Editorial:

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Carlos Vogt

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Hugh Lacey

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Enrique Ortega

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Franco Lajolo
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Transgênicos x Genômica: etapas no melhoramento vegetal
Marcos Machado
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Flávia Natércia
Os transgênicos rondam sua cozinha
Luisa Massarani e Ildeu de Castro Moreira
Poema:
Inconcluso
Carlos Vogt
 
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Ética para os animais transgênicos

Os animais geneticamente modificados tem sido cada vez mais utilizados em experimentos científicos. A decisão dos cientistas sobre a criação desses animais em laboratórios tem causado questionamentos entre atores sociais que tem formas muito diferentes de pensar o assunto. Alguns são completamente contra a experimentação animal e a criação de animais transgênicos, outros são favoráveis, mas com restrições.

Para o pesquisador João Bosco Pesquero, coordenador do Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais para a Medicina (Cedeme), uma das grandes vantagens de se criar animais transgênicos em laboratórios é a possibilidade de determinar para que servem as informações contidas no código genético humano e descobrir quais são os genes responsáveis por certas doenças genéticas. Esse conhecimento pode servir para eliminar os genes causadores de doenças genéticas em humanos. Isso só é possível quando a seqüência do gene do animal estudado for parecida com a do gene humano. As semelhanças entre o genoma humano e o dos camundongos, pode ser explicada pela existência de um ancestral comum que viveu há cerca de 100 milhões de anos atrás.

O Peta (Pessoas para o tratamento ético de animais, em inglês) é uma das maiores ONGs anti-viviseccionistas mundiais

Com o uso da manipulação genética, o grupo de pesquisas de Pesquero conseguiu gerar um camundongo que sente muito menos dor que o normal e é muito menos propenso à inflamações. Ele explica que, para se desenvolver esse animal, foi necessário induzir alguns animais à dor. No entanto, foram tomadas medidas práticas para que esses animais sofressem menos. Segundo ele, "Para tentarmos minimizar o desconforto submetemos os animais ao tempo mínimo necessário para o experimento e, em alguns casos, os animais foram anestesiados durante todo o tempo. Além disso, os experimentos de dor realizados foram de baixa intensidade".

As novas características desse camundongo tornam o animal mais recomendável para ser utilizado em alguns estudos voltados para o desenvolvimento de medicamentos, o que despertou o interesse de grandes indústrias farmacêuticas que pretendem comprar os animais para testes.

Enquanto os cientistas buscam formas de justificar e convencer a opinião pública sobre a utilização de animais em experimentação animal, movimentos sociais cada vez mais intensos e numerosos são completamente contra a utilização de animais em experimentos científicos. A questão, segundo Nádia Farage, professora do Departamento de Antropologia da Unicamp, não é discutir formas de usar estes animais e sim não usá-los.

A pesquisadora Wirla Tamashiro, presidente da Comissão Interna de Biossegurança do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) afirma que é muito difícil prever quais serão as interações negativas com o meio ambiente e quais serão as conseqüências da manipulação genética para os próprios animais.

Ela explica que os animais geneticamente manipulados podem ter genes da mesma espécie ou de espécie diferente inseridos em seu código genético (animais transgênicos), ou então terem um ou mais de seus genes retirados (animais nocautes). "Os nocautes ou os transgênicos são animais geneticamente manipulados. Geralmente, quando você retira os genes de um animal, você não sabe se ele vai ter o desenvolvimento afetado, ou se outras funções relacionadas a presença desse gene serão alteradas", esclarece Tamashiro.

Tamashiro, que realiza suas pesquisas com animais modificados geneticamente, diz que os pesquisadores procuram tomar todas as providências possíveis para que estes animais sofram menos durante os experimentos científicos. Ela afirma que os cientistas têm consciência de que os animais utilizados podem sentir dor ou sofrerem outros danos decorrentes do experimento.

No entanto, o movimento anti-viviseccionista (contrário ao uso de animais em laboratório) afirma que diminuir a dor que os animais sentem não resolve o problema ético da experimentação. "A idéia de redução do sofrimento dos animais na experimentação é enganosa, porque oblitera a questão ética maior, que diz respeito ao estatuto dos animais como recursos ou como sujeitos de direitos específicos", aponta Farage.

