Entre lutos: a questão da morte na vida do adolescente

Por Maria Cristina Mariante Guarnieri

O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung afirma que a problemática cultural que enfrentamos hoje pode ser encontrada expressa nos conflitos do próprio indivíduo. Se a crise contemporânea nos revela uma crise psicológica, o momento onde essa crise mais se evidencia é no período da adolescência. Essa fase de transição da infância para vida adulta apresenta características que são muito dependentes do ambiente sócio cultural. E essa tendência grupal também é uma necessidade, pois o adolescente precisa do grupo como apoio para que possa negar a referência familiar e se encontrar, como sujeito, nesse embate.

Um período longo, confuso em relação a faixa etária, cada vez mais complexo de determinar, mas que pode ser calculado entre o aparecimento da puberdade, com sua mudanças biológicas significativas, até o início da vida adulta, que implica em um nível maior de responsabilidade, autonomia e o suposto estabelecimento de uma identidade sexual, e com isso, a possibilidade de estabelecer relações afetivas estáveis, além da capacidade de assumir compromissos profissionais e sustentar-se com os próprios recursos. Não se pode definir com exatidão o início e fim da adolescência, porém na maioria dos indivíduos, ela ocorre entre os 10 e 20 anos de idade (período definido pela OMS – Organização Mundial da Saúde).

Podemos dizer que se a puberdade é um fenômeno biológico, a adolescência pode ser considerada basicamente um fenômeno psicológico, onde o foco é o estabelecimento da identidade. Na adolescência vive-se um rito de iniciação, pois o mundo infantil é deixado para trás e um novo mundo começa a ser experimentado. Perde-se o corpo da infância e surge um corpo mais desenvolvido, mais forte, mais potente sexualmente, com inteligência para a argumentação e criação de novas idéias. A adolescência é uma fase de escolhas, que envolve perdas e ganhos. Mortes simbólicas são vivenciadas e, muitas vezes, podem até ser literalizadas em riscos de mortes concretas. Considerado como anos terríveis, na realidade segundo as novas pesquisas da neurociência, a adolescência é um período desejável e imprescindível, de aprendizado intenso, e por isso, segundo a neurocientista Suzana Herculano-Hopuzel, devemos entender que as mudanças de comportamento nascem de mudanças necessárias no cérebro. Esse período é um período de reorganização cerebral.

Entre lutos, a vida adolescente encontra-se diante da morte. As perdas experimentadas indicam a necessidade de busca de autonomia, de emancipação social, do rompimento da dependência em relação aos pais e a busca de um novo vínculo com o mundo. É esperado desse jovem adulto que possua um sistema de valores pessoais, uma moral própria e uma relação de certa reciprocidade com a geração precedente. Com toda essa expectativa de amadurecimento, torna-se muito complexo afirmar o fim do processo de adolescer, principalmente em uma sociedade que possui justificativas econômicas para a manutenção de uma dependência por parte dos jovens. Mas voltando à neurociência, uma nova descoberta aponta que esse cérebro só estará totalmente amadurecido aos 30 anos.

Ao nascermos, recebemos e apreendemos o mundo tal como é, apresentado a nós por uma realidade cotidiana que está estruturada espacial, temporal e socialmente. A temporalidade é um fator de grande importância que influencia e atua na nossa consciência. A estrutura temporal da vida cotidiana é contínua e finita, determina a historicidade que nos coloca dentro da vida, nos auxilia a nos localizar no tempo, impondo sequência em nossa rotina e nos coloca dentro da realidade. Esta temporalidade ordena a nossa consciência e nos apresenta a realidade da finitude, que nos conta que temos um tempo determinado, que resulta em uma atitude de ansiedade frente à realização dos nossos projetos.

