Alcir Pécora: ‘Hoje o que não está resolvido é qual o valor e a estética literária na vida contemporânea’

Por Mariana Hafiz

Os hábitos de leitura dos brasileiros têm mudado nos últimos doze anos, conforme mostra o estudo “Relatos da Leitura no Brasil”, do Instituto Pró-Livro. A última pesquisa, feita em 2016 com dados de 2015, mostra, por exemplo, que o brasileiro lê em média 2,43 livros inteiros por ano, apesar da porcentagem de leitores no país ter aumentado para 56% em relação a 2011 (50%).

Além disso, surgem novos fenômenos no âmbito da literatura a partir do momento em que há aumento de tecnologias digitais facilitadoras de leitura, que buscam otimizar o acesso a livros e à experiência literária como um todo, como no caso das livrarias online, aplicativos para dispositivos móveis, Kindles e e-books.

Onde fica a teoria literária nesse novo e crescente ambiente digital é o tema da entrevista com o crítico literário e professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, Alcir Pécora. Ele fala à ComCiência sobre realizar pesquisa em literatura e seu papel na atualidade e dá sugestões de leituras que considera importantes neste momento.

Pécora editou e organizou publicação das obras completas dos escritores paulistas Hilda Hilst e Roberto Piva com a Editora Globo: “São obras de intensidade incômoda”. Foto: Antônio Scarpinetti/SEC Unicamp

Grande parte das suas pesquisas se refere ao padre Antônio Vieira. De onde vem esse interesse?

O interesse vem desde a minha graduação. Eu fiz um curso de ciências humanas, na época não existia curso de letras, passei por várias disciplinas e particularmente me interessava pelos estudos de filosofia da linguagem e de retórica e uma vez que eu estava dentro desse campo da retórica eu escolhi um autor que pudesse ser interessante. O padre Vieira foi mais uma decorrência do campo dos estudos em que eu estava do que propriamente uma escolha por ele.

Como é feita uma pesquisa na área da teoria literária? Quais contribuições são antecipadas?

A ideia de uma pesquisa em teoria literária tal como a gente faz hoje, em que você faz um projeto, estabelece um método, um objeto definido, uma bibliografia que dá conta do tema e que tem resultados esperados, ou não, é uma coisa mais recente a partir de uma espécie de profissionalização do campo da universidade e da pesquisa. Mas a própria literatura, o que é específico dela, não é nada disso, trata-se na verdade de uma questão do estudo. Na pesquisa em literatura, basicamente do que se precisa é ter um repertório de textos que deve ser relativamente grande, seja em literatura brasileira ou outra, e também um repertório de autores e teoria associados a isso. É mais um estudo de erudição, digamos assim, onde você tem um campo amplo de conhecimento a partir do qual você discute um acontecimento particular do que propriamente uma coisa objetiva, que se desenvolve como pesquisa, com controle metodológico ou mesmo controle de aplicação. Tudo isso é um imposição científica, mas na prática da teoria literária o que conta e tem mais prestígio é o que se associa a esse repertório de estudos.

Em que momento a crítica literária entra na sua trajetória?

Entrou muito naturalmente, também não foi uma escolha que eu fiz. Isso se associa a um campo mais tradicional de estudo, então hoje encontramos pessoas que são formadas dentro da universidade, onde há maior profissionalização, e elas estão associadas a grupos de estudos, circulam internacionalmente, realizam todo esse academic business que faz com que as pessoas vivam dentro da sua própria área. Na minha época não era assim, a ideia do intelectual naquele momento era de intervenção pública. Tanto fazia para mim se eu escrevia um artigo ou se eu estava escrevendo para o jornal, então a minha atuação enquanto crítico foi mais uma ideia de militância dentro do campo, uma ideia geral de formação intelectual.

Como você enxerga o papel da crítica na era digital? Ele se mantém o mesmo do que era nos anos 60/70, quando a literatura ainda era uma forma de centralizar a identidade e interpretação nacional?

