Torre de Babel ou quem confundiu nossas línguas?

Por Paula Drummond de Castro e Aliny P. F. Pires

Iniciativas focadas em ciência e política proliferam, mas seus efeitos poderiam ser maiores

Há uma história bíblica que após um grande evento climático, uma inundação que cobriu toda a Terra após um evento de precipitação extremo e contínuo, os poucos habitantes se multiplicavam e resolveram ocupar a Terra, agora descoberta e produtiva. Ao se estabelecerem, decidiram construir uma torre, com o objetivo de chegar aos céus. O encantamento humano pelos eventos celestes transcende culturas, perspectivas e religiões. No entanto, um “ser superior”, se sentiu afrontado pela “empáfia” humana em querer atingir o céu e decide confundir a língua daqueles que até então tinham um objetivo comum. A torre acaba por ruir e as pessoas que ali estavam morrem.

Esta construção foi chamada Torre de Babel, e é um símbolo da incapacidade de comunicação entre as pessoas e setores. Hoje, a ciência produz um volume enorme de conhecimento, e a tomada de decisão tem, cada vez mais, um papel fundamental para garantir o bem estar da população. Mas assim como na Torre de Babel, quem produz o conhecimento ou os tijolos dessa construção não interage com aquele que decide qual será a sua estrutura. Estamos prestes a sucumbir.

A relação ciência e tomada de decisão tem sido frequentemente descrita como insatisfatória. As barreiras para o uso das evidências científicas no processo político de tomada de decisão têm sido bem documentadas. Elas incluem a ausência de vínculos entre pesquisa e política, a escassez de intercâmbio efetivo de informações, poucos contatos pessoais entre os dois universos, ausências de pesquisas oportunas e relevantes, prioridades desencontradas, carência de formação científica ou expertise entre os formuladores de política. Esses são alguns dos fatores que dificultam o uso dos resultados da pesquisa na tomada de decisão.

Entretanto, cada vez mais se observa uma mobilização, sobretudo da comunidade científica das ciências naturais e da vida, para mudar esse quadro em busca de mais aderência na relação ciência e demandas sociais.

Nos últimos doze meses catalogamos – em um esforço não exaustivo – pelo menos 14 documentos como relatórios e artigos científicos, elaborados por um grande coletivo de cientistas que se reuniram para gerar sínteses do conhecimento sobre clima, biodiversidade, uso do solo e sua relação com a atividade humana e bem-estar (veja o quadro ao fim do artigo). Todos esses relatórios tiveram repercussão na grande imprensa.

A produção mais recente é de um artigo científico publicado semana passada na revista Bioscience assinado por nada menos do que de 11 mil cientistas de todo o mundo reafirmando que as mudanças climáticas são inequívocas, e recomendando seis diretrizes para políticas públicas.

A Organização das Nações Unidas (ONU) é, sem dúvida, a maior catalisadora de relatórios globais por meio de suas plataformas intergovernamentais de ciência como o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, da sigla em inglês) e a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES). Seus documentos são de abrangência e alcance globais. O que potencializa a divulgação das suas mensagens.

Por se tratar de estruturas da ONU, seus produtos estão sujeitos à aprovação de todos os países membros. Os dados gerados pelo IPCC, por exemplo, possibilitaram basear acordos internacionais, como é o caso do Acordo de Paris. É um esforço para fazer os países compactuarem com a elaboração de políticas baseadas em evidências científicas.

O Brasil conta com estruturas análogas. Para a temática de clima destacam-se o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC) e para a de biodiversidade a Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES). Entretanto nenhuma delas está organizada em estruturas governamentais de aprovações. O que traz independência por um lado e, por outro, a não obrigatoriedade do uso dos seus achados.

Em paralelo a essas iniciativas nacionais, destacamos no país a Coalização Ciência Sociedade, um grupo que reúne 70 pesquisadores e produz textos de base científica sobre temas socioambientais em pauta. A coalização já publicou 13 textos, desde sua criação em fevereiro de 2019, que são reproduzidos em jornais e sites de notícias, e um artigo científico.

Todas essas plataformas de conhecimento têm como objetivo principal sintetizar e divulgar o conhecimento mais avançado sobre as mudanças climáticas, biodiversidade e serviços ecossistêmicos buscando entender como o atual modo de vida afeta e é afetado por esses parâmetros. Nenhum deles produz pesquisa original, mas reúne e resume o conhecimento produzido por cientistas independentes e ligados a organizações e governos. A participação dos pesquisadores é voluntária.

As atividades de envolvimento com formulação de políticas ou de divulgação científica raramente são contabilizadas na carreira do pesquisador, uma das razões que a tornam menos atraente para boa parte dos cientistas. No contexto brasileiro isto se faz particularmente mais louvável, tendo em vista as dificuldade decorrentes dos recentes cortes à pesquisa científica.

