Editorial:

O alarde dos transgênicos
Carlos Vogt

Reportagens:
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A batalha jurídica ainda não terminou
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Contrabando, contaminções e experiências no Brasil
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Agricultura orgânica pode ser alternativa aos transgênicos
Faltam pesquisas para avaliar os riscos à saúde
Brasil terá de desenvolver protocolos de segurança ambiental
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Ética para os animais transgênicos
Artigos:
OGMS: a estrutura da controvérsia
Hugh Lacey

O futuro que ninguém pediu: favelas e transgênicos!
Enrique Ortega

A questão da saúde nos alimentos geneticamente modificados
Franco Lajolo
Patentes em biotecnologia no Brasil
Maria Isabel de Oliveira Penteado
Transgênicos x Genômica: etapas no melhoramento vegetal
Marcos Machado
Oportunidades e desafios
João Paulo Feijão Teixeira
Riscos ecológicos dos OGMs: o que se diz e o que se entende
Flávia Natércia
Os transgênicos rondam sua cozinha
Luisa Massarani e Ildeu de Castro Moreira
Poema:
Inconcluso
Carlos Vogt
 
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Patentes em biotecnologia no Brasil

Maria Isabel de Oliveira Penteado

Nos últimos anos, tornou-se freqüente ouvir expressões como: "o caminho da pesquisa é a patente"; "patentear é condição sine qua non de sobrevivência das universidades brasileiras" (Knapp, L., Gazeta Mercantil, 23/3/2000); "patentear primeiro e publicar depois deveria ser a lógica vigente entre os pesquisadores brasileiros"(Castelo, R. Pesquisa Fapesp, maio, 2001, p.11) e assim por diante. Isso mostra o quanto o Brasil mudou sua mentalidade na maneira de lidar com suas inovações e tecnologias.

Essa preocupação pode ser atribuída, em grande parte, ao reconhecimento, cada vez maior, de que as patentes e suas conseqüências fazem parte do nosso dia a dia, seja no controle de preços, seja na redução de postos de trabalho pela não produção local, seja pela dificuldade de acesso a tecnologias monopolizadas. Tudo isso é resultado de vários acordos internacionais que favorecem alguns países em detrimento de outros, cabendo a estes últimos submeterem-se às regras impostas pela necessidade de manter relações comerciais. Em outras palavras, uma vez partícipe, temos que cumprir nossa parte. Ou seja, o Brasil vem se adequando à realidade das patentes, que é recente para nós, sobretudo em algumas áreas, como a biotecnologia, porém já é muito estabelecida em outros países.

A proteção patentária representa apenas uma parte da propriedade intelectual, que também contempla proteções sobre variedades de plantas, programas de computador, direitos autorais e circuitos integrados. A proteção por patentes é parte da Propriedade Industrial, que trata dos direitos sobre Invenções, Modelos de Utilidade, Marcas e Desenhos Industriais.

O grande interesse nas patentes é conseqüência do fato de esta proteção ser concedida na forma de direitos exclusivos de exploração, ou seja, permite excluir terceiros da produção ou do uso do processo de produtos patenteados. Do ponto de vista científico, as patentes são consideradas um incentivo à inovação, não só pelos rendimentos advindos da comercialização das mesmas, mas pela revelação segura do conhecimento de forma a permitir o avanço das pesquisas.

Se formos considerar apenas uma área da ciência, a biotecnologia, esta pode ser definida como a aplicação de conhecimentos de biologia e bioquímica para satisfazer ou solucionar necessidades práticas. Segundo essa definição, a biotecnologia é tão antiga quanto plantar ou fabricar queijos e vinhos. Entretanto, atualmente, a biotecnologia é amplamente identificada com aplicações em medicina e agricultura com base nos conhecimentos dos códigos genéticos da vida. Vários termos têm sido utilizados para definir esta forma de biotecnologia, incluindo-se "engenharia genética", "transformação genética", "tecnologia de DNA recombinante" e "modificação genética". A tecnologia de modificação genética começou a ser desenvolvida na década de 1970 e um dos resultados mais notáveis, além das aplicações médicas, tem sido o desenvolvimento de novas variedades de plantas transgênicas.