Eu falei muito sobre isso em um texto que fiz para aula magna que ministrei em Coimbra (Portugal) chamado “Musa Falida”. Nele, falei sobre como as pessoas podiam pensar sobre literatura hoje, mesmo que não fossem da área de letras. O que me pareceu foi que há uma clara perda de centralidade da literatura no âmbito dos estudos de humanidades, ainda mais no âmbito das ciências. A literatura, até um certo momento, enquanto foi central, está muito associada a uma discussão do nacional, era na literatura que se investigava essa formação de identidade nacional. Com o tempo essa identidade entra em espécie de crise, pelo processo de globalização e pelo aparecimento de questões inteiramente novas que acabaram se sobrepondo à questão da nacionalidade, por exemplo o capital internacional e pautas de identidades oprimidas, ou seja, o negro, a mulher, o índio, o gay. Todas essas questões passaram a ser mais importantes do que as questões nacionais e essas discussões deram pouquíssima importância para qualidade literária em que ela se dá. Hoje, preocupa-se mais em afirmar os direitos da literatura como instrumentação, o que foi retirando a centralidade da literatura, então ela aparece muito mais como ilustração de outras questões pensadas em outros campos. A literatura hoje precisa encontrar uma nova centralidade, está muito desencontrada.

Hoje é possível – e comum – que críticos comuniquem suas análises diretamente ao público, via Twitter, blogs, YouTube e outras mídias sociais, não necessariamente passando pelas mídias tradicionais. Como avalia esse contexto?

Eu acho que a ideia de opinião, de fato, cada um pode dar a sua. Mas dentro dessa discussão sobre uma formação intelectual, de constituição de repertório, o núcleo não é a opinião. O que dá autoridade intelectual para uma análise literária, no caso, é o nível e a abrangência dos seus argumentos, a construção deles. A rigor, o núcleo do que eu estava tentando fazer não era questão de opinião, está muito mais relacionado à localização de um evento dentro de um grande conjunto de fatos ou de leitura. Então às vezes a descrição do fenômeno, o contexto global dele, é mais importante do que sua opinião sobre ele. O YouTube, por exemplo, é uma experiência que eu não tenho, meu uso da internet não é muito ativo, mas de fato hoje ela autoriza as opiniões mais diversas, de acordo com as mais diversas referências e hoje as pessoas falam de cada experiência que elas tiveram isoladamente. Mas isso é um campo que não está relacionado à discussão de análise literária que eu tento trazer.

Alguns autores defendem que uma forma de garantir que as pessoas leiam mais e, consequentemente, atentem mais às críticas literárias é melhorar o engajamento com o público nos textos ou qualquer forma utilizada para comunicar a crítica. Você concorda? Quais estratégias de engajamento você costuma usar?

Eu acho que ou a literatura tem poder por ela própria, no sentido de que ou os textos literários têm força e qualidade suficientes para se afirmar sobre as questões ou isso vai ser levado de roldão. Porque de que adianta ter boa vontade em relação a uma área que já não tem força? Existe, de fato, um apelo de coisas visuais ou gadgets nos celulares e tablets, mas não acho que nenhuma dessas novas linguagens sejam hostis à literatura por si próprias – porque o fato de a literatura aparecer no celular, por exemplo, não é um impedimento necessário à leitura. Não acho que essas invenções sejam contrárias às literaturas, eu acho que o problema é mais grave: é que a literatura não sabe aonde ir. Hoje, o que não está resolvido é qual o valor e a estética literária na vida contemporânea. A questão é como encontrar um valor estético da literatura dentro das questões mais importantes, a qualidade dos textos dentro dessas questões. Então esses recursos de engajamento podem até tentar atrair mais leitores, mas não acho que deva levar a muito longe.

Que livro está lendo agora? Há algum que você considera a leitura uma necessidade neste momento?

Nesse momento estou lendo a reedição do (J.D.) Salinger com novas traduções que estão saindo no Brasil. É um texto chave que teve muito impacto nos anos 1950 e 1960, justamente por tratar de uma espécie de depressão juvenil, onde fica-se deprimido com a vida adulta. Ele é um escritor fantástico que escreveu uma obra bem pequena e depois se retirou completamente, nunca mais escreveu. Três desses livros, O apanhador no campo de centeio, Nove histórias e Franny & Zoey foram reeditados no Brasil e estou lendo essas novas traduções. Esses três textos são uma indicação que eu acho fundamental e que eu gosto muito, especialmente do Nove histórias.

Mariana Hafiz é jornalista formada pela Unesp e cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp. Trabalhou com divulgação científica de astronomia em espaços não formais.