Christian Dunker: crise de saúde mental, clínicas abertas, redes sociais e divulgação científica

Em vídeo e texto, Mateus Bravin Lopes e Alan Felipe entrevistam Christian Dunker, psicanalista da USP e autor de vários livros que mantém há 3 anos o canal ‘Falando Nisso’ no Youtube:

“Nós temos 40 anos que antecederam essa hoje consensual crise em saúde mental. Um dos fatores é a modificação profunda de nossas formas de trabalhar. Então temos trabalho por projeto, trabalho precarizado, trabalho intermitente. Isso gera não só uma alteração no nosso cotidiano, mas o reposicionamento da função de sofrimento. São formas de gerenciar o trabalho ligadas ao aumento do sofrimento dos sujeitos para que produzam mais. Você atemoriza com a paranóia do desemprego, você pratica bullying ostensivo. São formas de gerenciar que vão até o coaching e companhia, verdadeiras fontes de insalubridade mental.”

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP (2014) junto ao Departamento de Psicologia Clínica. Obteve o título de livre docente em psicologia clínica (2006) após realizar seu pós-doutorado na Manchester Metropolitan University (2003). Tem experiência na área clínica com ênfase em Psicanálise (Freud e Lacan) e coordena, ao lado de Vladimir Safatle e Nelson da Silva Jr., o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Em 2012 ganhou o prêmio Jabuti de melhor livro em psicologia e psicanálise com a obra Estrutura e constituição da clinica psicanalítica (Annablume, 2010). Publicou O cálculo neurótico do gozo (Escuta, 2002), A psicose na criança (Zagodoni, 2014), Mal-estar, sofrimento e sintoma (Boitempo, 2015) e Por quê Lacan? (Zagodoni, 2016). Mantém no YouTube o canal Falando Nisso, com 173 mil inscritos até o momento.

Abaixo você lê o depoimento de Dunker e pode acessar a conversa em vídeo (em duas partes):

Em saúde mental, a dificuldade está na tarefa de construir uma narrativa onde o sofrimento produz minimamente sentido. Que ele organize não só o entendimento de quem eu sou e para onde eu vou, mas para práticas concretas para me reposicionar diante do outro, diante do desejo e diante da vida. Esse processo depende de um trabalho psíquico que a gente durante 40 anos falou “não precisa ter, amigo, compra pronto, reutiliza e vai dar tudo certo”. Não deu.

Para se ter uma ideia o que é a crise da saúde mental no mundo, se você pegar todos os especialistas psicólogos, teóricos, assistentes sociais, psiquiatras e juntá-los na Inglaterra que é o país onde tem a melhor equipagem de saúde mental você não atende um terço da população que precisa.

Então nós estamos falando de um negócio que não vai ser resolvido por nós. Nem que eu atenda dia e noite, coloque todos os meus alunos e a gente só faça isso a gente não vai mexer nada com o tamanho da encrenca. A encrenca passa por: os professores pararam de escutar os seus alunos, os médicos pararam de escutar seus pacientes, cada um se resolve com seu transtorno porque isso é uma coisa cerebral de seu indivíduo e a gente tem vergonha de falar sobre isso, a gente tem vergonha de enfrentar isso coletivamente. Tem que mudar e bem rápido.

Nós temos 40 anos que antecederam essa hoje consensual crise em saúde mental. Um dos fatores é a modificação profunda de nossas formas de trabalhar. Então temos trabalho por projeto, trabalho precarizado, trabalho intermitente. Isso gera não só uma alteração no nosso cotidiano, mas o reposicionamento da função de sofrimento. São formas de gerenciar o trabalho ligadas ao aumento do sofrimento dos sujeitos para que produzam mais. Você atemoriza com a paranóia do desemprego, você pratica bullying ostensivo. São formas de gerenciar que vão até o coaching e companhia, verdadeiras fontes de insalubridade mental.

O DSM (manual de diagnóstico estatístico de doenças mentais) de 2015 não entregou nenhum marcador biológico com 40 anos de pesquisa em neuropsicologia e neuropsiquiatria, não nos mostrou nenhuma causa de uma doença mental. O DSM é a nossa referência pra dizer o que é patológico e o que não é, o que é transtorno e o que não é. Então o que que a gente viu durante esses 40 anos foi uma proliferação de novos transtornos produzidos por convenção, sem hipóteses etiológicas realmente discutidas em profundidade e sem um modelo de como isso realmente acontece junto na mesma pessoa.

A pessoa tem uma coleção de sintomas, aí você diz “poxa, você deu azar, tem 7 doenças que deram na sua cabeça ao mesmo tempo”. Ao invés de dizer, obviamente, que deve ter alguns processos que condicionam outros processos, etiologias mais ou menos subordinadas e subordinantes. Isso foi um golpe científico. São 40 anos e inúmeras pesquisas investidas na descoberta de marcadores biológicos – esse é o conceito –, quer dizer, marcadores biológicos como a gente tem com a diabetes.

Então eu vou lá e faço o exame e descubro que existe um déficit ou excesso de açúcar, que o pâncreas não produz e isso pode ser medido. Bom, se há um déficit de neurotransmissores, a gente deveria poder medir também. Onde é que está essa prova? Onde é que está esse teste? Não tem, nenhum, zero. Isso vale para esquizofrenia, para autismo, para doenças que são muito mais claramente descriptivas, que têm uma semiologia relativamente estável e constante e que você consegue fazer para as verdadeiras doenças neurológicas como Alzheimer, Huntington e companhia.

Então há um ressentimento de que houve todo um conjunto de processos ligados à saúde mental que foi objeto de um equívoco, um equívoco histórico.

Em outra reação a esse equívoco a gente encontra os saudáveis processos de desinternação, da luta antimanicomial, das reformas que aconteceram no Brasil ligadas à formação de um outro modelo de atenção psicossocial, centralizados nos CAPs (Centros de Atenção Psicossocial).

Isso deixou para trás aquela antiga ideia de que a loucura deve ser colocada dentro de um condomínio, um hospício e ela fica lá, não sai e nós normais ficamos do lado de fora como dizia Simão Bacamarte, personagem de O alienista de Machado de Assis. [leia a reportagem 50 anos em 5: como o Brasil está regredindo décadas na luta antimanicomial]

O Estado se desincubiu da saúde mental. Ele retirou, não aplicou os recursos que deveria ter aplicado pela Constituição de 1988, isso valeu para o SUS também e o resultado agora é que a gente tem um colapso do sistema. “Ah, quem é o culpado? O que aconteceu?” Foram anos e anos da construção de um determinado discurso em saúde mental. Uma construção que deu nisso.”