Velho Oeste informacional: disputa pela atenção pública tornou-se muito mais selvagem e caótica

Por Luis Felipe Miguel

Atire a primeira pedra quem nunca foi seduzido pela notícia de um barraco entre anônimos, uma baixaria de celebridades, um crime horripilante, um acidente bizarro, uma descoberta científica suspeita, uma façanha de algum animal fofo. No novo ambiente das redes, tudo isso aparece em pé de igualdade com a guerra da Ucrânia, a reforma da Constituição, o colapso climático.

Quem estudou a relação entre mídia e política nos tempos pré-internet certamente conheceu a hipótese do agenda setting. Formulada por Maxwell McCombs e Donald Shaw em artigo de 1972, ela se tornou imensamente influente.

Mas a ideia vem de antes. A frase que a resume está em um livro de Bernard Cohen, publicado nos anos 1960, sobre a imprensa e as relações exteriores dos EUA, que diz mais ou menos assim: “a imprensa não determina o que pensar, mas sobre o que pensar”.

De fato, a mídia forneceria uma relação hierarquizada de questões “importantes” para o público – graças, por um lado, à sua capacidade de selecionar os fatos a serem noticiados (“função de gatekeeper” da imprensa) e, por outro, à sua posição de janela para o mundo ao qual não temos acesso por experiência direta (“dependência cognitiva” da audiência).

A agenda da mídia influenciaria o público, os políticos, os tomadores de decisão. E seria influenciada, por sua vez, seja pelas práticas profissionais do jornalismo, seja pelos interesses das empresas, gerando vieses com impacto no jogo político.

A posição cada vez mais central das novas tecnologias da comunicação mudou o cenário. Por um lado, o jornalismo enfrenta a concorrência de muitos outros agentes (o que era a esperança de “democratização” da produção da agenda, mas virou um Velho Oeste informacional). Por outro, com o consumo de notícias fragmentado nas redes, a imprensa perdeu capacidade de hierarquizar notícias. Os algoritmos das big techs se tornaram o  gatekeeper universal.

A disputa pela atenção pública, que sempre foi parte central da economia da informação, tornou-se muito mais selvagem e caótica.

Os discutíveis “valores-notícia” que presidiriam as escolhas do jornalismo cedem lugar a “valores-compartilhamento”, próprios da lógica das redes. Cresce o peso das informações de apelo imediato, intranscendentes, que antes a imprensa “séria” noticiava sem maior destaque. É o império do fait divers, que Roland Barthes definiu como aquilo que não remete a nada além de si mesmo, que não tem contexto, que não exige qualquer conhecimento do mundo. E que, portanto, oferece uma gratificação sem esforço ao consumidor da informação.

Atire a primeira pedra quem nunca foi seduzido pela notícia de um barraco entre anônimos, uma baixaria de celebridades, um crime horripilante, um acidente bizarro, uma descoberta científica suspeita, uma façanha de algum animal fofo.

No novo ambiente das redes, tudo isso aparece em pé de igualdade com a guerra da Ucrânia, a reforma da Constituição, o colapso climático.

O resultado não é a saudável disputa por agendas, a partir de posições sociais e políticas diversas, que os entusiastas da internet imaginavam. É um debate público degradado, em que o sensacionalismo impera e nada é aprofundado.

Há mais de 20 anos, o jornalista Ignacio Ramonet observava que obter informação exige esforço. O fait divers nos poupa de qualquer esforço, mas em troca a informação que recebemos é desprovida de qualquer valor.

Para a extrema-direita, é o paraíso. Quanto menos reflexão, mais fiel é o gado. E se a questão é chamar a atenção do público com apelos fáceis, nada como fake news.

O resultado é um ambiente de debate público contaminado por mamadeira de piroca, banheiro unissex nas escolas, kit gay, castelo no Uruguai, ideologia de gênero e coisas afins.

Para saber mais:

MIGUEL, Luis Felipe (2022). “O lugar do jornalismo no novo ambiente comunicacional”. Tempo Social, vol. 34, nº 2, pp. 195-216.

endereço do link: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/195368/185488 [acessado em 27 de junho de 2023]

Luis Felipe Miguel é professor titular do Instituto de ciência política da Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), e pesquisador do CNPq. Publicou, entre outros, os livros Democracia na periferia capitalista: Impasses do Brasil (Autêntica, 2022), O colapso da democracia no Brasil: da Constituição ao golpe de 2016 (Expressão Popular, 2019), Dominação e resistência – Desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018), Consenso e conflito na democracia contemporânea (Ed. Unesp, 2017), Notícias em disputa – Mídia, democracia e formação de preferências no Brasil (com Flavia Biroli, Contexto, 2017), O nascimento da política moderna: de Maquiavel a Hobbes (Ed. UnB, 2015), Democracia e representação: territórios em disputa (Ed. Unesp, 2014), Feminismo e política: uma introdução (com Flávia Biroli; Boitempo, 2014) e Mito e discurso político (Ed. Unicamp, 2000).

[publicada originalmente no Facebook em 27 de junho de 2023]