A fome continua presente

Por Walter Belik

Na Guerra Fria o uso da fome como arma de dissuasão se disseminou e os Estados Unidos fizeram uso de boicotes alimentares inúmeras vezes: contra Cuba em 1962, seguindo com embargos contra a antiga União Soviética em 1973 e 1980 e, mais recentemente, contra a Venezuela (2017) e o Irã (2018). Os dois últimos são casos clássicos de geração de crises artificiais visando a derrubada de governos, mas existem outros exemplos provocados “de forma natural”, pelas chamadas leis da economia.

Até os dias de hoje e para alguns segmentos da sociedade, a fome é vista como um fenômeno derivado de um simples processo de seleção natural da humanidade. Essa percepção do destino de que “todos nós vamos morrer um dia” está presente na população brasileira e já foi até verbalizada pelo atual Chefe de Estado em um de seus devaneios filosóficos, no caso da covid-19. A fome seria nada mais que o resultado de processo darwiniano de seleção dos mais fortes, uma loteria na qual uns ganham e outros perdem. Nascer em melhores condições ou comprar mais bilhetes de loteria aumentaria as chances de ganhar e ficar longe da enfermidade ou da inanição.

Outra característica da espécie humana é fazer contas e, portanto, também se contabiliza os mortos pela pandemia e o número de famintos. Assim, com base nas estatísticas de 2019, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) e outras agências da ONU (2020) promoveram uma revisão para baixo nos dados globais do que convencionamos chamar de fome. Ao incorporar elementos revisados da China, o número de pessoas famintas no planeta reduziu em 130 milhões, fechando em 687,8 milhões subalimentados, ou 8,9% da população mundial.

O problema é que, mesmo com as revisões e reduções, estamos caminhando na direção contrária. Apesar de todo o esforço, desde 2016 os números da fome vêm crescendo e estima-se que a pandemia poderá acrescentar até 161 milhões de pessoas a esse total (FAO, 2021). Já as previsões para 2030 mostram que essa curva deverá passar ao largo da meta acordada nos ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que era o de zerar a fome mundial. De forma frustrante, em 2030 o número de pessoas em estado de subalimentação deverá ainda estar beirando os 660 milhões, mas reduzindo para 7,7% da população mundial.

Essas cifras não estão levando em conta o recente movimento de alta do preço dos alimentos que têm alarmado as organizações humanitárias e o Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas [1], que estima um acréscimo de 41 milhões de pessoas em 43 países em situação de emergência, situação na qual essas populações estariam a apenas um passo da fome crônica em 2021[2].  Segundo o último informe da FAO

“... hunger will not be eradicated by 2030 unless exceptional efforts are deployed. The prospects were already discouraging before the covid-19 pandemic, which has aggravated the situation” (FAO., 2021:41)

Embora tenha sido condenado pelos tribunais internacionais e pelas organizações humanitárias, a prática do corte de suprimentos alimentares como arma de guerra é uma estratégia mais comum do que se imagina. Em uma guerra não só os soldados da linha de frente estão sob risco, mas também milhares – ou milhões – de civis podem ser massacrados por decisões atrozes de estratégia militar. O cerco sem piedade e o bloqueio dos alimentos a grupos considerados inimigos acaba levando à estagnação de populações inteiras. Esse foi o caso do regime do Khmer Rouge no Camboja (1975-78), do cerco de Srebrenica na Bósnia pelos sérvios em 1993 e das disputas étnicas em Ruanda em 1995, para ficarmos nos casos mais recentes. Em Ruanda, por exemplo, calcula-se que uma quarta parte da população tenha perecido com o bloqueio de províncias inteiras da etnia Tutsi pelos Hutus. Passados alguns anos, os responsáveis por esses massacres foram identificados e condenados.