Além das polêmicas sócio-ambientais e econômicas que estes produtos têm gerado no mundo, muitas questões também têm sido levantadas quanto à proteção legal sobre invenções biotecnológicas. E, a justificativa que se tem para proteger uma invenção biotecnológica é a mesma usada para proteger qualquer outro tipo de inovação: a patente ainda é a melhor forma de incentivar a pesquisa e desenvolvimento de novos produtos e processos e também de garantir a disponibilização das inovações no mercado, principalmente quando se leva em consideração os custos e riscos envolvidos em áreas como a biotecnologia.

Cada país tem sua própria legislação relativa à propriedade industrial, a qual é aplicável somente aos atos ocorridos dentro dos seus limites territoriais. Assim, se o proprietário de uma patente quiser obter direitos legais de monopólio sobre seu invento em diferentes países, deverá solicitar proteção separadamente em cada país de interesse. Isso também representa a possibilidade de obter proteções distintas em cada país, dependendo das diferenças previstas nas leis.

No Brasil, a Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9279/96), em vigor desde 14/05/97, proíbe (Art. 18, alínea III) a concessão de patentes para "o todo ou parte de seres vivos, exceto os microrganismos transgênicos que atendam aos requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicação industrial - previstos no art. 8º e que não sejam mera descoberta". Ainda, no parágrafo único do Artigo 18, é definido, para fins da Lei que "microrganismos transgênicos são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais".

Isso quer dizer que no Brasil não é possível patentear plantas ou animais, mesmo transgênicos. Essa proibição se baseia na possibilidade aberta no artigo 27 do acordo TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of Intelectual Property Rigths), da OMC (Organização Mundial do Comércio), que versa sobre matéria patenteável e estabelece que podem ser excluídos de patenteabilidade "plantas e animais, exceto microrganismos...". Esta possibilidade, entretanto, pode ser alterada, uma vez que se prevê no mesmo artigo, a sua revisão, quatro anos após o acordo ter entrado em vigor.

Os Estados Unidos concedem patente para plantas desde 1930 e para animais desde o início da década de 80, embora mantenham restrições para patenteamento de invenções na área humana, onde apenas algumas situações especiais são consideradas patenteáveis, como por exemplo, o seqüenciamento de genes para produção de proteínas comercializáveis.

A Comunidade Européia, que se posicionou muito fortemente contra o patenteamento de plantas e animais, já reviu sua lei, no sentido de conceder patente para esse tipo de invenção. Conforme a Diretiva 94/44/EC para a Proteção Legal de Invenções Biotecnológicas, que entrou em vigor em 30/07/98, passou a ser permitido o patenteamento de plantas e animais incluindo os transgênicos, desde que a invenção não ficasse restrita a uma variedade particular de planta ou animal.

Se o Brasil vai adotar ou não uma abertura na lei ou um posicionamento favorável ao patenteamento de seres vivos, é uma decisão que deveria ser considerada com muita cautela já que envolve conseqüências seríssimas para toda a sociedade brasileira. Se, por um lado há um interesse mundial declarado sobre a biodiversidade brasileira, o que significa um interesse pelos genes nativos, por outro há um forte desequilíbrio entre os países desenvolvidos (que detém o conhecimento e os recursos financeiros) e países em desenvolvimento (que possuem a maior parte dos recursos genéticos). Cabe, portanto, fazer uma reflexão sobre alguns aspectos relativos ao patenteamento em biotecnologia.

As patentes são necessárias na área de biotecnologia porque representam forte incentivo à inovação e ao desenvolvimento da pesquisa tecnológica. Sem a salvaguarda oferecida pela proteção legal, as indústrias e outros inventores não se habilitariam a investir tempo e dinheiro em pesquisa e desenvolvimento, especialmente quando se tem em mente os altos custos e riscos da pesquisa em biotecnologia. O raciocínio é que pela prevenção da competição durante a vigência da patente, o dono poderá extrair o máximo retorno pelo uso da invenção. Entretanto, para isso, a companhia deverá revelar os detalhes do trabalho. Dessa forma, em retorno ao pagamento do monopólio de preços, o público recebe o conhecimento contido na invenção, com o qual outros pesquisadores podem desenvolver novos produtos.

Mesmo no contexto de invenções biotecnológicas, as descobertas não são passíveis de proteção, porque não são consideradas invenções. Uma invenção pode ser definida como uma idéia nova que, uma vez concretizada, permite solucionar um problema específico existente num campo qualquer da tecnologia. Assim, mesmo que o problema seja antigo, a solução deve ser nova e inventiva. Portanto, o simples seqüenciamento de genes não pode ser protegido por patente, a menos que se agreguem conhecimentos, funções, para tornar essa seqüência tecnicamente útil e comercialmente aplicável. O seqüenciamento per si é considerado uma "descoberta", um "processo tecnológico". Sequenciar total ou parcialmente um gene pode constituir uma invenção patenteável, mesmo que a estrutura descrita seja idêntica à forma como ocorre na natureza.

