A privatização das prisões em duas perspectivas: preso como mercadoria e gestão compartilhada com Comandos

Por Camila Nunes Dias e Josiane da Silva Brito

No Brasil, a produção da delinquência se efetiva na constituição da prisão como lócus de articulação da criminalidade e de conformação de redes criminais mais amplas, densas e complexas. Para que a posição política estratégica da prisão seja preservada, faz-se necessário recriar continuamente formas de justificá-la, dispositivos técnicos e discursivos que a legitimem e permitam o fortalecimento do círculo vicioso que articula a dinâmica criminal e o encarceramento em massa como elementos políticos centrais.

A proposta de privatização das prisões se fortaleceu a partir da década de 1980 em algumas economias centrais, com é o caso dos Estados Unidos e da Inglaterra, e da década de 1990 nas economias periféricas, como é o caso do Brasil. Em ambos os casos, esse fortalecimento se deu num contexto de aprofundamento dos problemas prisionais em face à adoção de políticas de segurança pública centradas no encarceramento em massa.

Os argumentos em favor da adoção das prisões privadas vão no sentido de que a introdução da competitividade e do emprego das técnicas e estratégias do setor privado na esfera penitenciária reduziria seus custos e elevaria a qualidade de seus serviços (Minhoto, 1997). O Estado seria incompetente para gerenciar o aparelho prisional tendo em vista sua irracionalidade quanto ao orçamento, gasto com pessoal, lentidão do aparelho governamental para solucionar problemas emergentes e incapacidade para desenvolver programas de trabalho satisfatórios (Salla, 1991).

No Brasil, tem-se um cenário em que é possível distinguir duas formas de privatização das prisões: a privatização formal, por meio das parcerias público-privadas (PPPs) e das terceirizações, e a privatização informal, através do compartilhamento da gestão do cotidiano carcerário entre a administração prisional e os grupos organizados de presos, chamados de comandos ou facções. Nas duas seções subsequentes apresentaremos as duas estratégias privatizantes

A privatização formal do poder punitivo


Em 2014, havia cerca de 30 prisões privatizadas no Brasil que abrigavam aproximadamente 20 mil presos, divididas em dois modelos de privatização: a cogestão e as parcerias público-privadas (Pastoral Carcerária, 2014). Sob um contrato de cogestão, o Estado assume a direção e as guardas interna e externa da unidade enquanto o setor privado se responsabiliza por toda a sua operacionalização. Já nos contratos de parceria público-privada há a privatização total da prisão, visto que ao setor privado caberia o projeto, a construção, o financiamento e a operacionalização das unidades por um período de 30 anos (idem). O Estado, sob este último modelo, se faz presente através da nomeação do diretor da instituição e do fornecimento de sua guarda externa.

O modelo cogestionário é o mais utilizado no Brasil. Grande parte das instituições penais brasileiras terceirizam alguns de seus serviços, como a alimentação, os serviços de lavanderia, a assistência jurídica, de saúde e odontológicos e as atividades laborativas. O Complexo Penitenciário de Ribeirão das Neves é o único caso, feito sob o modelo de parceria público-privada, onde a privatização se deu desde a elaboração de seu projeto arquitetônico, avançando para a sua construção, incluindo seu financiamento, e para sua administração.

De modo breve, serão apontados alguns dos problemas e críticas ao processo de privatização formal do sistema penitenciário. O primeiro deles é a impossibilidade de que a privatização das prisões seja uma política universalizável, visto que só é lucrativo para a iniciativa privada atuar nas instituições para presos de menor potencial ofensivo ao sistema. As instituições de maior segurança, onde se encaixam os presos de maior periculosidade, exigem maiores investimentos e, sendo um setor de menor interesse para a iniciativa privada, continuam sob a responsabilidade do Estado. Além disso, deve-se atentar para a falácia do discurso da redução dos custos e encargos públicos difundido por aqueles que defendem a privatização, visto que o valor médio repassado mensalmente pelo Estado ao setor privado por preso, R$ 3000,00, é maior do que o gasto médio mensal com os presos das instituições públicas (R$ 1400,00). As prisões privatizadas apresentam, ainda, problemas como maior rigidez disciplinar, seletividade na escolha dos presos (para que a unidade permaneça como uma “vitrine” do sucesso da privatização) e a precarização e alta taxa de rotatividade no trabalho dos agentes penitenciários, que recebem até quatro vezes menos do que um agente do Estado (Pastoral Carcerária, 2014).

