Divulgação e cultura científica

Por Carlos Vogt, Nereide Cerqueira, Marta Kanashiro
 
A revista ComCiência, em comemoração à sua 100ª edição, publicou uma entrevista com seu diretor de redação, Carlos Vogt. Poeta e linguista, abordou as origens da revista, da cultura científica e a institucionalização da divulgação científica no Brasil. Vogt foi reitor da Unicamp, presidente da Fapesp, coordenador do Labjor e Secretário de Ensino Superior do Estado de São Paulo, e tem uma visão aguçada sobre o tema. Assim, essa edição retoma a entrevista em questão, destacando que é no espirito do conhecimento como bem público e da comunicação pública da ciência que se desenvolvem os trabalhos do Labjor e a publicação da revista ComCiência, desde a sua origem, em 1999.

Como foi o surgimento da revista ComCiência?
A revista ComCiência nasceu com a primeira turma do Curso de Especialização em Jornalismo Científico, como parte de um processo de formação dos estudantes. Isto é, a revista foi proposta como um laboratório para o exercício dos alunos do curso, para a fazerem a apresentação pública dos textos. O nome ComCiência foi produto de um concurso realizado entre os próprios estudantes, para sugestão de nomes. Desta ideia, de termos uma publicação eletrônica no Labjor para o exercício da produção de textos dos alunos do curso, e da qualidade da produção que observamos, seguiu-se a proposta para SPBC que essa fosse também uma publicação associada Labjor-SBPC.
Em 1999, na reunião do conselho da SBPC, onde estávamos eu e Mônica Macedo (uma das idealizadoras do projeto), fizemos para o conselho uma apresentação da revista. Apesar de incipiente, a ComCiência já estava bem estruturada, com o perfil que prevalece até hoje, e o conselho da SBPC aprovou que a revista passasse a ser uma publicação SBPC-Labjor. Até hoje ela carrega o logo da SBPC como uma das instituições que patrocinam a produção da revista.
O número 100 é interessante porque marca o desenvolvimento de uma publicação que começa como exercício acadêmico, escolar, para formação dos alunos e que continua desse modo, com essa função e, ao mesmo tempo, tem essa expressão mais profissional de publicação na área de divulgação científica. A revista passou a ser um referencial nas publicações eletrônicas, tanto para a leitura descomprometida, por prazer, como se pode ver pelo perfil dos leitores, como também do ponto de vista de formação dos alunos de ensino médio que usam a revista como fonte para trabalhos escolares, e ainda em outro nível, como referência para produção de textos acadêmicos.
A revista não é só uma publicação empenhada na divulgação científica para públicos diversos, seja de ensino médio ou de especialistas, como ela também abarca a formação na área de jornalismo científico e divulgação científica. Isso torna a revista um caso particular. Ela é uma revista de divulgação, mas é um laboratório de formação acadêmica, é uma revista de referência acadêmica porque aparece citada em trabalhos acadêmicos, como teses. E isso tudo porque ela tem uma estrutura, que foi a concepção original da revista, que trabalha com diferentes níveis da divulgação, e associa textos de especialistas sobre um tema específico, com reportagens mais gerais. O que se busca é um equilíbrio entre o olhar mais focado e o mais generalista em torno do assunto que está sendo tratado. Uma outra particularidade da revista é que ela, desde o começo, se propôs tratar da ciência enquanto divulgação científica, no sentido amplo, isto é, tratar das ciências humanas, das ciências exatas, das ciências da vida, das humanidades, isto é, tratar desse universo que é abarcado pelo conceito amplo de cultura científica.
 
