Claudio Giordano, um recuperador de textos antigos preocupado com nossa memória

Por Mateus Bravin Constant Lopes

Claudio Giordano fundou a Editora Giordano em 1990. Em parceria com editoras universitárias, Editora Ateliê, Loyola, entre outras, editou obras no intuito de “recuperar nossa memória”, desenvolvendo um acervo próprio de livros do passado, escrito por “aventureiros” que o antecederam. Recusa a denominação de bibliófilo, pois não se vê como amante dos livros. Para ele o livro sempre foi uma companhia, “alguém para dialogar”.

Em 1999, Giordano recebeu o prêmio Jabuti de tradução pela obra cavaleiresca de Joanot Martorell, Tirant lo blanc, traduzida diretamente do catalão. No mesmo ano criou a Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, publicou dezenas de títulos – algumas edições de caráter artesanal. Giordano deu continuidade aos projetos de sua antiga editora, com destaque para a Coleção Memória, segmentada em memória brasileira, portuguesa e universal, com 40 títulos entre 1991 e 2006.

Passou a ser reconhecido pelo seu trabalho entre editores e bibliófilos e chegou a receber uma doação de 10 mil livros brasileiros editados entre 1900 e 1950, que somada a outras doações e aquisições, constituía um acervo de 40 mil itens. Por dificuldade financeira, doou o acervo à Biblioteca Central César Lattes da Unicamp, disponível para consulta desde 2008.

Como se deu seu trabalho com livros?

Até 1988 eu trabalhei no comércio. Eu resolvi abreviar o tempo para aposentar, me desliguei de vínculo empregatício e, por acaso, acabei indo trabalhar na Livraria Corrêa do Lago, na rua João Cachoeira, em São Paulo. Lá eu passei dois anos e me despertou a vontade de fazer alguma coisa voltada à recuperação de nossa memória. Lá tinha um acervo fantástico tanto de cultura brasileira quanto de cultura universal. Não era um sebo, era um antiquário.

Depois desses dois anos me deu a ideia de fazer alguma coisa e o único jeito foi abrir uma editora, porque não tinha outra maneira de engrenar. Quer dizer, na minha fragilidade de visão, né? Então eu abri a editora e comecei a editar algumas coisas do passado. A Coleção Memória eu fiz associado com a Editora Loyola. Acabei tendo a atenção do diretor que era um padre, ele se entusiasmou com meu entusiasmo e editamos dez livros. Depois, é claro que não se inseria no catálogo da Loyola e com isso ele foi perdendo um pouco do entusiasmo.

Eu saí e continuei por um bom tempo bancando, fazendo coedições. Aí eu fiz coedição com a Edusp, a Unicamp, com a UFMG e outras. Mas de repente me caiu a ficha de que era mais fácil para recuperação de memória armazenar ou recolher o que já existia. E não tentando fazer edições de autores menos palatáveis para uma editora comercial – daqueles que ficaram esquecidos, que caíram do bonde da história [risos].

E foi o que aconteceu. Tinha a dificuldade de distribuir, porque o Giordano não era conhecido, quer dizer, com as brochurinhas pequenas, para você competir com os grandes editores e pôr nas livrarias não era fácil. Então me ocorreu que eu podia criar uma entidade. Eu gosto de frequentar sebo, ir caçando nos sebos para ver o que tinha. Com isso eu consegui apoio. Um dos que se entusiasmaram foi o [bibliófilo] doutor Mindlin e o [editor] Plínio Martins. Então, foi criada a Oficina do Livro, cujo propósito era trabalhar para melhorar a memória esquecida, considerando que nós somos um povo sem memória.

Foram sete anos de uma produção muito grande, primeiro formando o acervo de livros do passado. Comecei a coletar nas minhas buscas em sebo e em doações, passei a receber muita doação. Fazendo contato aqui e ali eu recebia doação, então selecionava aquilo que fazia sentido para o escopo do acervo. E o escopo era essencialmente mostrar o que se produziu editorialmente no Brasil e, é claro, de um período não tão próximo. Então eu determinei que, em princípio, livro posterior a 1950 era de fácil acesso e estava no mercado ainda.

Eu tinha a ajuda do [Joseph] Safra e do Ermírio de Moraes. Esses dois sustentavam o aluguel. Eu não tinha remuneração como presidente. Na verdade eu era o presidente, o office boy e o faxineiro [risos]. Até que em 2005 cortaram a ajuda que estavam me dando.

Você tinha um acervo com mais de 40 mil itens, entre livros, jornais, revistas e documentos, obras em português, inglês, francês, italiano, espanhol, catalão. O que fazer com esse material todo sem o recurso necessário para mantê-lo?

Bom, minha primeira atitude foi oferecer para o IEB (Instituto de Estudos Brasileiros) da USP e eles aceitaram. Só que o tempo foi passando, essa oferta foi feita em maio de 2006, em outubro de 2006 não tinha acontecido nada e eu estava desesperado porque a poupança já tinha acabado. Se o IEB não se decidisse, eu teria de abrir um sebo porque não tinha o que fazer com aqueles livros. Um dia eu fui apreciar um evento e me encontrei com a Maria Eugenia Boaventura, professora do IEL (Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp). “Oi Giordano, como vai e tal. E a Oficina?”. “Ah, estou com um problema. Estou descontinuando, aconteceu isso assim e tal”. Bom, aí eu fui para um lado e ela pro outro.

