A soberania digital sustentável como base para o futuro da Internet

Por Alexandre Costa Barbosa

O dia é 29 de maio de 2030, o CGI.br completa 35 anos de existência e ocorrem os preparativos para a assembleia geral da Organização das Nações Unidas (ONU) de fechamento do ciclo dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS). O desenvolvimento e uso da Internet se tornaram temas transversais à toda Agenda 2030 e o Fórum de Governança da Internet IGF ganhou protagonismo dentro da estrutura da ONU. Os países e setores estão equilibradamente ocupando cargos nos grupos de tomada de decisão e de discussão de temas relacionados à Internet, além de se tornarem lideranças na futura agenda para o planeta e a humanidade.

Otimismo à parte, não cabe aqui fazer um exercício inocente de futurologia, mas evidentemente promover uma manifestação no sentido de menos dizer como realmente será ou como alguns diriam que deveria ser, mas como pode ser a agenda de Internet tendo em vista os interesses de populações historicamente vulnerabilizadas, movimentos sociais, povos originários e países periféricos, ou do chamado Sul Global. A intenção é mostrar alguns temas estratégicos e reflexões para o futuro da Internet. Para tal, o texto traz uma breve recapitulação do papel do Brasil na agenda global de Governança da Internet e as intersecções entre a mesma  e a ampla Agenda 2030, além de elencar pontos de frissão que existem e não podem ser ignorados. Isto é, indicar uma utopia possível da Internet no médio e longo prazo.

Foi aproximadamente quando se lançou a Agenda 2030 que se prorrogou por mais uma década a vigência da agenda da Cúpula Mundial para a Sociedade da Informação (CMSI). Eu confesso que embora o então Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-Moon, tivesse solicitado uma maior aproximação da agenda da CMSI e a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável ainda há muita disparidade nesse alinhamento. Destaco que o presente texto terminou de ser escrito durante a realização do 17º Fórum de Governança da Internet (IGF) que ocorreu em Addis Ababa, Etiópia, entre os dias 29 de novembro e 2 de dezembro de 2022. Dado o que foi debatido, eu diria que para pensar o futuro da Internet, tendo em vista o horizonte dos pŕoximos sete anos, precisa-se olhar com atenção para quatro questões basilares: das  plataformas digitais; do acesso significativo, do trabalho decente e a ambiental. Pretendo ir além e dizer que existe um emergente conceito que pode realmente amparar essa convergência: a soberania digital sustentável (SDS).  Conceito que tem sido promovido pelo Instituto de Internet Alemão (Weinzenbaum).

A soberania digital é polissêmica, logo cada parte parte busca promover seus respectivos interesses (Pohle et al. 2021; ISOC, 2022), mas isso já demonstra a sua difusão nas narrativas acadêmicas e políticas. Para além da perspectiva da retomada do Estado enquanto poder supremo, mesmo que representando os interesses da população, a perspectiva pode variar da ideia de independência do ciberespaço, como enaltecem pioneiros da Internet, para a possibilidade de pensar a autonomia tecnológica de povos originários ou a partir dos movimentos sociais (Haffé, 2014). Pode-se inclusive, defender uma soberania a partir do indivídio execendo sua autoridade e agência perante seus dados, o que estaria alinhada à ideia de audodeterminação informacional ou digital. É fundamental ressaltar que esta e a soberania digital são agendas complementares e não excludentes. Vamos às questões.

A questão das plataformas

Perdão pela retórica, mas não podemos nos iludir com qualquer discurso de que existem bilionários do bem, sobretudo em uma questão tão transversal e cada vez mais capilarizada como a digital. Não são as gigantes plataformas digitais que vão nos permitir emancipar enquanto indivídios, proteger o nosso planeta e buscar a paz mundial. Afinal, como diria a acadêmica e escritora Angela Nagle: “as empresas de tecnologia podem gostar do fator de boa sensação do feminismo interseccional e do discurso de diversidade, mas existem poucas coisas que elas amam mais, como a evasão fiscal e o capitalismo de monopólio”.

No Brasil tem parte do terceiro setor que acredita que a agenda regulação de plataformas está vencida, caíram totalmente no argumento que favorece as grandes empresas ao  reduzir todo o escopo de uma economia de plataformas às de redes sociais, à privacidade e à liberdade de expressão (que são fundamentais, obviamente). Falam de regulação de conteúdo digital ignorando que plataformas também deve levar em consideração a computação em nuvem, mecanismos de buscas, comércio eletrônico, etc. Ignoram também, por tática ou desconhecimento, a diversa tipologia de plataformas como aquelas que viabilizam a transação entre duas partes, das agregadoras, das que permitem inovações surgirem a partir delas, como sistemas operacionais e lojas de aplicativos, cada qual com respectivas formas de rentismo (Mazzucato et al. 2020). Qualquer regulação de plataformas que queira efetivamente pensar em plataformas para o bem comum, como nos princípios fundadores da Internet, deve atacar a extração de valor de seus serviços infraestruturais. Serviços esses que poderiam e deveriam ser abertos por padrão se os princípios primordiais da Internet tivessem sido seguidos na prática.