Qual é esse conceito de cultura científica e como isso influi na forma de divulgação científica?
Há um conceito bastante difundido de que cabe à divulgação científica preencher uma lacuna de informação que o leigo não tem em relação à ciência, isto é, que o leigo é, portanto, analfabeto cientificamente. Por isso os norte-americanos chamam essa atividade de scientific literacy, que é alfabetização científica, isto é, tornar, portanto, o leigo informado das questões da ciência. A partir de surveys e enquetes sobre essa questão, notaram que também nos Estados Unidos o percentual da população que tinha informação sobre muitas questões, eventos ou fatos científicos era relativamente pequeno. Esse déficit de informação – teoria do déficit – orientou durante muito tempo as atividades de divulgação. O que cabia à divulgação científica? Cabia suprir o déficit de informação da população leiga em relação à ciência. Portanto, considerava-se como pressuposto que a população leiga era ignorante do ponto de vista científico e era preciso então levar a ela o conhecimento.
Com o decorrer das atividades em vários países, na Inglaterra, na França, na Europa de modo geral, e com o reflexo disso em países como o Brasil, essa teoria do déficit foi sendo substituída por uma visão mais democrática do papel da divulgação científica. Nessa visão, não cabe à divulgação científica apenas levar a informação, mas também atuar de modo a produzir as condições de formação crítica do cidadão em relação à ciência. Não só cabe à divulgação a aquisição de conhecimento e informação, mas a produção de uma reflexão relativa ao papel da ciência, sua função na sociedade, as tomadas de decisão correlatas, fomentos, aos apoios da ciência, seu próprio destino, suas prioridades e assim por diante. Isso vai além da atitude inicial, na qual o cientista era o sábio, o cidadão era o ignorante e o jornalista científico ou divulgador da ciência era o construtor da ponte entre essas figuras, de maneira a suprir o tal déficit de informação. Essa visão foi sendo enriquecida. E, na Inglaterra, desenvolveu-se o que se chama public understanding of science, que é diferente do scientific literacy, do ponto de vista americano e, em seguida, um conceito que é ligado ao primeiro, mas um pouco diferente, que é o public awareness of science. Um é o entendimento público de ciência, e o outro é a consciência pública da ciência. Nesses casos, o que está sendo enfatizado não é só a aquisição da informação, a possibilidade de acesso à informação, mas a formação do cidadão no sentido em que ele possa ter opiniões e uma visão crítica de todo o processo envolvido na produção do conhecimento científico com sua circulação e assim por diante. Esse é um conceito relacionado à cultura científica que modifica os modos de se fazer e pensar a própria divulgação.
 
Os projetos institucionais do Labjor, que de uma forma geral, envolvem divulgação, e mesmo sua própria concepção de cultura científica, podem ser considerados como instrumentos de inclusão?
O pressuposto é de que se você oferece condições de acesso democrático à informação a toda população, viabiliza um conhecimento que tem a força para socializar, portanto, para produzir o chamado fenômeno da inclusão social do ponto de vista da informação. É claro que questão social é uma questão de fundamento material e econômico. Mas com relação à informação, esses projetos e a proposta de cultura científica são inclusivos, pois promovem informação reflexiva e de qualidade sobre ciência. A revista ComCiência tem pela qualidade dos textos, dos colaboradores e da produção, um papel muito importante. É um site interessante porque ele é livre, é aberto e é em português. É interessante observar, por exemplo, o número de acessos crescente da revista. Hoje tem 800 mil visitações, é um número significativo.
 
Mas, e quando se trata da ciência em nível decisório?
Com a institucionalização da ciência cada vez mais acentuada e mais forte, e com a sofisticação de toda infraestrutura necessária para a produção de conhecimento de pesquisa em diferentes áreas, as condições dessa produção foram cada vez mais sendo dependentes também dos investimentos que devem ser feitos para que essas coisas aconteçam. E esses investimentos são disputados por diferentes programas, por diferentes prioridades. E as decisões são decisões que cada vez mais se tomam em fóruns de participação mais aberta, ou seja, não só por cientistas, mas por políticos e empresários. Isto é, quem são os decision makers? Essa história da democracia participativa foi gerando também a necessidade de que a divulgação pudesse cumprir um papel de formação crítica no leigo, que muitas vezes é quem vai representar uma ONG, um sindicato, e para isso não se espera que ele fique lá batendo estaca, batendo o pé no chão, sem a visão crítica da coisa.
Um dos conceitos, uma das consequências, um dos efeitos, digamos assim, perlocutórios da ciência e da tecnologia é a questão dos riscos implicados. E isso passou a ser debatido em fóruns que não têm mais o fechamento que tinha antes, em que o cientista decidia isso, o empresário sozinho decidia ou o governo sozinho decidia. Hoje há uma participação tão mais aberta da sociedade, que é necessário que as questões estejam sob um entendimento mais claro, mais desenvolvido. Porque mesmo que uma pessoa não seja um cientista, se ela tiver uma visão minimamente razoável do que se trata, sua decisão, seu voto, a sua participação será uma participação criticamente valiosa. Então, isso vale para as tomadas de decisão, para o destino dos investimentos. Onde botar o dinheiro? Por que botar dinheiro aqui, não botar ali e assim por diante. Quem decide isso?
Eu brinco com uma frase do Nelson Rodrigues que dizia que pênalti é uma coisa tão importante que é o presidente do clube que devia bater, eu digo que ciência é um negócio tão importante que não pode ser decidido só pelos cientistas. Agora, não é só pelos cientistas, é pela sociedade como um todo. Não fazer a ciência, não estou dizendo que você vai votar no piloto do avião, em quem vai ser o piloto do avião, não é isso que estou dizendo. Estou dizendo que essas decisões são decisões que devem ser tomadas em fóruns mais abertos do que fóruns propriamente técnicos.
No Brasil você tem uma instituição que foi criada dentro desse espírito, que é a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) e que tem uma participação representativa de cientistas, de acadêmicos, de agentes governamentais, de sindicatos etc, e que é um órgão normativo. Então isso é um novo cenário no mundo todo. Estou dizendo isso para enfatizar o fato de que a questão da divulgação tem um papel estratégico principalmente, um papel fundamental do ponto de vista da participação crítica da sociedade como um todo nessas questões de ciência, que dizem respeito aos destinos, às formas, aos investimentos, aos riscos e assim por diante, aos aspectos todos que envolvem a produção científica.
 