Outro aspecto recente – e surpreendente – que recaiu sobre os pesquisadores das ciências naturais em geral foi reencontrar os defensores de teorias já consideradas superadas, como terraplanismo, negacionistas do clima, criacionistas. E, no Brasil, nos últimos 11 meses, o novo desafio tem sido atestar para governantes que a ciência que se produz no país não é “ideológica”.

Convergência nas mensagens

As mensagens que emergem da comunidade científica, ainda que variem um pouco em abordagem e tom, tem como tema central a advertência das consequências perniciosas para o planeta caso sigamos no atual modelo de desenvolvimento baseado na queima de combustíveis fósseis e na mudança do uso do solo, tendo em vista as demandas da crescente população global (atualmente 7,7 bilhões de pessoas).

O consenso entre os cientistas das áreas das ciências naturais é que a relação clima, biodiversidade e desenvolvimento não se sustentará até 2070. Usamos mais recursos e mais intensamente do que a capacidade de o planeta se recuperar.

Porém, estamos em um ponto de inflexão. A partir da direção que tomarmos, ela pode se tornar mais ou menos favorável para a sociedade. Essa janela de oportunidade é curta e urgente.

A solução sugerida é a mesma: é preciso ressignificar o que entendemos por desenvolvimento. Do contrário a qualidade de vida estará comprometida em longo prazo, sobretudo para os países mais pobres.

A solução: conexão

Se já se observa uma movimentação da aproximação da ciência em relação às questões que concernem às tomadas de decisão sobre clima e biodiversidade nos últimos anos. Por que ainda não se vê o apoio suficiente do público, das empresas e de líderes políticos em direção à transformação? O que falta para catalisar essa reação de forma positiva? Quem confundiu nossas línguas?

Alguns pontos precisam ser sublinhados. O primeiro é que o processo de tomada de decisão não envolve apenas evidências científicas, mas também as demandas dos diferentes interesses da sociedade incluindo diferentes culturas, mercado, contextos políticos e lobbies.

Formuladores de política e cientistas enxergam os problemas sob diferentes perspectivas. A ciência pode contribuir identificando incertezas, quando os formuladores de políticas possuem evidências incompletas, fornecendo informações e criando elos com as demandas sociais. Cabe ressaltar que a ciência não responde à ambiguidade das políticas consideradas pelos formuladores.

Já os tomadores de decisão – sejam eles públicos ou privados – podem se acostumar a apresentar e financiar suas demandas para a comunidade científica, criando um novo mecanismo de interlocução e trazendo especialistas para sua equipe. É preciso intensificar a comunicação e aproximação de múltiplas formas. Carecemos de uma mudança de cultura.

Elaborar relatórios com o estado da arte de um tema importante para a nossa sociedade é crítico nesse processo. Entretanto, mais do que as evidências por si, é preciso criar mecanismos que favoreçam a adoção dos resultados por tomadores de decisão. Do contrário já sabemos o final da história. Chegar ao céu parece bem mais interessante do que ver a nossa torre ruir. Para isso é imperativo trazer partes interessadas para participar desse processo,  trabalhando com grupos focais e plataformas multiusuários.

E, na dúvida, divulgue sua pesquisa, sempre. Seja para alcançar potenciais adotantes dos seus achados, seja para que o público não especializado conheça como se faz ciência, seja para fortalecer as escolhas da sociedade, seja em favor da democracia. Sempre.

Paula Drummond de Castro é bióloga e pós-doutoranda em divulgação científica e cultural no Labjor/Nudecri. É membro da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos – BPBES.

Aliny P. F. Pires é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisadora associada à Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), à Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) e à Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais (Rede Clima).

Publicação Autores Mensagem
Artigo “World scientists’ warning of a climate emergency” publicado na revista Bioscience

Novembro 2019/ Abrangência global

 

11.258 cientistas das mais variadas disciplinas, de 153 países Afirma categoricamente que o planeta enfrenta uma emergência climática clara e inequívoca e apresenta seis objetivos amplos de política pública necessários para enfrentar a crise climática.
ArtigoGlobal modeling of nature’s contributions to people”, publicado na revista Science

Outubro 2019/ Abrangência global

Rebecca Chaplin-Kramer mais 20 autores. Cerca de cinco bilhões de pessoas, principalmente na África e Ásia Meridional, serão prováveis vítimas da escassez de alimento e água potável nas próximas décadas, com o declínio da natureza. Outras centenas de milhões podem ficar vulneráveis ao aumento dos riscos de grandes tempestades litorâneas.
Relatório The heat is on

Setembro 2019/ Abrangência global

PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) Enfatiza que 2020 será um marco para o Acordo de Paris e estabelece a necessidade de, em âmbito global, reduzirmos as emissões de GEE em 45% até 2030 e neutralizar as emissões globais até 2050.
Artigo científico “Why Brazil needs its legal reserves” na revista Perspectives in Ecology and Conservation

