Francisca Mendes Dantas: “O resíduo têxtil não tinha nem que sair da indústria”

Por Paula Drummond de Castro

Segundo a especialista, a geração de resíduos, o processo de beneficiamento poluidor e a má remuneração de trabalhadores ainda são gargalos na cadeia têxtil e de vestimenta que precisam ser superados.

“É difícil eu comprar roupas novas. E também é difícil eu dar”, confidencia a professora do curso de têxtil e moda da USP, Francisca Dantas Mendes, de 76 anos. “Eu me reciclo”, assume. Reinventar, reciclar, reaproveitar, transformar são palavras que estão constantemente em seu vocabulário, ao lado de estrangeirismos como upcycling, downcycling, fast fashion, slow fashion, craddle-to-craddle, cyclibility, design sustentável, roupas zero waste, revelando que sua especialidade é encontrar caminhos para que os resíduos da indústria têxtil sejam eliminados.

Sua preocupação não é gratuita. Dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit) apontam que foram produzidas 1,9 milhão de toneladas de peças de vestuário em 2015 no estado de São Paulo. Cerca de 10% desse volume são resíduos sólidos têxteis (retalhos) gerados nas áreas de corte das confecções. Segundo o Sinditêxtil-SP, só na região do Brás e Bom Retiro, onde estão localizadas cerca de 1.200 confecções, são produzidas 12 toneladas desses resíduos por dia.

Como a coleta ainda é feita de forma desorganizada e o destino não é acompanhado pelas empresas nem por órgãos públicos, parte desse volume é recolhida por catadores irregulares, e outro volume significativo é descartado no lixo comum, terminando em aterros sanitários e causando grande impacto ambiental.

Segundo Mendes, a geração de resíduos e o beneficiamento são os principais gargalos poluentes da cadeia têxtil e de vestimenta. Muito deste impacto é consequência da fast fashion, padrão de produção e consumo no qual os produtos são fabricados, consumidos e descartados rapidamente.

Como saída, a professora frisa a responsabilidade das marcas na redução dos resíduos desde a produção e do planejamento da destinação dos resíduos – sejam eles pós-consumo ou não.

Mas nem só a parte ambiental é uma questão que a preocupa. A professora defende a remuneração justa de trabalhadores deste setor, que muitas vezes não respeitam salários mínimos, nem recolhem benefícios sociais trabalhistas. Segundo a pesquisa The Global Slavery Index 2018, da fundação Walk Free, a moda é a segunda categoria de exportação que mais explora o trabalho forçado.

Mendes é graduada em moda com mestrado e doutorado em engenharia de produção. Atualmente é vice coordenadora do curso de graduação têxtil e moda da USP. Também coordena o Núcleo de Apoio à Pesquisa NAP-Sustexmoda da USP, cujo foco é trabalhar inclusão social por meio de uso de resíduos da indústria têxtil.

Moda é sinônimo de consumo?

O ser humano tem necessidade de renovações. Reinventar-se, modificar-se, renovar-se sempre de alguma forma. E a roupa vem ao encontro disso. A vestimenta possibilita trazer novos personagens. Quando você veste uma calça larga e um chinelo, seu andar é mais descontraído. Quando põe um terno, um vestido de gala, salto alto, naturalmente sua coluna se estica e você levanta o pescoço, alterando a postura.

Assim, a moda sempre existiu. Desde a Idade Média, com vestimentas feitas pelas costureiras artesãs. Mas depois do prêt-à-porter[1], da indústria da moda e do marketing, ocorreu o casamento perfeito entre consumo e moda.

Quais as áreas da indústria têxtil e de vestimentas que mais apresentam desafios para a sustentabilidade?

Primeiro é a geração de resíduos no corte, por conta da evolução da fast fashion[2]. Hoje, em São Paulo, temos 12 toneladas de resíduos descartados na coleta de pequena e microempresa. As grandes empresas mandam para a indústria de desfibragem, que é quando desmancham a fibra, e aí pode virar estopa, forração de painel de automóvel, tapete, cobertor para morador de rua.

