A grande riqueza e a grande pobreza são igualmente patológicas para a sociedade

Por Ladislau Dowbor

O combate à desigualdade é uma necessidade ética. Não é concebível que no século XXI tenhamos manifestações trágicas de miséria. O básico, numa sociedade civilizada, não pode faltar a ninguém – e muito menos às crianças que não têm nenhuma responsabilidade pelo caos em que são jogadas. Não é uma questão de esquerda e direita, e sim de elementar decência humana. Estamos destruindo o planeta em proveito de uma minoria inoperante enquanto os recursos necessários para assegurar tanto as políticas ambientais como as de redução das desigualdades são desviados para atividades de especulação financeira. Acabar com a pobreza, assegurar crescimento e empregos, e promover a industrialização sustentável pertencem a uma lógica comum e integrada: democratizar o acesso aos recursos. Temos sim de evoluir para um novo pacto global se quisermos que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável realmente se materializem.

Objetivo 1 – Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares

Nossos problemas não resultam da falta de recursos e sim da sua má alocação. O mundo produz anualmente 80 trilhões de dólares de bens e serviços. Divididos por 7,6 bilhões de pessoas, isso representa 3.500 dólares por mês por família de quatro pessoas. É bem suficiente. Com um PIB de 6,5 trilhões de reais e uma população de 208 milhões, o Brasil está precisamente na média mundial. Uma distribuição mais justa asseguraria 11 mil reais por mês por família de 4 pessoas. Daria para todos viverem de maneira digna e confortável. Reduzir a desigualdade é o principal caminho para uma sociedade mais decente e mais produtiva. Nosso problema não é econômico, é político.

A grande riqueza e a grande pobreza são igualmente patológicas para a sociedade. A pobreza porque é eticamente e economicamente prejudicial para toda a sociedade. E a riqueza porque os muito ricos não sabem parar, transformam poder econômico em poder político, corroem a democracia. Assegurar a renda mínima e taxar os excessos são duas facetas do equilíbrio necessário. Em paraísos fiscais temos entre 21 trilhões e 32 trilhões de dólares para um PIB mundial de 73 trilhões (dados de 2012). Resultam essencialmente de evasão fiscal, lavagem de dinheiro, corrupção e atividades ilegais como tráfico de armas e drogas. Os judiciários fazem o quê? Estão a serviço de quem?

O problema central da política é simples: os privilegiados adquirem progressivamente o poder de aumentar os seus privilégios. E o processo se agrava até atingir pontos de ruptura, com violência e tensões generalizadas. A desigualdade econômica e política – e a inoperância dos sistemas jurídicos – fazem parte de um mesmo processo de desequilíbrio social generalizado.

De Edu Oliveira [instagram @eduoliveiraxx]
O combate à desigualdade é uma necessidade ética. Não é concebível que no século XXI tenhamos manifestações trágicas de pobreza e miséria. O básico, numa sociedade civilizada, não pode faltar a ninguém, e muito menos às crianças que não têm nenhuma responsabilidade pelo caos em que são jogadas. Não é uma questão de esquerda e direita, e sim de elementar decência humana. A dimensão ética se apresenta tanto no sofrimento dos pobres, que não são responsáveis pela sua pobreza, como na prepotência dos ricos, que vivem de rentismo improdutivo e da corrupção política.

O combate à desigualdade é também uma necessidade política. Nenhuma sociedade se governa de maneira equilibrada e democrática quando sofre com as inevitáveis tensões e conflitos que a desigualdade gera. Em vez de construir muros entre nações, de multiplicar condomínios de luxo como guetos de riqueza nas cidades, temos de enfrentar a tarefa organizada e sistemática de inclusão dos pobres. Uma sociedade em conflito social permanente termina não funcionando para ninguém. Os países menos desiguais são mais pacíficos e equilibrados. Não se trata de distribuir armas e sim de equilibrar recursos.

Sai mais barato tirar as famílias da miséria e acabar com a pobreza do que arcar com as consequências em termos de doenças, insegurança e baixa produtividade, além do sofrimento gerado. É bom senso, não é caridade. Ampliar o bem-estar funciona para todo mundo.

O aumento de renda nas famílias pobres gera melhoria radical da qualidade de vida e muita felicidade. Um milhão a mais nas mãos do milionário gera apenas mais poder para buscar mais milhões. Em termos de utilidade social e dinamização econômica, o dinheiro é mais produtivo na base da sociedade.