Na adolescência o tempo é vivido de uma forma específica: o tempo presente é todo o tempo, pois o passado recente – a infância – e o futuro, são experimentados como um tempo distante ou mesmo ameaçador; na transição é difícil saber quais seriam as possíveis perspectivas de futuro. A irreversibilidade, a não funcionalidade e a universalidade da morte começa a ser compreendida pelo adolescente, pois, nesse momento, o desenvolvimento lógico e abstrato está no auge e, com isso,  sua capacidade cognitiva é semelhante à do adulto, o que torna possível a compreensão da perda.

O adolescente está vivendo a vida rompendo limites e buscando a própria identidade. Reconhece a morte, sabe que é definitiva, porém acredita que ela acontece por uma incompetência, que ele mesmo pode estar protegido de tal mal, como se fosse imortal, bastando, para isso, ser capaz de evitá-la. A morte só acontece no outro, pois a construção da identidade pede uma diminuição do medo da morte para um aumento do desejo de vida.

No olhar do adolescente a morte é natural, mas distante, ele a coloca lá na frente,  justamente para facilitar o trato com algo que pode impedir o que hoje está sendo vivido como emergência: o presente. Claro que esta naturalidade pode até se transformar em banalidade, dependendo muito do ambiente adulto que lhe rodeia ou mesmo de como a cultura trata a morte. E nesse sentido, nossa sociedade parece muito adolescente ao lidar com a morte, pois sabem que nossa condição finita é um fato inexorável, porém tudo fazemos para manter ela bem distante. Todo nosso conhecimento e controle visa evitar a morte, levando até mesmo à complicados processos de negações no intuito de evitar entrar em contato com nossa vulnerabilidade.

Na adolescência essa vulnerabilidade já está sendo experimentado no próprio processo de transição. Há uma necessidade psíquica da morte metafórica, o que faz do luto vivido na adolescência algo bem específico, pois em meio a todas as perdas que essa fase de transição apresenta, a perda de alguém próximo pode trazer sensações ambivalentes, características da própria separação progressiva dos pais e do mundo da infância. Os adolescentes estão trabalhando entre situações de dependência e independência e, ao se depararem com a morte de um familiar, principalmente se for um dos pais, suas reações podem surpreender nossas expectativas. Aliás, reações a morte não deveriam ser julgadas, cada um reage de um modo e cada reação tem sua própria história. Diante disso, o adolescente inconscientemente se encontrará entre a busca de sua autonomia e a dor da perda, que o levará, não só para experimentar a materialidade da perda, mas também revelará a dependência afetiva do falecido. Diante da perda, essa tensão entre independência e autonomia, o leva a ser visto como alguém que, ou não está ligando para morte – o que significa que não está sofrendo- ou que é frio , ao mesmo tempo que faz com que o próprio adolescente possa encontrar um modo de assumir responsabilidades que eram do falecido, como uma forma de assegurar sua busca de autonomia, o que resulta em uma maior negação do processo de enlutamento e em maiores dificuldades emocionais.

Sabemos que vários são os sentimentos experimentados pelo adolescente em relação à uma perda. Tal como adulto ele enfrentará mudanças de comportamento, se sentirá desamparado, o choro poderá ser constante ou até mesmo não conseguirá chorar, podendo haver um aumento da solidão e da tristeza. Tal como no adulto, a rede de apoio será fundamental nesse processo. Mas se a natural oscilação presente a partir da perda, que transita entre a dor e a necessidade de se entender agora sem o outro, característico do processo de luto em qualquer adulto, encontra na adolescência terreno fértil para complicações, tais como depressão, ansiedade, abuso de substâncias, entre outros.

Todo luto pede uma boa rede apoio e isso o adolescente encontra, principalmente, no grupo de amigos, algo muito importante nessa fase de adolescência e terá um grande papel, pois eles conseguem escutar a partir da ambivalência de sentimentos, reconhecendo a tensão entre  a vida e a morte na própria experiência. Eles conseguem saber que o outro adolescente está “mal” mesmo que esteja se divertindo com um filme ou em uma festa. No lugar em que o adulto, seja família ou professor, vê falta de atenção, atitude de indiferença, o amigo apenas sabe e reconhece que ele está “mal”, e que ainda não sabe como irá atravessar e compreender o novo que se apresenta a partir da morte daquele que amamos. Claro, isso não significa que não devemos ficar atentos às mudanças de comportamento, principalmente, comportamentos agressivos. dificuldade de aprendizagem, distúrbios psicossomáticos, falta de concentração, entre outros.

