Golpes e golpismos no Brasil contemporâneo

Por Luis Felipe Miguel

A vitória eleitoral de Jair Bolsonaro não era prevista em 2016, mas foi o golpe de 2016, desorganizando o jogo político existente e conferindo legitimidade a discursos autoritários e regressistas, que criou as condições para que ela ocorresse. O bolsonarismo é apenas a metástase de um projeto de retração democrática que o precede e o transcende.

O golpe, na história política do Brasil, golpe sem qualificação, golpe sem precisar de uma data que o singularize, é o golpe de 1964. Ele não foi, é bem verdade, um evento único. Muitas outras tentativas golpistas haviam sido levadas a cabo pela direita naquela quadra histórica – para impedir a posse de Getúlio Vargas, para derrubá-lo do governo, para impedir a posse de Juscelino Kubitschek. O próprio golpe de 1964 pode ser compreendido como o segundo tempo, a conclusão do golpe desferido em 1961, quando o parlamentarismo foi imposto para evitar uma presidência plena de João Goulart. E esse golpe, o de 1964, é um golpe de tipo clássico, protagonizado pelas Forças Armadas. Quando pensamos em golpe, o que vem à cabeça é exatamente isso: tanques na rua, desfile de tropa, um fardado ocupando o poder. Foi assim no Brasil e em tantos outros países da América Latina. Governos caíam derrubados por golpes que eram executados por militares, patrocinados pelos Estados Unidos e apoiados pela elite local.

Em suma: nossas classes dominantes nunca se caracterizaram por um grande apego às regras do jogo democrático. As eleições sempre foram vistas como um incômodo. Por mais que a força do dinheiro e o controle da informação permitissem influenciar os resultados, sempre havia risco de que o processo fugisse ao controle – e as concessões aos trabalhadores e aos mais pobres se tornassem mais custosas do que o esperado. A democracia, afinal, é uma conquista das classes populares. Ela foi obtida por meio da pressão contra os grupos poderosos que se viram, de alguma maneira, constrangidos a aceitar a voz das maiorias, mesmo que limitada, nos processos de tomada de decisão. Por isso, a possibilidade de uma virada de mesa, isto é, de um golpe nunca está fora do horizonte.

Dos anos 1960 e 1970 para cá, a geopolítica mudou. A Guerra Fria foi superada, com a vitória do Ocidente. A hegemonia ideológica da democracia liberal se tornou ainda mais forte, fazendo com que fosse imperativa a manutenção de uma fachada de respeito a ela. Os golpes à moda antiga, liderados ostensivamente pelos militares, se tornaram uma coisa muito feia. Mas isso não quer dizer que o respeito às regras democráticas tenha de fato sido assumido por todos. Passamos a diferentes formas de limitação da democracia, sob a aparência de mantê-la em funcionamento.

A virada neoliberal retirou da decisão política democrática muito de sua efetividade, na medida em que determinou que questões centrais da vida social teriam que ser resolvidas por mecanismos de mercado e ampliou o poder desregulado das grandes corporações. Políticas de austeridade, que basicamente significam recolher tributos dos pobres para remunerar os ricos, foram impostas sem que a cidadania pudesse opinar sobre elas. Órgãos fundamentais do Estado, como os bancos centrais, foram crescentemente colocados sob um estatuto de “autonomia”, de maneira a blindá-los contra qualquer influência da vontade popular.

É o processo que a literatura da ciência política chama de “desdemocratização”: não se abole formalmente a democracia liberal, mas ela vai se tornando cada vez mais irrelevante para o exercício real do poder nas sociedades. O exemplo mais evidente é o do plebiscito grego de 2015, quando o eleitorado votou contra as medidas impostas pelo Banco Central Europeu, mas elas foram adotadas mesmo assim. O recado era claro: a vontade expressa pelo povo não tem a menor importância, a decisão é tomada em outras esferas. A desdemocratização pode se manifestar também nos golpes de novo tipo, dos quais um exemplo foi a derrubada da presidente Dilma Rousseff, no Brasil, em 2016. Um dispositivo previsto em lei, no caso o impeachment presidencial, é usado de maneira desvirtuada, a fim de garantir uma fachada de legalidade a algo que é, na sua essência, uma imposição de força.