Para além da regulação é preciso pensar em alternativas. Precisamos fomentar novas formas de desenvolver plataformas como infraestruturas públicas digitais. A soberania aqui tem relação direta com a retomada do poder do Estado perante ao mercado. Aliás, precisamos ter um olhar específico para plataformas essenciais ou de serviços interesse geral (BUSCH, 2021), como plataformas para saúde, educação e mobilidade urbana. Além disso, se a “geografia faz a guerra”, o fato da Google ter datacenters em Gaza e no Iêmen, bem como deter cada vez posse da infraestrutura de geodados mundial não pode ser vista como consequência natural do “mundo livre”. Prefiro pensar na arquitetura de James Muldoorn (2022), que trabalha a ideia de um ecossistema de plataformas a partir de uma perspectiva multi-nível. No nível local teríamos plataformas de limpeza, trabalhos artesanais e entregas de comida; já no municipal plataformas para aluguel temporário e de motoristas; no nacional plataformas para a saúde e proteção social; e no internacional plataformas de redes sociais e mecanismos de busca, por exemplo.

Afinal, se buscamos pensar uma economia digital realmente inclusiva e democrática, precisaremos relembrar o papel do Estado na promoção das principais tecnologias, incluindo a própria Internet, hoje utilizadas como apontado por Mariana Mazzucato. A respeito do futuro da Web e o papel de governos, devemos escutar Francesca Bria, presidente do Fundo de Inovação da Itália, quando diz que “não podemos nos esconder dessa responsabilidade invocando o poder das criptomoedas, do mercado ou da financeirização” (Morozov 2022).

A questão do acesso significativo

Outro conceito que tem ganhado tração na agenda da Internet é o de acesso significativo que deve ser a base para pensar políticas públicas de inclusão digital no curto prazo. Trata-se da ideia de ir além de uma conectividade significativa, isto é, uma que garante uma velocidade de banda adequada, o preço pago pelo serviço ou o tipo de dispositivo utilizado. A pandemia nos mostrou que embora dispositivos móveis como celulares e tablets remediaram danos maiores ao viabilizar o acesso a serviços básicos como educação, saúde e proteção social,  tampouco podem ser considerados o principal meio de acesso a Internet. Quem pode utilizar a Internet por meio de computador e fibra-óptica em banda larga fixa, por exemplo, teve muito mais conveniência.

Um aspecto central é que o acesso significativo para além da conectividade leva em consideração o uso da Internet. Afinal, a forma como cada pessoa utiliza a Rede é determinante não só para legitimar a sua participação na Internet, mas para estabelecer  relações de confiança entre cidadãos e cidadãs e provedores de acesso, bem como de aplicações.  Nesse sentido, o acesso significativo perpassa a promoção da equidade e a redução das desigualdades digitais. Vale destacar a disparidade da proporção de  domicílios com acesso à Internet entre o Norte e o Sul Global. Além disso, temos de pensar políticas e arranjos de cooperação que priorizem e integrem a educação digital desde o início do ciclo, incluindo literacias midiáticas, tecnológicas e de dados. Para ilustrar, trata-se de uma educação digital emancipadora que ao conectar na rede já saibamos dos riscos de desinformação e discurso de ódio, como minimamente opera a arquitetura de um computador e de um sistema de redes, bem como funciona o modelo de negócios a partir da extração de dados para manipulação do comportamento via anúncios publicitários. A experiência local é fundamental nesse processo.

É interessante pensar a SDS, por exemplo, a partir das Redes Comunitárias de Internet, quando comunidades e territórios com prévia organização social e política se apropriam da infraestrutura de conectivadade e criam políticas locais para o acesso e uso da Internet (CGI.br 2022). A governança global da Internet tem muito a aprender com as experiências local das redes comunitárias e acredito que até 2030 será possível dar mais visibilidade para essas ações como em sessões principais de IGF e defesas abertas de modelos de acesso que não sejam baseadas na demanda de serviços com finalidade de lucro. Isto obviamente perpassa a necessidade de pensar, planejar e implementar uma transição na economia digital dos pequenos provedores de acesso à Internet.