Suportar a dor e o sofrimento é necessário para o desenvolvimento. Sabemos que perdemos apenas aquilo que tivemos de algum modo; o luto é o preço do amor. Para atravessar esse momento, é muito importante o papel dos pais, da escola e, principalmente, dos amigos que fornecerão o apoio para que essa dor possa ser compartilhada, permitindo que esse adolescente enlutado se sinta acompanhado no enfrentamento de sua dor e, dessa forma, tendo seu sentimento de desamparo diminuído. Qualquer pessoa deveria ser acompanhada no enfrentamento do luto, mais ainda o adolescente e o jovem adulto. Isso não significa tornar o outro impotente em relação a suas próprias decisões, pois até mesmo o isolamento é um momento necessário no enfrentamento da perda, por isso precisamos apreender a escutar o que o outro está precisando, muitas vezes oferecendo apenas a nossa impotência ou mesmo nosso silêncio para que o outro possa se expressar em sua necessidade.

A morte causa uma ruptura na atitude natural, pois a vida cotidiana tende a negar a realidade da finitude. Mas é nesse momento que os adolescentes podem apreender que não temos controle sobre tudo, que a vida pode ser frágil, que passa rápido e que devemos aproveitá-la da melhor maneira possível. E, pelo mesmo motivo, esse momento não só pode ser desestruturante para o adolescente, dado, como já falamos, todo o processo de transição que ele está vivendo no momento,  mas também o surgimento de dificuldades anteriores que podem ser reavivadas nesse momento, assim como as dificuldades sociais que enfrentamos, como no contexto atual, da pandemia.

Com a pandemia vivemos coletivamente um trauma e é na adolescência que estamos observando os mais diversos danos psicológicos. Com as dificuldades do isolamento social, a adolescência viveu a distância dos amigos. Encarou a presença da morte ao mesmo tempo que a vida lhe foi arrancada, viu sua escola ser fechada, suas festas e encontros com os amigos serem cancelados, brigas foram ampliadas no intuito de transgredir as normas que ele mesmo compreendia serem necessárias e, entre a fuga pelo isolamento e os meios virtuais, foi criando seu modo de buscar sua autonomia em um tempo de incertezas. Toda situação de crise pede uma referência de cuidado por parte da sociedade e das redes de apoio e, na pandemia, tivemos muitas dificuldades com as orientações por parte dos órgãos competentes, questões políticas atravessaram questões humanitárias e, como resultado, vivenciamos mais desamparo. Apesar de parecer parodoxal, a relação, adolescente família e sociedade, é tão intima que pode servir de diagnóstico para as questões familiares, tanto quanto como aparelho crítico da sociedade que estamos vivendo e, na qual, estamos formando nossos jovens.

O luto na adolescência pede algo que todo luto requer: presença e acolhimento. É na adolescência que tem início as reflexões e insights sobre a existência humana. Nunca é demais lembrar que nossos medos podem ser mais assustadores se não forem compartilhados. Não sabemos nada sobre o pós-morte. Portanto, não podemos responder muito às indagações de nossos jovens, mas podemos compartilhar nossas crenças, nossas reflexões, nossa esperança. E, a partir disso , e por isso, precisamos conversar sobre a morte, trocar nossos medos e receios, mas principalmente sustentar as dores que acompanham o processo de nos despedir de quem amamos e também do que éramos antes de perdê-lo.

Maria Cristina Mariante Guarnieri é doutora em Ciências da Religião pela PUC-SP; psicóloga clínica; docente no IJEP – Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa; pesquisadora do Grupo do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia, LABÔ-PUC-SP; e-mail: crisguarnieri@uol.com.br