela os caminhos da composição do artista, mostrando áreas que ele “apagou”, isto é, cobriu e repintou.
Outro uso da análise dos pigmentos é datação de obras de arte. Marco Giannotti, pintor e professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, exemplifica. “Se é um quadro do renascimento, ele não pode ter um pigmento azul da Prússia, que só foi sintetizado 200 anos depois. Ou seja, o estudo dos pigmentos permite não só fazer uma restauração correta como também ajuda a datar o período em que o quadro foi realizado. Isso também evita as falsificações, porque você pode fazer uma análise química e demonstrar que o quadro foi produzido na época em que ele está atribuído”.
Retomando a questão do restauro, Yara ressalta também que a obra deve passar por um processo de documentação para levantar seu histórico de produção, bem como ter registrado todo o processo da análise e intervenção. “Há muito trabalho para documentar o estado de conservação, entender como o pintor atuou, que linguagem usou, como trabalhou os danos ocorridos”, diz a restauradora. No caso de Independência ou morte, por exemplo, graças à documentação sobre a tela, era já conhecida uma perda pictórica na região do céu, com uma grande repintura “inclusive com uma cor que não era a cor do céu, e resgatamos as cores do original”, conta.
O envelhecimento dos quadros é um processo que ocorre naturalmente com o passar dos anos, mas pode ser retardado com os cuidados de conservação. Tanto Yara quanto Marco afirmam que as cores escurecem com o tempo. Segundo Marco, “já no dia seguinte à pintura as cores passam por transformações, e isso faz parte da natureza da vida, bem como das pinturas. É bonito ver como alguns artistas conseguem dominar a técnica de tal forma que faça com que os quadros envelheçam bem, como o bom vinho”.
Aí está, justamente, a importância do uso de um verniz de boa qualidade na restauração. “O verniz escurece as cores quando velho. As cores envelhecem com a tinta e o tempo, mas o verniz ajuda a dar uma vibrada nas cores tais como elas podem ser hoje, retirando o acúmulo que ficou por cima”, diz Yara. A restauradora conta que os vernizes mais antigos usados na atividade de restauro costumavam amarelar conforme envelheciam porém, hoje, a tecnologia ajuda a finalizar o acabamento da obra, conferindo proteção ultravioleta e controle de brilho.
Passo a passo
Após o levantamento histórico e a análise da obra, é iniciada a restauração propriamente dita. De acordo com a funcionária do Museu do Ipiranga, depois de uma limpeza geral com água deionizada, ou seja, sem sais minerais, que tira a sujeira acumulada na pintura, é retirado o verniz usado originalmente (ou em outros restauros) com gel de xileno. Na sequência, é feito o retoque com pigmentos à base de Paraloid b72, que, diferente da tinta a óleo, sai com maior facilidade. É importante que ele seja usado mesmo nos casos em que os quadros foram pintados com tinta a óleo, pois as intervenções do restauro devem possibilitar sua retirada em um futuro processos de restauração. Como ocorreu com o quadro de Pedro Américo.
Questionada sobre os limites da intervenção do restaurador, Yara responde que o critério absoluto é retocar somente em lugares onde houve perda pictórica. Para ela, “a melhor restauração, inclusive esteticamente, a mais bonita, a mais séria e responsável, é a menor possível, do tipo menos é mais. Temos que saber os limites que a obra impõe e fazer o menos possível. Nesse caso de Independência ou morte, eu tinha certeza sobre onde havia intervenções prévias, e mesmo a olho nu dava para ver a cor amarela. Com os exames, vimos mais camadas que tivemos de retirar. No restante da obra, nos personagens e no fundo de terra, os danos eram minúsculos. A obra está muito bem, felizmente”.
Colaborou Paula Gomes
Tainá Scartezini é mestranda em antropologia pela USP e cursa a especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp. Desenvolve um podcast de divulgação científica de antropologia, o Selvagerias.