Por coincidência, coincidência mesmo, na hora de ir embora a gente se encontrou de novo e ela insistiu: “Giordano, me dá mais detalhes”. Eu expliquei para ela o que tinha acontecido. Ela falou: “Posso melar o meio de campo?” [risos]. Aí eu falei “pode”. “Eu vou levar para a Unicamp o seu acervo”. Na semana seguinte me ligou o Alcir Pécora do IEL, falando “Giordano, nós recebemos o seu acervo, pagamos dois meses de aluguel, pagamos transporte e mantemos o acervo em nome da Oficina”. Não tive dúvida [risos]. E assim foi, em dezembro o acervo foi para a Unicamp.

E como era seu trabalho como editor e tradutor?

Fui editor, mas na verdade eu era um recuperador de texto. Um editor é aquele que estuda a mecânica da produção de um livro, eu era um mero aprendiz de feiticeiro. E como tradutor fiz bastante coisa, mas não tinha especialização. Buscava aquelas obras que achava importantes para que viesse à tona aquele autor ou aquele texto para um futuro tradutor de verdade. Meu trabalho não foi de um grande conhecedor do idioma que estava traduzindo, era de um esforçado que procurou dar uma primeira versão para que aquilo saísse do ostracismo.

Foi o caso de Tirant lo blanc, que é curioso porque demoraram 500 anos para a promessa feita pelo Joanot Martorell, que publicou em 1490 a tradução do inglês para valenciano, isto é, catalão, e dizia publicar em português. Mas nunca saiu a versão em português. Saiu a minha tradução 500 anos depois.

Este ano você lançou em parceria com a Imprensa Oficial o nº 4 da Revista Bibliográfica e Cultural, iniciada em 1999. O que é esta revista?

Bem, na Oficina eu produzia como divulgação a Revista Bibliográfica e Cultural, onde eu ia mostrando de uma forma dinâmica uns 300 itens que eu fui divulgando por parte do acervo nos quatro volumes da revista. Era um repositório bibliográfico do acervo.

O que eu fazia era reproduzir capas, normalmente punha o índice da obra, quando oportuno reproduzia uma das orelhas ou então um prefácio, às vezes o livro todo [risos]. Como foi o caso de uma paródia, de uma peça de teatro que comove os portugueses até hoje, desde que foi publicada em 1902. Chama A ceia dos cardeais, é a hora de saudades dos cardeais que se reúnem e lembram da juventude. Saiu muita paródia. Como eu vi que ninguém conhecia, reproduzi a peça e a paródia que era muito rara, uma das mais de 30 paródias que existem. Entre o nº 3 e o 4 da revista há um intervalo de 17 anos pela dificuldade em realizar a tarefa, que eu fazia sozinho, mas ficou mais difícil após o fechamento da Oficina. Eu fiquei como um peixe fora d’água.

Antes, em 1985, quando eu trabalhava na Abril, lancei o primeiro de 22 números do boletim Nanico — Homeopatia Cultural. Eu fazia por conta própria. No início eram dez páginas, feito em tipografia pelos tipógrafos que haviam trabalhado na Abril antes de descontinuar a tipografia. Produzi dez números. Ali era uma pequena reflexão existencial e de vez em quando contava com publicação de poemas de amigos próximos. Teve um hiato grande entre o nº 10 e o 11, que foi o período que comecei a organizar a Oficina, e depois passou a ser impresso em gráfica normal. O ponto básico era o seguinte: a Revista Bibliográfica era ligada à Oficina e ao passado. E o Nanico passou a ser um diálogo com o presente, os amigos da Oficina no presente, digamos assim. O último saiu em 2011.

Em 2015 escrevi Apontamentos de leituras pela SESI-SP. Eu pretendia que fosse o último depoimento meu para justificar minha aventura de vida. Pelo que se pode ler no livro, eu já estou com a cabeça feita e não sei se vou mudar. O homem cresceu fantasticamente graças à sua inteligência em conquistas materiais, em domínio da natureza, mas a respeito de si mesmo ele não cresceu nada. Pelo contrário, está pondo em risco a sua sobrevivência de uma forma que é irreversível.

E hoje em dia, qual é sua relação com preparação de textos?

Depois que fechei a Oficina, por acidente de percurso, acabei indo dar colaboração para uma biblioteca vinária [sobre vinhos], que simplesmente tem 90 incunábulos [livros publicados antes de 1500]. Para saber a importância dessa quantidade, na Biblioteca Nacional tem 200 e tantos incunábulos, num acervo de milhões de livros. Então você imagina a qualidade dessa biblioteca.

Há cerca de dez anos, produzo para o sr. Juan Carlos Reppucci, dono da biblioteca, um pequeno livro que ele distribui como cumprimento natalino aos amigos. As tiragens são de cento e poucos exemplares e o assunto é  sempre vinário, contemplando algum item da biblioteca. Faço todo o trabalho editorial e mando para a gráfica produzir a impressão. Para vários deles fiz traduções e sempre preparo um texto de apresentação. O deste ano é uma seleção de Rubaiyat de Omar Khayyam. Neste caso fiz a tradução apenas do texto de apresentação, reproduzindo a tradução de Manuel Bandeira para o português e selecionando as traduções espanhola e francesa.

Mateus Bravin Constant Lopes é formado em audiovisual e aluno do curso de especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).