E como o Labjor atua dentro desse contexto de produção e circulação do conhecimento científico?
Eu penso que nós aqui no Labjor entramos exatamente nesse momento de mudança de visão, da science literacy para uma visão mais crítica e reflexiva. O Labjor foi fundado em 1994, e éramos o Alberto Dines, o José Marques de Melo e eu com a ideia de fazermos um laboratório de estudos avançados em jornalismo que tratasse dos temas do jornalismo em geral, desenvolvendo uma atitude crítica, capacitando profissionais. A ideia de nós enfatizarmos uma linha de jornalismo científico surgiu logo em seguida, com a criação do curso. Isso foi em 1997, com a 3ª edição do Pronex (Programa de Apoio a Núcleos de Excelência) – um grande programa nacional criado pelo Ministério da Ciência e da Tecnologia, administrado pelo CNPq. Apresentamos um programa de desenvolvimento de um núcleo de jornalismo científico, com um programa de pós-graduação, de especialização, incluindo as publicações e linhas de pesquisa. A aprovação desse projeto, na época com 700 e poucos mil reais pra cinco anos, permitiu que traçássemos uma linha de atuação que associou o trabalho de produção das revistas como a ComCiência, Ciência e Cultura, revista Patrimônio e outras publicações, como a revista Inovação e depois Conhecimento e Inovação, com as atividades de formação de pesquisadores e divulgadores na área (de formação, portanto, de educação para divulgação, de educação para a ciência). Portanto, ao mesmo tempo, constituímos linhas de pesquisa que permitissem o aprofundamento do trabalho de formação de especialistas, de produção do conhecimento e de divulgação científica. Foi algo extremamente original e fecundo na história da atividade de divulgação científica, porque criamos um projeto, que incluiu um programa de pós-graduação, linhas de pesquisa, publicações, formação de pessoal, tudo isso com intuito de dar institucionalidade à atividade de divulgação científica como formação, chamando para o curso não só jornalistas, mas especialistas de todas as áreas, como é o caso de vários colegas de curso.
Além disso, é interessante pensar que todo esse cenário que eu estava desenhando, sobre as decisões acerca da ciência e a participação da sociedade nesse processo, isso tudo veio acontecendo junto e, no Brasil, também foi se sentindo a necessidade de iniciativas que apoiassem, que incentivassem, que mobilizassem os acadêmicos, os profissionais, etc no sentido do interesse pelo tema da divulgação. Ao mesmo tempo em que nós estávamos criando o curso, essa coisa toda, a Fapesp estava criando o programa MídiaCiência, com características interessantes porque é um programa para concessão de bolsas de até um ano para que o estudante possa se dedicar à sua formação em divulgação científica. Isso tudo tem a ver com esse cenário que eu estava desenhando, com essa preocupação de se criar condições institucionais, para motivar o médico, o biólogo, o físico, o economista, o engenheiro, os jornalistas etc, a focar a questão da divulgação científica. O MídiaCiência é um programa ao qual nosso curso recorre bastante intensamente e que tem nos apoiado de maneira muito forte e importante.
 