Decisões equivocadas de planejamento econômico são também uma grande ameaça à Segurança Alimentar e Nutricional. Com a abertura dos arquivos do Governo da China, revelou-se o resultado decorrente de erros e desvios cometidos no período do “Grande Salto Adiante” (1958-62). A compilação desses documentos mostra que pelo menos 45 milhões de chineses pereceram de inanição (Dikotter, 2017). Na antiga União Soviética, a coletivização forçada e o confisco de suprimentos provocaram a Grande Fome na Ucrânia – conhecida como Holomodor, em 1932-33, que matou por volta de 4 milhões de ucranianos. O lado capitalista não ficou atrás na barbárie. A total inconsequência dos governantes provocou a Grande Fome de Bengala, reportada pelo Prêmio Nobel de Economia (do ano de 1981) Amatya Sen, em 1942, quando os britânicos – que controlavam a região, desviaram a produção de cereais para alimentar as suas tropas no Oriente Médio, causando grande elevação de preços e mais de 1,5 milhão de mortes “em cifras subestimadas” (Sen, 1981: 52). Outro evento de igual natureza aconteceu no Vietnã em 1944-45 causando a morte de quase 2 milhões de camponeses devido a uma combinação de baixos estoques de arroz, exportações para a metrópole francesa, intensificação das batalhas entre norte-americanos e japoneses e ocorrência de fortes tufões (Duff, 2019).

Citando esse caso – assim como outros ocorridos na Etiópia e em Bangladesh nos anos 1970 – Amartya Sen destacava em uma conferência na sede da FAO em Roma em 2013 que:

“The possibility of the occurrence of famines or starvation or general undernourishment even in the absence of food production problems is particularly important to emphasize, since public policies and popular discussion are often geared entirely to food production problems, and this can distort policy as well as confuse prevalent debate” (Sen, 2013: 4).

As críticas do eminente indiano em relação à paralisia dos países no combate à fome eram constantes. Em um trabalho de 1997, apenas um ano após a realização da Cúpula Mundial da Alimentação das Nações Unidas e os compromissos de erradicação da fome na Declaração de Roma (1996), Sen já criticava governos e a comunidade industrial pela “persistente tentativa de ver a fome através das lentes da produção agrícola” (Sen,1997: 9).

O uso da fome como arma de dissuasão continuou a ser utilizada pelos países centrais. Na Guerra Fria esse sistema se disseminou e os Estados Unidos fizeram uso de boicotes alimentares inúmeras vezes: contra Cuba em 1962, seguindo com embargos contra a antiga União Soviética em 1973 e 1980 e, mais recentemente, contra a Venezuela (2017) e o Irã (2018), para ficarmos nos mais conhecidos.  Os dois últimos são casos clássicos de geração de crises artificiais visando a derrubada de governos, mas existem outros exemplos provocados “de forma natural”, pelas chamadas leis da economia.

Ultimamente, entretanto, a disparada do preço dos alimentos e a sua livre flutuação nos mercados tem sido a forma mais comum de bloquear o acesso de populações inteiras à sua subsistência. Na década passada, a alta do preço dos alimentos e a crise financeira de 2008-09, por exemplo, abriram espaço para a fome e a enorme avalanche de protestos populares no Norte da África e Oriente Médio. Essas manifestações configuraram o que se convencionou denominar de Primavera Árabe, desembocando em mudanças geopolíticas importantes.

Naquele período, o preço dos alimentos em escala mundial subiu 35,6% (entre 2000 e 2019), um aumento elevadíssimo, mas ainda modesto se comparado com o alta de 74,4% observada no mesmo período para a região do Norte da África (dados do FAOSTAT[3]).  Os protestos contra a carestia se iniciaram na Tunísia em 2010, espalhando-se na sequência para a Argélia, Egito, Jordânia, Sudão, Turquia, Líbia além de outros países. Um misto de revolta popular contra o preço dos alimentos e contra a corrupção derrubou governos e provocou mudanças nos regimes políticos em direção a uma maior abertura. Na Síria, o caos político gerado se transformou em uma guerra civil com a intervenção das principais potências mundiais e uma onda emigratória sem fim.