Hoje 26 bilionários no planeta têm mais patrimônio acumulado do que 3,8 bilhões de pessoas, a metade mais pobre da população mundial. Não produziram essa riqueza, mas dela se apropriaram. Maior desigualdade da história. Milagre da intermediação financeira, tragédia para o sistema. Em vez de apenas criticar os ricos, temos de entender os mecanismos que geram a riqueza improdutiva. Taxar a riqueza, distribuir para a base da sociedade.

Dinheiro na mão dos pobres gera consumo, o que estimula produção, investimento e empregos. Dinheiro na mão dos muito ricos gera apenas especulação financeira, carros importados e contas no exterior. Rico útil é aquele que investe, gera emprego, bens e serviços, e paga os seus impostos. O resto é parasita.

Objetivo 8 – Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos

O combate à desigualdade é também uma necessidade econômica. A melhor forma de dinamizar uma economia é assegurar maior capacidade de consumo na base da população. A ampliação da demanda de massa, tanto de bens comprados com a renda auferida como de bens coletivos acessados graças às políticas sociais públicas, gratuitas e universais, dinamiza as atividades econômicas do país, gera empregos, amplia a inclusão produtiva e assegura o desenvolvimento. Todos os exemplos de sucesso econômico, desde o New Deal americano na época da grande crise de 1929 até a reconstrução da Europa no pós-guerra com o estado de bem-estar, estão baseados nesta fórmula simples: organizar a economia em função do bem-estar generalizado das famílias. É o que fez o Banco Mundial chamar a década de 2003 a 2013 de The golden decade of Brazil.

O evidente avanço dos países nórdicos ou do Canadá baseou-se no amplo consumo popular que dinamiza atividades econômicas, o que por sua vez amplia as receitas públicas por meio dos impostos, equilibrando a conta no nível do orçamento. Foi também o caso da Coreia do Sul, do Japão e da própria China. Enfrentar a desigualdade constitui a melhor forma de dinamizar a economia. O emprego se expande, o que realimenta o processo. Recursos na base da população se transfomam em demanda e dinamização econômica, recursos no topo geram mais aplicações financeiras, especulação e estagnação. Combater a desigualdade e promover o crescimento econômico sustentado fazem parte da mesma dinâmica. Não é questão de ideologia, e sim de conhecimento e bom senso sobre o que funciona no plano econômico e social.

O bem-estar das famílias também assegura melhor equilíbrio ambiental. A renda de bolso que permite comprar produtos é apenas uma parte da redução da desigualdade. Os países que funcionam asseguram as dimensões coletivas do bem-estar, como acesso universal e gratuito a bens públicos, em particular saúde, educação, cultura e segurança. Dizer que são “gastos” é absurdo, trata-se de atividades-fim, investimentos nas pessoas. Esse consumo coletivo não gera problemas ambientais, pelo contrário. Assegurar rios limpos, ar mais puro nas cidades, parques para lazer: batalhar a sustentabilidade é batalhar também pela nossa qualidade de vida. Do consumismo elitizado gerador de dramas ambientais temos de evoluir para consumo inteligente e distribuído.

Quando dizemos que temos de promover o desenvolvimento sustentado e sustentável, temos de pensar no processo decisório correspondente. Além da divisão dicotômica entre uma direita que quer privatizar e uma esquerda que quer estatizar, temos de pensar numa nova articulação inteligente de Estado, empresas e sociedade civil organizada. Hoje, com as corporações se apropriando do Estado e as OSCs perseguidas ou sobrevivendo com migalhas, estamos aprofundando o desastre. Slow-motion catastrophe, catástrofe em câmara lenta.

Objetivo 9 – Construir infraestruturas resilientes, promover  industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação

Temos como dinamizar as atividades produtivas inclusive nas regiões mais atrasadas ou desfavorecidas. O avanço das novas tecnologias, a conectividade planetária, a ampla urbanização do planeta e o avanço das políticas sociais abrem espaço para o que as Nações Unidas têm chamado de Global New Deal, novo pacto global. Em vez de condomínios, muros e controles para se proteger dos pobres, em vez de gritarias ideológicas sobre as ameaças dos imigrantes, muito mais inteligente é promover o desenvolvimento onde há pobreza.

Estamos vivendo uma era explosiva de transformações tecnológicas. O conhecimento é hoje o principal fator de produção. O seu uso não reduz o estoque, pelo contrário. O acesso aberto ao conhecimento tornou-se a grande avenida para o desenvolvimento. Permite ao mesmo tempo o acesso e o compartilhamento. São novas lógicas econômicas no quadro da economia do conhecimento. Em vez atravancar o conhecimento com patentes, copyrights e royalties temos de ampliar o acesso aberto às inovações, promovê-las. O conhecimento é um bem comum. Vejam o estudo de Elinor Ostrom, Nobel de economia, Understanding knowledge as a commons. O Chutando a escada de Ha-Joon Chang e tantas pesquisas demonstram que o atual sistema, em vez de promover a inovação, trava o seu potencial transformador. É o rentismo tecnológico.