A preocupação dos pesquisadores com a qualidade de vida dos animais modificados geneticamente para serem utilizados em experimentos científicos, tem sido cada vez mais freqüente, e justifica-se, por um lado, pelo fato destes animais serem relativamente caros e, por outro, pela pressão da sociedade civil que está mais alerta que no passado.

História do uso de animais

A sociedade tem exigido cada vez mais que os pesquisadores e professores que utilizam animais em experimentos e em aulas didáticas tomem atitudes para reduzir o sofrimento desses animais. Alguns grupos da sociedade, que se posicionam completamente contra o uso de animais em experimentos científicos, mostram nítidas mudanças nas relações entre os homens e os animais. Estas relações, muito bem exploradas no livro O Homem e o mundo natural (ver resenha), sofreram mudanças graduais e têm causado cada vez mais questionamentos sobre a utilização de animais para diversos fins.

Márcia Raymundo explica que a utilização de animais em atividades científicas e didáticas existe desde o século V a.C., tendo iniciado provavelmente com os estudos de Hipócrates. Ela conta que nos séculos XVII e XVIII os cientistas passaram a usa-los com maior freqüência. Os estudos sobre a fisiologia da circulação sangüínea realizados por Willian Harvey em 1638 e os estudos realizados por Stephen Hales sobre o sistema arterial dos animais, publicados em 1733, mostraram que a utilização de animais em estudos científicos poderia fornecer respostas a muitas perguntas.

Mas, segunda Nádia Farage, hoje, os filósofos da ciência já questionam a pertinência do modelo experimental que pretende justificar o uso de animais em laboratório. "As teorias científicas não se constróem com fatos e sim com hipóteses", diz.

Atualmente, um numero cada vez maior de pessoas vem sendo sensibilizada sobre essa questão. Em 1975, Peter Singer causou grande polêmica com a publicação do livro Animal Liberation, que relatava a condição dos animais durante os testes experimentais para a produção de cosméticos e alimentos. Os relatos causaram revolta no mundo todo.

Em 1789, o filósofo inglês Jeremy Bentham levantou a seguinte questão sobre os animais: "A questão não é, podem eles raciocinar? ou podem eles falar? Mas, podem eles sofrer?" . Segundo a bióloga Márcia Mocellin Raymundo, que atua nas áreas de bioética e ética em pesquisa do Grupo de Pesquisas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, esse questionamento foi provavelmente o precursor da mudança de comportamento frente ao uso de animais em pesquisas. No ano de 2000, ela finalizou um estudo inédito no Brasil intitulado "Os Deveres dos Pesquisadores para com Animais de Experimentação: Uma Proposta de Auto Regulamentação".

Para realizar seu estudo, Márcia Raymundo observou situações em que os animais eram utilizados para fins didáticos e científicos, tais como aulas e experimentos, e propôs medidas práticas que os cientistas pudessem adotar para diminuir o sofrimento dos animais. Ela acredita que muitas vezes os cientistas não conhecem as técnicas mais adequadas para serem utilizadas, causando dor e sofrimento aos animais.

As diretrizes sugeridas por Márcia Raymundo são perfeitamente aplicáveis aos animais geneticamente modificados. "Em se tratando do bem estar para animais transgênicos, as regras e exigências não diferem porque não há distinção entre genomas quando o tema é bem estar animal", explica a professora Ana Maria Aparecida Guaraldo, representante titular do Instituto de Biologia da Unicamp junto a Comissão de Ética na Experimentação Animal.

Um dos motivos que levou Márcia Raymundo a realizar seu estudo foi sensibilizar os pesquisadores sobre o assunto, chamando a atenção para o uso adequado e responsável dos animais. Ela afirma que a necessidade de utilização de animais vai depender do experimento que será realizado, mas deve-se sempre utilizar o menor número possível. Além disso, os animais devem ser substituídos, quando possível, por técnicas alternativas como cultura de células e/ou tecidos e uso de modelos matemáticos ou simulações por computador.