A invenção pode ser caracterizada pelo isolamento de tal gene de seu ambiente natural por uma determinada técnica e, dependendo do estado da arte e de apresentar atividade inventiva e aplicação industrial, pode ser patenteável. Exemplificando, se o objeto da invenção for um processo compreendendo a etapa de transformação de células ou tecidos, com um DNA recombinante e a etapa subseqüente de regeneração e reprodução de plantas e sementes, esta pode ser uma tecnologia patenteável. A explicação para essa possibilidade está no fato de que o processo como um todo não é essencialmente biológico ou um processo biológico natural (Art. 10, inciso IX da Lei de Propriedade Industrial), porque a etapa de transformação é essencialmente técnica, com impacto decisivo na obtenção do resultado final e não poderia ocorrer sem a intervenção humana.

Segundo a interpretação do Conselho Europeu, da Diretiva 98/44/EC e do Parlamento Europeu, a proteção à propriedade intelectual para invenções baseadas em genes deverá representar um papel importante no estímulo ao investimento em tecnologia usando as informações do genoma humano para desenvolver novos produtos de interesse, por exemplo, na área de saúde. O mesmo raciocínio é válido para plantas, animais ou microrganismos.

No caso de pesquisas biotecnológicas em vegetais, especialmente no desenvolvimento de plantas transgênicas, mesmo que se disponha de genes de grande interesse agronômico, para que seja produzida uma variedade comercialmente interessante, será imprescindível a inserção de tal gene em variedades adaptadas aos diferentes locais. Sob este aspecto, lembrando mais uma vez que o Brasil possui uma biodiversidade significativa e, portanto a real possibilidade de fornecer materiais adaptados a diferentes condições de estresses bióticos ou abióticos, a proteção intelectual poderá ser interessante desde que se alcance um ponto de equilíbrio entre países em desenvolvimento, detentores de recursos genéticos e de conhecimento tradicional e países desenvolvidos detentores de recursos financeiros e conhecimentos de alta tecnologia.

Nessa linha, podemos lançar mão de licença cruzada de patentes biotecnológicas - caso em que a exploração de uma patente necessariamente exige o uso de uma outra patente anterior - ou do aumento do valor agregado de uma planta transgênica, através da adaptação às condições (climáticas e de solo) brasileiras. Para exemplificar, consideremos uma empresa de grande porte, possuidora da patente de um gene cuja inserção em variedades brasileiras seja vantajosa para ambas partes. O licenciamento do uso dessa tecnologia pode ser vantajosa para ambas as partes, licenciador e licenciado, na medida em que um necessita do germoplasma brasileiro e outro precisa da técnica patenteada. Evidentemente que neste caso, é muito importante uma boa negociação e um contrato entre as partes, com cláusulas justas, que reconheçam o devido valor do germoplasma brasileiro. É isso que vai determinar o sucesso e o valor da tecnologia e do produto. Esta seria uma forma de aproximar os países desenvolvidos dos em desenvolvimento e o Brasil não pode deixar de aproveitar essa oportunidade de crescimento, desde que se posicione de forma competente em relação ao assunto.

Convém salientar que o Brasil foi pioneiro em legalizar a biodiversidade e que vem se destacando na área genômica, gozando hoje de reconhecida contribuição na análise de genoma ou seqüenciamento de gêneros importantes como arroz, cana de açúcar, eucalipto, a Xylella, entre outros.

Portanto, mesmo o Brasil não sendo no momento, um país com número expressivo de patentes internacionais na área de biotecnologia, pode tirar bom proveito do sistema patentário desde que se capacite no entendimento das regras que regem a propriedade intelectual, capacite seus recursos humanos e utilize os direitos previstos por lei, para tirar proveito dos seus recursos genéticos e da tecnologia gerada no país.

Maria Isabel de Oliveira Penteado é engenheira agrônoma, doutora em Biotecnologia de Plantas, pesquisadora de genética molecular, atualmente trabalhando na elaboração de patentes para Embrapa.


Atualizado em 10/05/2002

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