Espiral, cultura e cultura científica

Por Carlos Vogt e Ana Paula Morales

A espiral da cultura científica (Vogt, 2012) é uma metáfora para a representação da dinâmica e da relação entre os fatos, ações e eventos compreendidos pela cultura científica (Figura1). Dois eixos perpendiculares, um na vertical e outro na horizontal, definem e opõem quatro quadrantes, pelos quais percorre continuamente a linha espiralada. Percebe-se que a ideia de criação dessa imagem se baseia na necessidade de comunicação, para que a ciência tenha uma concretude do ponto de vista da sua realidade, da sua materialidade social.

A dinâmica da espiral da cultura científica parte do primeiro quadrante, que contém as ações voltadas para a produção e a disseminação da ciência, a saber, espaços nos quais cientistas são, do ponto de vista da comunicação, locutores e destinatários da ciência, por meio de artigos e eventos científicos, tais como congressos, simpósios e reuniões de associações. Este é o momento da produção e da chamada difusão da ciência.

Figura1 – A espiral da cultura científica, reprodução e adaptação de Vogt (2012).

O segundo quadrante, do ensino de ciência e treinamento de cientistas, é configurado pela entrega de informações de cientistas e professores aos estudantes de diferentes níveis, desde a educação básica até a pós-graduação. Atividades voltadas para o ensino para a ciência ocupam o terceiro quadrante, no qual cientistas-divulgadores, professores e centros/eventos como museus e feiras de ciências, por exemplo, levam a C&T aos estudantes e público majoritariamente jovem. Por fim, o quarto quadrante representa a divulgação científica mais ampla praticada por jornalistas e pesquisadores, que tem a sociedade em geral como interlocutora.

Em todos os processos que fazem da parte da dinâmica da cultura científica e que podem ser representados nos quadrantes acima mencionados, a comunicação tem um papel fundamental, seja para a disseminação e a consolidação de novos conhecimentos, para a difusão e a divulgação de conteúdos e saberes científicos e tecnológicos, bem como para a educação. Nesse sentido, o primeiro e o segundo quadrantes – respectivamente, da produção e disseminação da ciência e do ensino de ciência e treinamento de cientistas –, localizados abaixo do eixo horizontal que os define, configuram os espaços de produção e reprodução da ciência. A natureza da audiência em ambos os casos é caracterizada como esotérica, ou seja, reservada a grupos restritos. Em oposição, os quadrantes três e quatro (do ensino para a ciência e da divulgação científica), localizados acima do eixo horizontal, são os da apropriação da ciência; e a audiência, nesses casos, é caracterizada como exotérica, ou seja, ampla, aberta e irrestrita.

O eixo vertical, que por sua vez delimita, à direita, os quadrantes um e quatro, e à esquerda, os quadrantes dois e três, opõe os dois grupos também por aspectos qualitativos dos discursos inerentes aos processos contidos em cada um deles. No primeiro grupo, à direita do eixo, o discurso é polissêmico e polifônico, em que várias vozes se pronunciam de forma concomitante (sejam cientistas falando para cientistas, no quadrante um; sejam jornalistas e pesquisadores falando para o público em geral, no quadrante quatro). E, do outro lado, o discurso monossêmico e monofônico, com característica educacional, próprio do ensino de ciência e treinamento de cientistas e do ensino para a ciência.

A ciência é definida, de uma forma simples, como a busca de relações causais e o estabelecimento de leis gerais da natureza. De alguma forma, portanto, o tema da oposição entre cultura e ciência está ligado à oposição mais ampla entre cultura e natureza. O objetivo da ciência é descobrir, enunciar essas leis da natureza, e, para isso, a ciência faz de conta que essas leis, assim definidas, foram enunciadas pela própria natureza. O linguajar da ciência é, portanto, a linguagem da natureza. É uma língua complexa e altamente codificada, uma vez que também é complexa a natureza e também codificada para a nossa compreensão. Mas, ela, a natureza, enuncia leis simples que dizem como deve ser a simplicidade natural da natureza, as coisas estão em completa harmonia e agem em equilíbrio. Não é por acaso que o equilíbrio e a harmonia sejam obsessões, metas, objetivos da ciência para criar a suas próprias leis.