O Projeto de Lei do Senado de número 513 de 2011, que pretende garantir a legalidade da privatização das prisões traçando “as normas gerais para a parceria público-privada na construção e administração de estabelecimentos penais no Brasil”, está no centro dos debates sobre o tema. Toda a operacionalização das unidades prisionais, com a exceção da direção e dos serviços de vigilância externa de escolta, seria responsabilidade do parceiro privado que, regido pela mão invisível do mercado, imprimiria a lógica econômico-privada no sistema penitenciário, garantindo sua autorregulação. Tal processo “trará ganhos para a sociedade, pois possibilitará o que o sistema atual não possibilita, a ressocialização […]”.

Organizações da sociedade civil apontam para a inconstitucionalidade do PLS e alertam que essa divisão do pessoal representaria, na prática, a transferência do poder punitivo e disciplinar para uma empresa privada. Isso implicaria, entre outras coisas, que o parceiro privado passaria a gerir todos os aspectos de execução da pena, o que é problemático tendo em vista que sua lucratividade é diretamente proporcional ao número de presos que custodia. Neste sentido, torna-se impossível defender a velocidade, a flexibilidade e as vantagens econômicas dos cárceres privatizados (Christie, 1993) e, ao mesmo tempo, sustentar que essas vantagens não vão levar à continuidade e ao aprofundamento do processo de encarceramento em massa.

A privatização informal: a gestão da população carcerária pelos comandos


A despeito da intensificação das pressões para a efetivação da privatização formal nos últimos anos, a grande maioria das unidades prisionais estatais funciona, efetivamente, a partir de outro modelo de privatização da gestão do cárcere: o modelo “informal”, caracterizado pela progressiva transferência de funções e responsabilidades da administração para os presos, notadamente os presos que atuam a partir da posição que ocupam nos comandos (chamados também de facções).

Da mesma forma como ocorre no caso do modelo tradicional ou forma de privatização, neste caso há também uma divisão da esfera de atuação dos agentes públicos e dos atores privados em termos do espaço e dos serviços: basicamente, no modelo informal, o Estado concede aos comandos, a prerrogativa de efetivar a gestão das prisões nos seus espaços de convivência, isto é, pátios de sol, celas, interior dos pavilhões (Dias & Salla, 2017; Dias, 2015). Nesses espaços, praticamente todos os serviços são de responsabilidade dos próprios presos: distribuição de alimentação, dos kits de higiene e quaisquer outros materiais (colchão, sedex ou o jumbo que são os materiais enviados por familiares); em algumas unidades prisionais até mesmo medicamentos têm sua distribuição efetivada pelos próprios presos[1]. Além disso, quaisquer espécies de conflitos que ocorram nesses espaços, só serão levados em consideração pelo Estado se, pela sua própria natureza, eles ultrapassaram essa esfera de atuação – se houver homicídio, por exemplo. Trata-se de uma dinâmica singular, portanto, em que o Estado está distante da rotina diária da convivência estabelecida entre os presos e da gestão de um cotidiano cercado de tensionamentos múltiplos, acirrados pela condição de superlotação e de precariedade dos estabelecimentos carcerários.

A administração prisional abre mão de sua prerrogativa de gerir a execução da pena e de custodiar os condenados pela justiça à privação da liberdade. A população carcerária é submetida a uma forma de controle social que é completamente destrelada de qualquer legalidade ou normatividade e que, neste sentido, pode ser compreendida justamente pelo seu caráter arbitrário. Não que os comandos ou aqueles que agem em seus nomes não possam atuar de forma considerada justa. Mas, porque àqueles submetidos a esses controles não tem qualquer possibilidade de expressar demandas ou reinvindicações que estejam em dissonância com as práticas adotadas e sequer se apresenta qualquer alternativa para esses sujeitos. As perversidades presentes nesse modelo de atuação do Estado são evidentes.