A questão do trabalho decente

Entendo que o tema do trabalho pelo e para a Internet é também central para o futuro da Rede. Por mais que se possa tentar ao máximo desvincular o debate trabalhista do de infraestrutura de comunicação e informação em si, esse afastamento tende a dividir mais que harmonizar as agendas. O exemplo claro do não-alinhamento é que a primeira oficina da história do IGF que discutiu a questão do trabalho digital por uma perspectiva crítica e histórica foi um promovido pelo CGI.br em 2021. Até então o debate se pautava em diálogos do futuro do trabalho atrelados às novas competências e habilidades retroalimentadas por utopias ciberlibertárias. É nítido o elemento ideológico: quando é para tratar da questão do trabalho de forma concreta ela não diz respeito à agenda da Internet.

Até 2030 temos que garantir a consideração do trabalho de plataformas, incluindo  desenvolvimento das mesmas, como vetor central para a promoção do trabalho decente. A visibilidade da contemporaneidade desses ofícios pode impulsionar a paridade de salários às condições mínimas de vida[1], possibilitar novas formas de organização e aumentar o poder de barganha de trabalhadoras e trabalhores, assegurando direitos historicamente conquistados. Não se pode menosprezar que tanto plataformas baseadas na localização, tais como as de motofretistas e de motoristas, quanto plataformas que operam a nível global (org. ANTUNES 2020) também alteram a dinâmica do trabalho nos territórios. Ademais, o trabalho de plataformas por si questiona o Estado nacional, e a suas especifidades legais. É hora da sociedade civil de direitos digitais, os movimentos de trabalhadores e trabalhadoras e as centrais sindicais dos países se unirem para mapear quais são, de fato, os pontos de convergência para os aperfeiçoarem e serem discutidos na esfera internacional.

Uma proposta de remodelagem da divisão internacional do trabalho pode vir dos debates multissetoriais da comunidade Internet no âmbito da soberania digital sustentável. Isso tem um potencial enorme para mostrar que a Internet não quer se colocar como sistema socio-técnico informacional hegemônico, mas uma rede transnacional de comunicação que em vez de unificar, busca unir as pessoas e territórios do planeta, como diria Milton Santos.

A questão ambiental

A SDS também é fundamental para consolidar de vez a pauta ambiental como transversal à toda discussão de Internet. Por mais que se possa alegar protecionismo comercial ao pensar a regionalização da cadeia global de infraestrutura crítica da Rede, por exemplo, não se pode ignorar que é um aspecto relevante se quisermos reduzir as pegadas de carbono de cabos terrestres e submarinos, satélites, torres de transmissão, bem como servidores, datacenters e outros hardwares. Não estou dizendo que é para cada país ou região desenvolva toda produção industrial, mas que busque ao máximo fazê-la, de forma a explorar alternativas em inovações nas ciências dos materiais. Ou seja, enquanto houver conflito minerário na República Democrática do Congo para extração de coltan para produzir capacitores ou ameaças aos povos originários da amazônia para extração de ouro negociados por terceirizadas das gigantes da tecnologia[2] a Governança da Internet não pode permanecer calada.

No âmbito da agenda da CMSI se encerrou em 2022 a Rede de Políticas para o Meio Ambiente (PNE, Policy Network on Environment), que embora tenha sido um primeiro esforço de aproximação real da pauta ambiental da pauta da Internet ainda deixou muito a desejar em resultados palpáveis. Participei de reuniões e minimamente contribui para o relatório final da agenda e o que vimos de verdade foi a promoção contraditória de agendas comerciais e agendas ambientais, como a utilização de criptomoedas para o mercado de carbono ou a promoção de aplicações de “tecnologia verde” que ignoram a necessidade descabornizar  as camadas inferiores da Internet. Ignoram, também, a emissão de poluentes no processamento de dados ou a mencionada cadeia de produção de dispositivos eletrônicos. Além disso, creio que devemos promover a abertura de dados fundamentais para a transição ambiental e energética, bem como elencar a justiça socioambiental como princípio para a governança e uso da Internet. Isto é, utilizá-lo como critério determinante de qualquer projeto, financiamento e política no âmbito da Internet.

Vale destacar que o dinamarquês Mogens Lykketoft, quem presidiu a 70ª assembleia geral da ONU  em 15 de junho de 2015, enalteceu a promoção das Tecnologias de Informação e Comunicação para o Desenvolvimento. No discurso, ressaltou o aumento da produtividade, a geração de empregos de qualidade e o provimento de serviços digitais essenciais como saúde e educação. Talvez seja o momento de ir além, e promover as TIC para Alternativas ao Desenvolvimento, considerando outras lentes de melhoria da qualidade vida atreladas à pauta ambiental. Por que não pensar numa Internet para o Bem Viver? Uma Internet na era do decrescimento? Uma Internet ecossocialista? Em suma, a Internet só poderá existir enquanto rede global se for uma Internet livre, aberta e inclusiva, portanto, pós-capitalista.