Dilma foi retirada do cargo com base em pretextos frágeis, que não configuravam, de forma nenhuma, crime de responsabilidade. Até Michel Temer, em sucessivos atos falhos, já chamou o episódio de “golpe”. Um golpe ocorre quando partes do aparelho de Estado decidem mudar unilateralmente as regras do jogo, em seu próprio benefício. Foi o que aconteceu em 2016. Como costuma ocorrer nos “golpes de novo tipo”, as Forças Armadas tiveram papel discreto – embora fossem ganhando maior protagonismo em seus desdobramentos. Assim, na hora de garantir que o serviço do golpe não seria desfeito, os generais não se furtaram a pressionar abertamente o Supremo Tribunal Federal (e garantiram que a prisão ilegal do presidente Lula não fosse revogada).

E não se tratou de uma intervenção pontual, destinada a retirar uma governante indesejada por alguns, o que já caracterizaria o golpe. Foi o momento fundador de um amplo realinhamento político e de implantação de um projeto político que, submetido às regras vigentes, havia sido repetidas vezes derrotado nas urnas. A ruptura de 2016 levou à implantação de um projeto que não tinha respaldo popular. Portanto, mesmo que se afirme que o impeachment não foi golpe (e foi), fica claro que ao menos ele foi usado para se desferir um golpe. A vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, que assinalou o desfecho de todo esse processo, não era prevista em 2016, mas foi o golpe de 2016, desorganizando o jogo político existente e conferindo legitimidade a discursos autoritários e regressistas, que criou as condições para que ela ocorresse. O bolsonarismo é apenas a metástase de um projeto de retração democrática que o precede e o transcende.

Bolsonaro governou sem nenhum respeito à Constituição, à democracia ou ao povo. Negligenciou a saúde pública, aparelhou o Estado para proteger a si e a seus próximos, foi ativo no genocídio indígena e na destruição do meio ambiente, conspirou constantemente contra o Estado de Direito. Mas permaneceu no cargo até o fim. Muitos setores que se incomodavam com seus excessos hesitavam em responsabilizá-lo, já que aplaudiam o desmonte dos direitos da classe trabalhadora e das políticas sociais. O projeto do golpe de 2016 precisava continuar.

O golpe de 2016 e a impunidade do bolsonarismo no poder deram gás a uma cultura do “vale tudo” na extrema-direita brasileira: nenhum respeito às regras ou aos adversários. O golpismo de hoje nasce disso.

Apesar dos anos de redemocratização e governos populares no Brasil, os retrocessos foram rápidos e profundos, o que suscita a questão sobre as causas da fragilidade do arranjo definido pela Constituição de 1988. Entender essas razões é um desafio crucial para fortalecer a nova etapa da democracia brasileira. Trata-se de aprender as lições da história recente e, sobretudo, entender que nenhum progresso está garantido caso se fie apenas na vigência das regras ostensivas da ordem liberal: é preciso incidir na correlação de forças.

É preciso, também, universalizar a cobertura dos direitos e das liberdades, estendendo-a a todos os grupos. Embora tenha havido progresso, o acesso às garantias constitucionais ainda não é para todos no Brasil. Para muitos habitantes das periferias, negros, indígenas e os mais pobres, a intervenção do Estado se manifesta principalmente como repressão, não como suporte e assistência. Essas pessoas veem a democracia como um slogan vazio e, portanto, não se sentem motivadas a lutar por ela.

Lula, em seu discurso de posse, mostrou ciência disto: “A democracia será defendida pelo povo na medida em que garantir a todos e a todas os direitos inscritos na Constituição”. O futuro democrático do Brasil depende da resposta do governo a esse desafio múltiplo: conter a agressividade e punir a extrema-direita, recuperar a capacidade de planejamento e intervenção do Estado, restaurar o império da Constituição e expandir sua vigência também para os grupos sociais mais vulneráveis.

Luis Felipe Miguel é professor titular do Instituto de ciência política da Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), e pesquisador do CNPq. Publicou, entre outros, os livros Democracia na periferia capitalista: Impasses do Brasil (Autêntica, 2022), O colapso da democracia no Brasil: da Constituição ao golpe de 2016 (Expressão Popular, 2019), Dominação e resistência – Desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018), Consenso e conflito na democracia contemporânea (Ed. Unesp, 2017), Notícias em disputa – Mídia, democracia e formação de preferências no Brasil (com Flavia Biroli, Contexto, 2017), O nascimento da política moderna: de Maquiavel a Hobbes (Ed. UnB, 2015), Democracia e representação: territórios em disputa (Ed. Unesp, 2014), Feminismo e política: uma introdução (com Flávia Biroli; Boitempo, 2014) e Mito e discurso político (Ed. Unicamp, 2000).