Outro impacto importante é no processo de beneficiamento (tinturarias, lavanderias, com seus componentes químicos), porque usam muita água de rio e dizem “a gente devolve a água tratada”, mas não era para devolver, certo? Se ela está boa para o rio, porque não estaria para reuso?

Em relação à fast fashion, temos outras questões. É um estímulo à produção, então daria renda para países subdesenvolvidos, pois é um trabalho simples, que não precisa necessariamente de tecnologia. Quem faz este trabalho não precisa ter alto nível de escolaridade. Mas, por outro lado, em muitos países produtores de fast fashion, não se paga nem o salário mínimo e ainda se barganham por menos. É preciso respeitar o tempo de produção, pagando todos os impostos e o salário mínimo.

Quais as soluções sustentáveis que já existem na cadeia têxtil?

O resíduo não tinha que sair da indústria, deveria ser tratado e voltar para ela. É o conceito do craddle-to-craddle ou do cyclability. Craddle-to-craddle é voltar para o berço, que, no caso, seria o processo de fiação. Mas é um problema devido à mistura de fibras, como o algodão com o poliéster, e não dá para fazer um novo fio. Quando se trata de uma indústria específica, como uma malharia de algodão puro, é possível, mas hoje todos misturam algodão com poliéster. Além dos beneficiamentos das fibras, em geral, como aqueles que dão toque emborrachado, empapelado, deixam fácil de passar. Tudo é feito adicionando produtos às fibras, que a mudam, e complicam o craddle-to-craddle.

O que são os conceitos de downcycling e upcycling?

Isso acontece, por exemplo, ao usar fibras de alto valor agregado, às vezes com seda misturada, produto anti-chamas, proteção UV, repelente a insetos, e virarem forração, cobertor. A esse processo chamamos de downcycling.

O que se pode fazer para evitar esse desperdício é pensar no pós-consumo do produto. Não pode ser desfribrado, ou seja, ir para a construção civil? Indústria automobilística? Ou pensar em engenharia reversa, quando o produto volta para a própria indústria para ter um novo destino, reaproveitado ou transformado em uma nova matéria-prima, para outro uso.

Por exemplo, a Mormaii, no sul do país, desenvolveu um chinelo cuja sola é feita de resíduos de neoprene, que é a principal matéria-prima deles. Buscou-se uma solução para o resíduo da empresa. O chinelo, depois de uso, deveria voltar para eles fazerem outra coisa. Encaminhar para indústria de pneu? Neste caso, estamos falando do cyclability.

Já o upcycling é pegar esses produtos e criar outro, de maior valor agregado. Há o prolongamento da vida útil da matéria-prima ou do produto, muitas vezes, pelos processos de customização. Bolsas feitas com lona de caminhão, uniformes que são transformados ou renovados em objetos, acessórios, necessaires, malas, mochilas.

Assim, é importante saber que não é usar fibra de garrafa PET numa camiseta que a torna sustentável, porque também está gerando um monte de resíduos. A fibra da camiseta, que era puro algodão, passou a ficar misturada com PET, e não é possível fazer craddle-to-craddle. O povo paga achando que está investindo em moda sustentável – e não está.

A preocupação socioambiental na indústria têxtil pode ser acenada como uma tendência?

Sim, esta geração que está chegando é mais consciente. E as marcas que forem construindo um conceito e realmente atuarem de maneira sustentável, respeitando a cultura local, em uma economia circular, pautada na bioeconomia, em uma economia humanizada, com consciência do meio ambiente e com o pós-consumo, vão crescer.

Um exemplo é a confecção Dudalina, que fez o resíduo do corte gerar as bolsas, foi uma grande iniciativa, mostrou para o mundo que havia a possiblidade de reutilizar as sobras de corte. A Iódice, que veio com a pele de peixe e os tratamentos. Existem várias iniciativas que estão sendo aproveitas que estão acontecendo.

E a fast fashion vai acabar?