Considerações finais


De acordo com Foucault (2002), a prisão vem sendo reformada desde seu surgimento e,  a despeito de seu fracasso datar da mesma época de sua prevalência como forma de punição, entre fins do século XVIII e o início do século XIX, não se questiona o seu papel enquanto método punitivo (Rocha, 2012; Nicoli, 2008). Pelo contrário, a acusação de tal fracasso sempre traz implícita a avaliação de que as técnicas utilizadas pela instituição prisional são rudimentares, insuficientes, não adequadas e mal aplicadas. A delinquência e a reincidência são apresentadas como resultado de uma aplicação imperfeita da técnica penitenciária (Salla, 1991). Aperfeiçoar essa técnica, imprimindo à prisão uma maior racionalidade, representa a tônica de qualquer proposta reformadora dessa instituição, inclusive da proposta de privatização.

Por outro lado, a adoção da estratégia de privatização informal aqui delineada está diretamente articulada à opção política pelo encarceramento em massa e à impossibilidade econômica de dar sustentação aos efeitos produzidos por essa política. Neste sentido, é justamente no âmbito do processo de aumento da população carcerária que se assistiu, de forma mais contundente, a gestão da convivência entre os presos ser gradativamente transferida aos comandos. É apenas quando se considera a proporção existente entre presos/agentes penitenciários que é possível compreender como essa gestão compartilhada opera em sentido prático-empírico e, de forma concreta, é ela que garante a continuidade de uma política de segurança em cujo centro se encontra a prisão (Dias et. al. 2015).

Cada uma das estratégias de privatização, e de uma forma particularmente específica, acaba por reiterar o lugar da prisão na sociedade contemporânea. Desta forma, ambas as estratégias convergem no sentido de nublar o caráter próprio da prisão e a sua função política básica que já havia sido apontada por Foucault, a de produzir a delinquência. No caso do Brasil, a produção da delinquência se efetiva na constituição da prisão como lócus de articulação da criminalidade e de conformação de redes criminais mais amplas, densas e complexas. Para que a posição política estratégica da prisão seja preservada, faz-se necessário recriar continuamente novas formas de justificá-la, novos dispositivos técnicos e discursivos que a legitimem e permitam o fortalecimento do círculo vicioso que articula a dinâmica criminal e o encarceramento em massa como elementos políticos centrais no contexto atual do país.

Camila Nunes Dias é professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos de Violência da USP.

Josiane da Silva Brito é mestranda em ciências humanas e sociais na UFABC.

 

Referências bibliográficas

Christie, N. La indústria del controldel delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993.

Dias, C. N. “A produção da disciplina pelo encarceramento”. Revista O Público e Privado, nºo. 26, jul/dez. 2015, pp. 35-5.

___________. et al. “O encarceramento em massa como política de segurança”. In: Teoria e Debate. Edição 137. Junho/2015.

_______.  & Salla, F. “Formal and informal punishment: the production of order in the prisons of São Paulo”. Prison Service Journal, nº 229, pp. 19-22, 2017.

Foucault, M. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2007.

Minhoto, L. Di. Privatização de presídios e criminalidade: a gestão da violência no capitalismo global. São Paulo: Max Limonad, 1997.

Nicoli, P. A. G. “Trabalho encarcerado e privatização dos presídios: reflexões à luz da Convenção 29 da OIT”. Brasília: XVII Congresso Nacional do Conpedi, 2008.

Pastoral Carcerária. Prisões privatizadas no Brasil em debate. São Paulo: ASSAC, 2014.

Rocha, A. da. “A ineficácia do propósito ressocializante e o processo de privatização das prisões”. Disponível em: http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/1907. Acesso em 20/09/2015

Salla, F. A. O trabalho penal: uma revisão histórica e as perspectivas frente à privatização das prisões. São Paulo: FFLCH – USP, 1991.

[1] Embora tenhamos como parâmetro o sistema prisional paulista no qual esta estratégia assume contornos mais claros, ela não está restrita a este estado. Ao contrário, trata-se de um padrão que tem se espraiado por todo o território nacional, excetuando-se alguns estabelecimentos que possuem características diferenciadas.