A conectividade é hoje planetária, logo todos terão tablet ou celular. O principal fator de produção, o conhecimento, navega nesses meios sem custos, as ondas eletromagnéticas são da natureza. Formar comunidades de interesse constitui um grande espaço de sociabilidade e de trocas. São caminhos colaborativos em expansão. Vejam o estudo de Arun Sundararajan, Economia compartilhada. Vejam os sistemas abertos de acesso como o CORE (China Open Resources for Education) da China, ou o OCW (OpenCourseWare) do MIT nos EUA. Temos aqui um imenso potencial subutilizado.

A sociedade do conhecimento e a era do acesso abrem espaço para uma economia colaborativa radicalmente descentralizada. O conhecimento, sendo imaterial, viaja nas ondas sem custo. Mais pessoas usarem multiplica oportunidades. É a economia de custo marginal zero. Compartilhar se torna mais produtivo do que competir. Vejam o livro de Jeremy Rifkin, A sociedade de custo marginal zero.

A economia do conhecimento depende menos de uma hierarquia verticalizada e mais de redes de compartilhamento. A pesquisa fundamental desenvolvida nas universidades e instituições de pesquisa, os centros de desenvolvimento de tecnologias aplicada, os espaços de aplicação final na indústria, na saúde, na educação – tudo isso depende de um processo colaborativo ágil e aberto, sem burocracias. Hierarquia vertical, ordens, obediência e competição tendem a ser substituídas por redes abertas e flexíveis de colaboração. A nova economia que se expande sente-se mal dentro da roupa militarizada herdada do século passado.

Todos os dados sobre as 26 famílias mais ricas que dispõem de um patrimônio maior do que a metade mais pobre da população mundial, ou sobre 1% que tem mais do que os 99% seguintes, mostram uma realidade econômica radicalmente deformada. Mas é importante atentar para a classe burocrática que sustenta essa ínfima minoria, e que assegura o seu poder político, militar, jurídico, midiático. É a tropa de choque das elites, cooptada por altos bônus e salários, os políticos, juízes, advogados, contadores, economistas, gestores financeiros que asseguram uma massa de sustento abaixo do topo da pirâmide. São os gestores da máquina econômica dominante, fiéis guardiães dos privilégios. Mas o aprofundamento das crises ambientais, sociais e econômicas tende a gerar uma nova consciência.

Sabemos o que deve ser feito. O desafio básico do planeta cabe numa frase. Estamos destruindo o planeta em proveito de uma minoria inoperante, enquanto os recursos necessários para assegurar tanto as políticas ambientais como as de redução das desigualdades são desviados para atividades de especulação financeira. Os nossos recursos, tanto financeiros como tecnológicos, devem ser reorientados para assegurar o bem-estar das famílias e a sustentabilidade. Nosso problema, evidentemente, não é de falta de recursos, e sim do seu uso inteligente. Em Wall Street, adultos bem treinados enriquecem com o desvio do dinheiro para aplicações improdutivas e gritam excitados Greed is Good!! Trata-se da instituição que maneja o maior volume de recursos financeiros do planeta.

Acabar com a pobreza, assegurar crescimento e empregos, e promover a industrialização sustentável pertencem a uma lógica comum e integrada: democratizar o acesso aos recursos. Em Paris, governos de quase todo o mundo apoiaram a resolução de se levantar 100 bilhões de dólares anuais para ajudar a enfrentar o drama da mudança climática. Em paraísos fiscais, fruto de evasão fiscal, corrupção e comércio ilegal, e servindo à especulação improdutiva, temos entre 200 e 300 vezes mais. Isso não funciona. Como escreve Joseph Stiglitz, 40 anos de neoliberalismo demonstraram o seu fracasso. Sim, Stiglitz, ex-economista chefe de Clinton e do Banco Mundial. Martin Wolf, economista chefe do Financial Times, resume: o sistema perdeu a sua legitimidade. Temos, sim, de evoluir para um novo pacto global se quisermos que os ODS realmente se materializem.

Ladislau Dowbor é economista, professor da PUC-SP e consultor de várias agências da ONU. Seus trabalhos estão disponíveis online, em regime creative commons. As deformações que vivemos e as propostas para superá-las podem ser consultadas em curtos vídeos online desenvolvidos no quadro do Instituto Paulo Freire.