Setembro 2019/ Abrangência nacional

Jean Paul Metzger mais 9 autores e 407 cientistas signatários. Além de protegerem a biodiversidade, as reservas legais são importantes para o próprio setor agropecuário, que depende, por exemplo, de serviços de polinização, controle de pragas, regulação climática e da provisão de água.
Relatório Climate change and land

Agosto 2019/
Abrangência global

IPCC (107 cientistas de 52 países) Os pesquisadores analisaram que não há mais espaço para um modelo de agropecuária extensivo, pois não corresponde a esforços para a sustentabilidade do planeta. Recomendam a urgência da redução do desmatamento de florestas tropicais, o replantio de vegetação nativa para sequestrar dióxido de carbono (CO2) e o foco em produção e consumo sustentável de alimentos.
Sumário para tomadores de decisão do relatório temático Restauração de paisagens e ecossistemas

Agosto 2019/
Abrangência nacional

BPBES e IIS (45 pesquisadores de 25 instituições) O estudo reúne o conhecimento científico sobre iniciativas, práticas e políticas públicas que visam o uso mais sustentável do solo no Brasil, contribuindo diretamente para a mitigação das mudanças climáticas e o alcance de metas globais.
Sumário para tomadores de decisão do relatório temático Água: biodiversidade, serviços ecossistêmicos e bem-estar humano no Brasil

Agosto 2019/
Abrangência nacional

BPBES e ABLimno (17 autores) O documento contextualiza as ameaças aos recursos hídricos e aos ambientes aquáticos, as oportunidades e o diferencial competitivo que o seu uso eficiente possibilitam ao desenvolvimento e à economia do país e propõe práticas e instrumentos para um melhor uso e manejo das águas brasileiras.
Relatório The Sustainable development goals report2019

Julho 2019/
Abrangência global

ONU Os impactos da mudança climática e a crescente desigualdade entre países e dentro dos países estão prejudicando o progresso da agenda 2030.
Relatório global Avaliação da biodiversidade e serviços ecossistêmicos

Maio 2019/
Abrangência global

IPBES (145 especialistas e 310 autores colaboradores A atividade humana resultou na severa alteração de mais de 75% das áreas terrestres do planeta e 66% dos oceanos, colocando um milhão de espécies em risco de extinção.
Relatório Sexto panorama ambiental global

Março 2019/
Abrangência global

ONU Meio Ambiente (250 cientistas de mais de 70 países) Aponta que se não ampliarmos drasticamente a proteção ambiental, cidades e regiões na Ásia, Oriente Médio e África poderão testemunhar milhões de mortes prematuras até a metade do século. A publicação também alerta que os poluentes em nossos sistemas de água potável farão com que a resistência antimicrobiana se torne a maior causa de mortes até 2050 e com que disruptores endócrinos afetem a fertilidade masculina e feminina, bem como o desenvolvimento neurológico infantil.
Sumário para tomadores de decisão do relatório temático Polinização, polinizadores e produção de alimentos

Fevereiro 2019/ Abrangência nacional

BPBES e REBIPP (12 autores) O serviço que polinizadores prestam para os cultivos agrícolas foi avaliado em R$ 43 bilhões no Brasil no ano passado. Cerca de 80% desse montante envolve apenas quatro cultivos – soja, café, laranja e maçã. O valor econômico dos polinizadores foi estimado para 67 plantas cultivadas ou silvestres relacionadas à produção de alimentos no país.
Sumário para tomadores de decisão do relatório temático Potência ambiental da biodiversidade: um caminho inovador para o Brasil

Dezembro 2018/ Abrangência nacional

BPBES e PBMC A persistência de um cenário ‘business-as-usual’, no qual o país continue a se desenvolver com base em energia proveniente de combustíveis fósseis, em contínua expansão da agropecuária sobre os nossos biomas, sem tomar medidas de adaptação às mudanças climáticas, implicará declínio dos sistemas naturais de suporte à vida, aceleração nas mudanças climáticas e impactos negativos sobre o bem-estar humano.
Sumário para tomadores de decisão do relatório Biodiversidade e serviços ecossistêmicos

Novembro 2018/ Abrangência nacional

BPBES (85 autores) Estima-se que o país abrigue 42 mil espécies vegetais e cerca de 9 mil vertebrados, incluindo altas taxas de endemismo, ou seja, espécies que só existem em seu território. Em relação a invertebrados são conhecidas cerca de 130 mil espécies, mas as estimativas do número total ainda são muito imprecisas. Além disso, o Brasil possui uma diversidade cultural tão rica quanto a biológica, contendo mais de 500 sítios naturais sagrados associados a múltiplas manifestações culturais.
Relatório Living PlanetReport2018: Aiming higher

Novembro 2018/ Abrangência global

WWF (59 autores de 26 instituições) Estudo abrangente das tendências da biodiversidade no mundo e da saúde do planeta. Em sua 12a edição, ele fornece evidências científicas que a atividade humana está empurrando os sistemas naturais do planeta que sustentam a vida na Terra até o limite.