Isso faz com que, de certa maneira, a linguagem da ciência seja caracterizada por uma espécie de anulação do sujeito real e histórico da enunciação, que é o próprio cientista. E ele, o cientista, aceita esta investidura e procede como se fosse de fato um agente enunciador, agora não mais de mitos, mas sim de verdades científicas que falam da natureza sob a forma de suas leis e de seu funcionamento. Portanto, a relação de proximidade e identificação entre a ciência e a natureza se faz com esse objetivo, de enunciar verdades como se elas foram ditas por elas mesmas, sem agentes históricos que as enunciara. É isso que torna o enunciado científico, um enunciado que dá a sensação que se ele se enuncia a si próprio, diz a verdade a ser vista. Porém é preciso desvendar por metodologias, por teorias, pelos instrumentos que a ciência propicia, buscando e enunciando, a cada passo das descobertas, os vínculos de causalidade que regem a natureza e expressam a sua organicidade.

Por outro lado, há todo um conjunto de impressões, de percepções e vivências históricas que convivem, sob o ponto de vista da sociedade e da cultura, que caracteriza como esta sociedade percebe a verdade que é enunciada cientificamente. A cultura científica é feita e se faz desta amálgama, desta fusão, desta mistura entre as impressões subjetivas da sociedade em relação a essas verdades enunciadas pela ciência, de modo que se tenha, ao mesmo tempo, de um lado a pressão da natureza nas leis que são reveladas e enunciadas, e a percepção das leis, ou seja, as suas representações no cotidiano da sociedade. Isso é o que gera essa dimensão cultural, num movimento que passa da escrita científica, o que representa a abstração máxima, para uma oralidade que é a experiência e a vivência da sociedade relacionada a tudo isso.

A cultura científica é, pois, essa mistura de representações que correspondem à verdade revelada, com representações que são crenças sobre estas verdades e os processos de sua revelação. Isto é, em outras palavras, as práticas da escrita em uso nas comunidades científicas estariam na origem do impasse cultural em que se encontra a ciência, do seu afastamento da sociedade ou de sua “desculturalização”.

Quando se olha para o movimento da espiral pelos quadrantes, é possível notar que se tem como ponto de partida uma linguagem altamente criptografada, uma linguagem que é literal, no sentido técnico do termo, uma linguagem altamente codificada, e que a procura para a comunicação da ciência com grande público implica na busca pela transformação de uma linguagem digital em uma linguagem analógica, feita de metáforas, e feita, portanto, de imagens que podem transformar a abstração que está representada e dita em códigos muito abstratos, em conceitos sensíveis, capazes de serem apreendidos pela transferência de características e propriedades que caracterizam a metáfora. Assim, tem-se um percurso que está indo de uma linguagem objetiva para uma linguagem mais subjetiva, ou mais metafórica, que procura estabelecer essa comunicação.

A conclusão é, de uma certa maneira, também provocativa:  para que a ciência possa existir na cultura é necessário colocar à ciência as exigências reflexivas da fala. A divulgação científica, neste sentido, teria nascido de uma percepção dessa necessidade.

Vogt, C. (2012), “The spiral of scientific culture and cultural well-being: Brazil and Ibero-America”. Public Understand. Sci., 21(1): 4-16.
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*Publicado, originalmente, como “Espiral da cultura científica”, em Vogt, C.; Morales, A.P. O discurso dos indicadores de C&T e de percepção de C&T. Organización de Estados Iberoamericanos para la Educación, la Ciencia y la Cultura e Los Libros de la Catarata, Madri, 2016, p. 25-31.