O novo ciclo das commodities, que é como se convencionou denominar a alta recente de preços internacionais, tem sido considerado um “fenômeno natural” de ajuste na retomada das economias mundiais após a covid-19. Como se mencionou, essas elevações de preços dos alimentos estão provocando mais instabilidade diante da vulnerabilidade trazida pela pandemia. Entre 2009 e 2020 (dezembro contra dezembro) os preços mundiais dos alimentos subiram em termos nominais 5,7% e algumas commodities tiveram altas recordes no mercado internacional como o arroz (18,8%) e a soja (10,8%)[4]. Some-se a isso a desvalorização das moedas de países periféricos, o Real brasileiro foi uma das moedas que mais se desvalorizou em 2020: 30,9% em relação ao dólar.

Todos esses fatores “naturais”, dados pelo confronto entre a oferta – relativamente inelástica, e a demanda mundial – que volta a consumir alimentos estão levando a um aumento na vulnerabilidade da população de baixa renda, afetada duplamente pelo desemprego e pela pandemia.  Como as desgraças não são poucas, há também um maior número de pessoas desabrigadas e deslocadas devido aos fenômenos climáticos frequentes. Segundo registro da própria FAO e outras organizações (2020) estima-se que 70,8 milhões estejam desabrigadas em países em desenvolvimento, mais uma consequência de fenômenos considerados naturais, mas que poderiam ter sido evitados por governantes que também não acreditam na ação antrópica no processo de mudanças climáticas. 

O custo da fome em termos de perda de produtividade da força de trabalho, gastos com saúde e perdas de anos de escolaridade mostram que a inércia dos governos em evitar e combater essas tragédias pode sair muito caro. Estudo realizado pela Comissão Econômica das Nações Unidas  para a América Latina e Caribe (Cepal) mostra que os gastos  com a fome podem chegar a 6,7% do PIB dos países, como foi o verificado para América Central e República Dominicana em 2007 (Cepal, FAO e PMA, 2007:26). Essas evidências comprovam que leis naturais imaginárias podem funcionar apenas em termos de retórica, porque os custos humanitários, sociais e econômicos da passividade e cumplicidade são elevados.

Walter Belik é professor titular aposentado do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do CNPq e diretor-geral adjunto do Instituto Fome Zero. belik@unicamp.br

Referências

Cepal, FAO e PMA. 2007. Hambre y cohesión social: Cómo revertir la relación entre inequidad y desnutrición em América Latina y Caribe. Santiago do Chile: Cepal

Dikotter, Frank. 2017. A grande fome de Mao: História da catástrofe mais devastadora da China 1958-62. São Paulo: Lê Livros – Record

FAO, Ifad, Unicef, WFP and WHO (OMS). 2020. The state of food security and nutrition in the world 2020. Transforming food systems for affordable healthy diets. Roma, FAO

FAO, Ifad, Unicef, WFP and WHO (OMS). 2021. The state of food security and nutrition in the world 2021.Transforming food systems for food security, improved nutrition and affordable healthy diets for all. Roma: FAO

Huff, Greg. 2019. “Causes and consequences of the Great Vietnam Famine, 1944–5”. Economic History Review, 72, 1 (2019), pp. 286-316

Sen, Amartya. 1981.  Poverty and famines. An Essay on entitlement and deprivation. Clarendon Press Oxford.

Sen, Amartya. 2013. “Why is there so much hunger in the world?” Thirty-eighth session. Twenty-eighth McDougall Memorial Lecture. Roma: FAO

[1] https://news.un.org/en/story/2021/04/1089982 , consulta em 07/07/2021

[2] https://www.wfp.org/stories/wfp-glance , consulta em 07/07/2021

[3] http://www.fao.org/faostat/en/ consulta em 07/07/2021

[4] Dados do Banco Mundial – Pink Sheet, ver https://www.worldbank.org/en/research/commodity-markets acesso em 09/07/2021