A pesquisadora considera que ainda hoje as três regras propostas pelo zoologista Willian Russell e o microbiologista Rex Burch em 1959 são fundamentais para a tomada de atitudes práticas sobre o uso de animais em experimentos. Estes pesquisadores não se opuseram ao uso de animais em experimentação, mas apresentaram uma proposta de regras que visam diminuir o sofrimento dos animais. Com regras que propõem a substituição de animais por técnicas alternativas, a redução máxima de animais utilizados e o refinamento das técnicas utilizadas nos procedimentos utilizados nos experimentos.

Nem todos concordam com o uso de animais em experimentos científicos. "Substituir animais por recursos não-animais em experimentos científicos deveria valer em si e excluir as opções subsequentes de reduzir o número de animais e refinar métodos", diz Nádia Farage. Segundo ela, o que tem acontecido na prática dentro dos laboratórios é bem diferente das regras propostas por Russel e Burch. "A idéia de substituição traz consigo a de recursos alternativos à experimentação com animais, mas, muito embora tal substituição venha sendo feita na área do ensino ou na da indústria cosmética, pouco se verifica no núcleo duro da indústria médico-farmacêutica, onde os assim chamados recursos alternativos são submetidos a processos de validação que podem se estender infinitamente e - triste ironia - podem envolver número crescente de animais. Assim, a opção correlata de reduzir não tem se constatado nas últimas décadas; ao contrário, as estatísticas relativas a laboratórios euro-americanos indicam que o número de animais utilizados em experimentos cresceu desde fins da década de 90. A indústria da biotecnologia, deixada a si mesma, vai fazer com que tais números apenas se multipliquem". Farage questiona especificamente os experimentos em biotecnologia. "Nesse campo, há uma proporção alarmante de cerca de 200 animais doadores e receptores sacrificados para cada animal transgênico", deniuncia.

Enquanto os cientistas buscam formas de justificar e convencer a opinião pública sobre a utilização de animais em experimentação animal, movimentos sociais cada vez mais intensos e numerosos são completamente contra a utilização de animais em experimentos científicos.

Para que os animais utilizados em experimentos científicos tenham seus direitos garantidos, uma legislação coerente e forte que possa ser cobrada pela sociedade é fundamental, "apesar da defasagem entre a letra da lei e a prática social", diz a antropóloga.

Márcia Raymundo afirma que, de modo geral, o Brasil deixa a desejar quanto à estrutura adequada para o cuidado com animais em experimentação. Além da estrutura inadequada, "Ainda não existe no Brasil uma lei específica para o uso de animais em experimentos científicos, embora tramitem no Congresso Nacional desde 1996 vários projetos sobre este tema. Existe uma lei sobre vivissecção, de 1979, mas que não foi regulamentada e que não aborda questões específicas de experimentação animal. E a lei de Crimes Ambientais que faz uma pequena referência quanto ao uso inadequado de animais para fins científicos", esclarece Raymundo. Essa lei declara criminosa a experimentação em animais para fins didático-científicos, quando existirem recursos alternativos.

Farage considera um avanço a Lei de Crimes Ambientais de 1998 mas não deixa de apontar falhas. "Tal lei é, sem dúvida, um avanço, mas há que apontar que é incerta a definição de recursos alternativos, posto que a validação de tais recursos fica exclusivamente a cargo dos pesquisadores interessados, sem passar, portanto, por controle social. Com honrosas exceções, a grande maioria das instituições de ensino e pesquisa no país têm-se apoiado nesta ambigüidade da lei para não cumpri-la plenamente: deste modo, o ensino das ciências bio-médicas, campo em que proliferam recursos alternativos representados por modelos artificiais e simuladores, ainda têm-se valido inercialmente do sacrifício de animais".