Não, ainda existe a necessidade comprar uma roupa nova. Mas não precisa destruir o planeta. Isto pode ser feito de maneira consciente. Não precisa produzir com produtos que causem muito impacto negativo. Se a gente só conseguir produzir com fibra de poliéster, poderia fazer um craddle-to-craddle e um design sustentável[3]. Outra coisa é o envolvimento com as comunidades locais. Há bastantes marcas internacionais que estão produzindo com comunidades locais.

O que há de política pública para incentivar a sustentabilidade no setor têxtil?

Não há. O que há é a lei dos resíduos sólidos, que diz que o produtor é responsável pelo resíduo que gera. O fabricante tem que dar o destino correto. Só que dentro da lei não tem citação do setor têxtil, fala de outras indústrias. Eu estou trabalhando nisso há quatro anos com a Abit – Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção. Temos que organizar a reciclagem no setor. Mas falar em lixo não dá ibope. É preferível ficar pesquisando a fibra biodegradável, manufatura 4.0…

Como a indústria 4.0 tem contribuído na sustentabilidade do setor?

Eu discuto manufatura 4.0 dentro do setor de confecção porque é muito heterogênea. Pode existir lá na ponta da pirâmide da cadeia têxtil. A pirâmide é muito rica na ponta, com alta tecnologia, em alto investimento em capital, em pesquisa. E a base dela é o operário semianalfabeto, informal. Talvez com a MEI mude um pouco, porque era tudo feito na informalidade.

Qual o principal gargalo para o reaproveitamento de resíduos da indústria têxtil e de vestuário?

O problema é que é tanto tecido de resíduo e não tem demanda. A demanda precisa vir do mercado. As marcas precisam acolher esses produtos e colocar no mercado. Mas muitas vezes, vai competir com o próprio produto da marca. E não necessariamente precisa ser de um valor menor. Muitas vezes é um produto customizado, exclusivo.

Está mais nas mãos dos pequenos e novos empreendedores, que veem como nicho de mercado. São empresas com certo nível de preocupação com a sociedade ou que estão trabalhando com coleções que não foram vendidas ou com brechós.

Quais as decisões que podemos tomar para adotar iniciativas mais sustentáveis em relação ao nosso guarda-roupa?

O cuidado no consumo. Reciclar sua própria roupa, encurtar a barra, ajustar, tingir. Eu tenho uma aluna de mestrado que não compra roupa nova há cinco anos. Ela vive de roupas doadas na família, brechó, armários coletivos. Outra diminuiu o tamanho do armário e colocou a regra de que, quando entra uma peça, sai outra.

Faça também um descarte adequado de roupa usada. Antes eu dizia para doar para igrejas e asilos. Mas eles recebem tanta roupa e acabam vendendo muito barato – roupas que acabam sendo descartadas. Hoje indico doar para ONGs específicas. Também não compre se souber que vem de países que exploram mão de obra, prefira produto brasileiro. Adoro quando tem alta do dólar, porque deixam de importar e demandam das confecções brasileiras.

Valorize o trabalho das pessoas. Se a peça é feita na casa de uma costureira as pessoas acham que têm o direito de pagar menos do que pagariam no shopping. Precisamos rever isso.

[1] *O prêt-à-porter revolucionou a produção industrial no pós-guerra, pois passou a ser possível criar roupas em grandes escalas industriais, de melhor qualidade, oferecer uma grande praticidade, além da variedade não só de estilos, mas também de preço e lançar novas tendências. Sendo mais acessível ao público, possuindo a marca e a assinatura do estilista em peças, dando ar de sofisticação, mas sem o tom de exclusividade.

[2] Fast fashion (moda rápida) significa um padrão de produção e consumo no qual os produtos são fabricados, consumidos e descartados – literalmente – rápido. Este modelo de negócios depende da eficiência em fornecimento e produção em termos de custo e tempo de comercialização dos produtos ao mercado, que são a essência para orientar e atender a demanda de consumo por novos estilos a baixo custo

[3] Design com foco na redução dos resíduos sólidos.