A soberania digital como elemento convergente

A agenda da soberania digital vai encontrar muita resistência nos próximos anos, sobretudo das mesmas vozes que ecoaram nos últimos trinta, quarenta anos. No entanto, a demanda por soberania na era da informação é legítima e inadiável. Para evitar a fragmentação da rede, aprofundar guerras comerciais, culturais e civis, bem como a irreversibilidade da crise ambiental, temos de não só promover a soberania digital, mas a sua integração à agenda de sustentabilidade com quem já atua nesta.

Por fim, tem se promovido uma “Declaração para o Futuro da Internet”[3] articulada por Washington e impulsionada por Bruxelas nos últimos anos. O Brasil que já organizou reuniões da ICANN, dois IGFs, consultas internacionais como o NETMundial, deu exemplo com o processo de elaboração e  com o conteúdo do Marco Civil da Internet, bem como lançou o modelo multissetorial de governança da Internet uma década antes da Cúpula Mundial para Sociedade da Informação (CMSI) não pode ser mero signatário. Felizmente, tudo indica que não o será.

Afinal, quem deve decidir o futuro da Internet? Certamente os países soberanos do Sul Global, por meio de inovações institucionais como o resgate do Movimento dos Não-Alinhados no ambiente digital[4], e o Brasil pode, deve e tende a liderar esse processo. Espero que a comunidade científica e tecnológica, o terceiro setor e o setor empresarial possam pactuar com o Estado uma visão que seja benéfica para o Brasil, para a América Latina, África e Ásia, e consequentemente a será para os países dito desenvolvidos. Um pacto pela soberania digital sustentável.

Alexandre Costa Barbosa é assessor especialista do CGI.br

Referências

ANTUNES, Ricardo (2020). org. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. Ed. 1, Boitempo, São Paulo.

BUSCH, Christoph (2021). Regulation of digital platforms as infrastructures for servi- ces of general interest. Bonn: FES. Disponível em <https://library. fes.de/pdf-files/wiso/17836.pdf>.

CGI.br (2022). Redes Comunitárias de Internet: experiências de implantação e desafios para a inclusão digital. Disponível em <https://cetic.br/en/publicacao/redes-comunitarias-de-internet-no-brasil/>

HACHÉ, Alex (2014). La souveraineté technologique. Mouvements. p. 38-48, v.79, n.3.

ISOC (2022). Navigating Digital Sovereignty and its Impact on the Internet. Internet Society. Disponível em <https://www.internetsociety.org/wp-content/uploads/2022/11/Digital-Sovereignty.pdf>

MAZZUCATO, Mariana; KATTEL, Rainer; O’REILLY, Tim;  ENTSMINGER, Josh (2021). Reimagining the Platform Economy. Disponível em <https://www.project-syndicate.org/onpoint/platform-economy-data-generation-and-value-extraction-by-mariana-mazzucato-et-al-2021-02>

MTST (2022). A Soberania Digital a partir dos movimentos sociais. Blog da Boitempo. Disponível em <https://blogdaboitempo.com.br/2022/11/11/a-soberania-digital-a-partir-dos-movimentos-sociais/>.

MOROZOV, Evgeny (2022). Francesca Bria on Descentralization, Sovereignty and Web3. Syllabus. Disponível em <https://the-crypto-syllabus.com/francesca-bria-on-decentralisation/ >

MULDOORN, James (2022). Platform socialism: How to reclaim our digital future from big tech. Pluto Press, Londres. p. 182.

POHLE, Julia; THIEL, Thorsten. Digital sovereignty. Practicing Sovereignty, Digital Involvement in Times of Crises. Bielefeld: transcript.

[1]. O salário mínimo necessário no Brasil deveria superar seis mil reais segundo o DIESSE. Disponível em <https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html>

[2]. A ONG CodingRights elaborou um mapa para entender a cadeira de produção da Internet. Disponível em <https://www.cartografiasdainternet.org/>

[3]. Disponível em <https://www.state.gov/wp-content/uploads/2022/04/Declaration-for-the-Future-for-the-Internet.pdf>

[4]. A ideia de Movimento dos Não-Alinhados na era digital foi debatida em <https://hcss.nl/wp-content/uploads/2021/09/Is-There-Space-for-a-Digital-Non-Aligned-Movement.pdf>