Para realizarem suas pesquisas, Márcia Raymundo afirma que os cientistas brasileiros devem utilizar os Princípios Éticos na Experimentação Animal, proposto pelo Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (COBEA) e podem também utilizar documentos internacionais, como o Guide for the Care and Use for Laboratory Animals dos Estados Unidos e o Guide for the Care and Use for Experimental Animals, do Canadá. Pesquero conta que no Cedeme os cientistas se baseiam pelo Guia Internacional de Princípios para Pesquisa Biomédica, publicado em Genebra em 1985.

Com relação aos animais transgênicos, a preocupação está mais voltada para os riscos imprevisíveis que estes animais podem causar ao meio ambiente e à saúde humana do que com a qualidade de vida dos animais manipulados geneticamente. Todos centros de pesquisa que trabalham com organismos geneticamente modificados precisam ter, por lei, uma Comissão de Biossegurança. Tamashiro explica que, na Unicamp, a Comissão verifica se os laboratórios de pesquisa de organismos geneticamente modificados apresentam condições para fazer a manipulação e contenção destes organismos, bem como se os pesquisadores envolvidos no projeto têm o conhecimento necessário para manipular os animais em laboratório.

Ao contrário das Comissões de Biossegurança, as Comissões de Ética, que são responsáveis, entre outros, por assegurar o bem estar dos animais utilizados em experimentos, não são obrigatórias por lei. Essas comissões, existentes na Unicamp e no Cedeme, tem sido cada vez mais freqüentes nos centros de pesquisa. Um dos motivos, é que atualmente a publicação de trabalhos científicos em revistas indexadas internacionais está condicionada ao bem estar dos animais utilizados. Este fato é conseqüência de movimentos sociais contrários ao uso de animais em experimentos científicos.

Os animais criados pela equipe de Pesquero poderão ser utilizados no lugar de outros que sentiriam muito mais dor quando submetidos aos testes nas indústrias farmacêuticas. Porém, agora que existe uma solução para o sofrimento dos camundongos "normais", é difícil avaliar como será a qualidade de vida dos camundongos criados para serem testados em laboratórios para o resto de suas vidas. Vale lembrar que, animais geneticamente modificados são ainda animais.

(JS)

 

A recomendação dos departamentos de Bioética é às vezes contraditória com relação aos direitos dos animais estabelecidos internacionalmente:

É recomendável que os cientistas que usam animais em pesquisas sigam os princípios que determinam:

  • que os seres humanos são mais importantes que os animais, mas os animais também tem importância, diferenciada de acordo com a espécie considerada;
  • que nem tudo o que é tecnicamente possível de ser realizado deve ser permitido;
  • que nem todo o conhecimento gerado em pesquisas com animais é plenamente transponível ao ser humano;
  • que o conflito entre o bem dos seres humanos e o bem dos animais deve ser evitado sempre que possível.

Fonte: Núcleo Interinstitucional de Bioética da UFRGS

Em 1978 a Unesco publicou a Declaração Universal dos Direitos dos Animais que dizia, entre outros artigos:

ARTIGO 1º
Todos os animais nascem iguais diante da vida, e têm o mesmo direito à existência.


ARTIGO 2º
a - Cada animal tem direito ao respeito;
b - O homem, enquanto espécie animal, não pode atribuir-se o direito de exterminar os outros animais, ou explorá-los, violando esse direito. Ele tem o dever de colocar a sua consciência a serviço dos outros animais;

ARTIGO 8º
a - A experimentação animal, que implica em sofrimento físico, é incompatível com os direitos do animal, quer seja uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer outra;
b - As técnicas substitutivas devem ser utilizadas e desenvolvidas.

ARTIGO 14º
Os direitos dos animais devem ser defendidos por leis, como os direitos do homem.


Para saber mais:
_ Raymundo, M.M. Os deveres dos pesquisadores para com os Animais de Experimentação: uma proposta de auto-regulamentação. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Programa de Pós Graduação em Ciências Biológicas: Fisiologia/Universidade Federal do Rio Grande do Sul
_ Site sobre Bioética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul : http://www.ufrgs.br/HCPA/gppg/bioetica.htm
Este site contém informações relevantes sobre o uso de animais em experimentos científicos e outros temas afins


Atualizado em 10/05/2002

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