De que forma essa trajetória conecta-se com sua proposta de “espiral da cultura científica”?
A atividade científica também é uma atividade cultural específica, tem especificidades, tem características dos pontos de vista linguístico, sociológico, epistemológico, filosófico. É uma atividade cultural que tem características muito específicas no que diz respeito aos aspectos da produção do conhecimento científico e que tem características que vão se agregando a esta do ponto de vista não só da produção do conhecimento, mas da circulação social do conhecimento científico, pelo ensino, pelas atividades de motivação em torno da ciência e das atividades de divulgação. Então, com isso, eu tentei representar na “espiral da cultura científica” que é a ideia desse movimento.
É claro que isso é uma visão que supõe que o conhecimento, que a história caminha por superação de etapas. Não tem aí ainda os abalos que depois se instalariam e que um pouco estão instalados nessa história de pós-modernidade. O conceito de cultura científica que eu tentei explicitar com a “espiral da cultura científica” possui essa dinâmica, e é algo que está muito presente nas publicações que fazemos. A ComCiência é muito isso. Ela não é uma publicação científica clássica, ela não é uma publicação jornalística no sentido específico. Ela é uma publicação de cultura científica. E a revista Ciência e Cultura é a mesma coisa, porque ela é uma revista que está entre a expressão do especialista e a visão generalista dos temas que são tratados.
É algo que hoje está muito presente nos grandes projetos institucionais que caracterizam as atividades científicas do mundo, não só do país como fora daqui. Os Cepids (Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão) da Fapesp são muito isso. Então, são projetos que supõem produzir conhecimento, pesquisar, portanto, mas também circular esse conhecimento, tanto pelo ensino, pela difusão, como pela divulgação do conhecimento. Assim como, no caso do CInAPCe, que é um programa que tem características fortes de pesquisa, altamente compartimentada, mas multidisciplinar e, ao mesmo tempo, uma atividade que se relaciona fortemente com a interação social desse conhecimento e as relações que se produzem.
O conceito de cultura científica é mais interessante porque é mais amplo, mais envolvente. Permite trabalhar nesses segmentos onde o conhecimento compartilha essa dubiedade que é característica da dinâmica própria do conhecimento que é estar entre a ciência e a arte, e assim por diante. Além do curso de especialização (lato sensu), o mestrado (stricto sensu), que se tornou uma realidade no Labjor agora, é também a expressão institucional desse movimento. Implementar um mestrado em divulgação científica e divulgação cultural é um esforço de tentar trabalhar nessa linha.
 
O Labjor faz algum tipo de pesquisa, de medição, para avaliar o modo como a ciência e a tecnologia chegam ao público?
Tudo isso deve ser integrado. A ação institucional tem que ser sempre uma ação organizada e organizadora, tem que ser orgânica nesse sentido. As instituições, em geral, são orgânicas, senão, não funciona. Então, por um lado temos a ideia do curso, das revistas, que vão trabalhando com essa questão da divulgação e dessa relação entre ciência e sociedade. Ao mesmo tempo, há a preocupação em colocar o laboratório em linhas de pesquisa que tem a ver com a percepção pública da ciência, isto é, através dos surveys, realizar pesquisa quantitativa e análise qualitativa do modo como a ciência e a tecnologia chegam ao público. Nesse trajeto temos o SAPO (Scientific Automatic Press Observer). É uma mudança em relação às análises centimétricas, como era feita tradicionalmente a avaliação quantitativa da ocorrência dos temas de ciência e tecnologia na mídia, ou o destaque e a importância dados nos jornais para ciência. O que imaginamos para essa mudança foi um dispositivo, um motor de buscas, como é o Google, por exemplo, que faz varreduras e consegue oferecer resultados que podemos quantificar e assim gerar condições para fazer análise qualitativa da frequentação dos temas de ciência e tecnologia nos jornais e consequentemente do modo, do quanto e do como esses temas são frequentados pelo leitor.
O curso, as revistas, a percepção pública, o SAPO, tudo isso vai formando partes de um corpo comum, que é trabalhar exatamente essa relação entre ciência e sociedade sobre diferentes entradas e diferentes ângulos. Acredito que isso caracteriza o esforço institucional que realizamos numa universidade como a Unicamp, que tem peso, que tem importância, que forma pesquisadores.