Por Ricardo Muniz
Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace), criada por Roseli de Deus Lopes em 2003, promove sua 23ª edição entre 24 e 28 de março no campus Cidade Universitária/Butantã da USP, nos espaços Inova USP e CDI USP (Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 370 e 310, em São Paulo)
A Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace) é realizada desde 2003 e tem como objetivos estimular a cultura científica, o saber investigativo, a inovação e o empreendedorismo em jovens e docentes da Educação Básica e Técnica do Brasil. “Mas também queremos contribuir para mudar a Universidade, ainda muito calcada em conteúdo”, diz Roseli de Deus Lopes, criadora da Feira, doutora em engenharia elétrica e livre docente da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). Em sua 23ª edição, de 24 a 28 de março, o evento, sempre no campus da USP, vai apresentar os projetos finalistas (clique aqui para consultar a lista completa).
Após ser convidada como jurada para uma feira internacional de ciências pela Intel, fabricante norte-americana de processadores, Lopes concebeu a ideia de replicar a experiência no Brasil, a princípio para universitários. “Fiquei encantada com tudo aquilo, mas pensei ‘por que será que no Brasil a gente não tem um movimento como esse também?’. Concluí que o caminho seria fazer para Educação Básica, só que no coração da Universidade, ali no meio, com forte participação de professores como avaliadores, porque iriam se encantar com o que as crianças e os jovens conseguem fazer e com isso mudar seus cursos no ensino superior”, conta. A intenção desde o início, diz Lopes – que também é vice-diretora do Instituto de Estudos Avançados da USP – foi envolver os alunos para resolver “problemas de verdade” com o objetivo de despertar maior interesse e incutir propósito, ao invés de inventar problemas mais simples apenas para aprenderem alguma técnica ou se apropriarem de algum conhecimento. Na primeira edição foram selecionados 93 projetos de 13 unidades da Federação. “Na estréia eu já tinha garantia de que haveria uma premiação bacana, que era levar seis projetos para os Estados Unidos com tudo pago, passaporte, passagens, inscrição em uma feira internacional”, recorda Lopes.
A engenheira e sua equipe montaram com o tempo uma rede de feiras de ciências afiliadas, cuja premiação consiste no acesso à Febrace. Por isso, metade das credenciais são destinadas à premiação de iniciativas irmãs e a outra metade é distribuída para submissões de projetos por meio do site do evento. “Temos mais de mil voluntários online que hoje não estão só em São Paulo, mas espalhados pelo mundo, que uma vez por ano nos ajudam a selecionar projetos, que podem ter até três estudantes autores”, explica a educadora. Um critério básico de seleção é combinar excelência com abrangência, razão pela qual com o passar dos anos a Febrace foi reduzindo a possibilidade de mais que uma equipe ou projeto de uma mesma escola na feira. “Fomos convencendo essas escolas: ‘Agora façam vocês uma feira! Convidem os vizinhos!’. A ideia é que possam ir disseminando esse tipo de prática, que é o mais importante. A Febrace é um instrumento para induzir as escolas a fazerem coisas nas quais a gente acredita, com evidências de que são iniciativas que funcionam.”
Segundo sua idealizadora, a Febrace é iniciativa educacional, e não meramente uma competição. “É claro que tem os prêmios, alguns vão receber e outros não, mas se trata muito mais de colaboração. Todo mundo ganha quando há comunidades mais potentes, com alunos e professores bem preparados, então a gente estimula o tempo inteiro esse tipo de postura de escolas públicas e privadas colaborando, não naquela perspectiva de uma filantropia esquisita que a gente tem no Brasil.”
Lopes define “filantropia esquisita” como a atitude paternalista ou condescendente de escolas privadas que imaginam que seus alunos vão ajudar comunidades carentes. O antídoto, diz ela, é perceberem que podem se ajudar: “Os alunos que estão em dificuldades maiores têm muito conhecimento sobre a vida, e às vezes os de condição mais privilegiada estão numa bolha. E aí os problemas que enxergam não têm tanta importância. Quando se juntam, ficam muito mais fortalecidos, alguns têm mais recursos, mas outros sabem fazer perguntas melhores.”
Lopes destaca ainda o papel da Feira como um instrumento de pesquisa, visto que recebe submissões de projetos do Brasil inteiro, o que possiblita que se tenha uma ideia geral do que está acontecendo nas escolas públicas, privadas, rurais e urbanas. Com isso, segundo a pesquisadora, tem sido provado que é possível fazer uma educação diferente mesmo em escolas que ainda não têm a infraestrutura que merecem. “Quando os alunos começam a fazer boas perguntas, resolver algum problema, desenvolver protótipos, a escola passa a ser um espaço em que vão buscar conhecimento e infraestrutura. Se não tem na escola, buscam uma parceria. E então as escolas que começam a ter resultados acabam melhorando sua infraestrutura porque as parcerias começam a dar frutos. A partir do resultado, professores estimulam e apoiam seus alunos. Você vai criando um círculo virtuoso.”
A Febrace também busca contribuir para que estudantes façam boas escolhas de trajetória acadêmica e profissional. “Isso me incomodava muito na Poli: receber às vezes jovens que conseguiram passar no vestibular mas que não vinham realmente apaixonados por engenharia, vinham porque a família dizia que iam ter uma boa colocação profissional, e aí o curso acaba sendo sofrido, não era o que eles realmente queriam”, relembra Lopes.
Os estudantes que participam da Feira sempre partem de um problema relevante – na perspectiva dos alunos – e seguem por uma trilha em que vão gerar conhecimento mais aprofundado, não só lendo a literatura já disponível, mas coletando dados primários. Outros optam por um caminho mais tecnológico, ou seja, querem entender o problema mas também resolvê-lo, então desenvolvem protótipos. “Lembro de duas meninas que me chamaram bastante atenção, elas desenvolveram uma solução para melhorar a visualização dos vasos sanguíneos por equipes de enfermagem. Fizeram algumas modificações na lente de um celular e programaram um software para facilitar a visualização, de modo que fosse possível acertar a veia logo de primeira. Uma delas foi cursar Engenheiro Elétrica.”
Segundo Lopes, quando se trabalha com talentos só no nível universitário, os estudantes já chegam com a preocupação da carreira: como vão percorrer a trilha mais bem-sucedida para ter bom emprego, bom salário, destaque, fama. “Já entram numa perspectiva mais egocêntrica, eu diria. E em geral nas universidades, mesmo nas públicas, a gente não faz um trabalho consciente, intencional, de mostrar que, principalmente quando a gente está numa pública, tem uma responsabilidade de devolver para a sociedade. Mas em cinco anos a gente não consegue mudar esse mindset”, explica. “Por isso que esse movimento de Feiras de Ciências na Educação Básica é extremamente importante, porque as crianças e os jovens são mais altruístas. Quando a gente fala pra eles ‘encontre um problema que seja relevante’, a maioria não pega um problema seu, pega um problema da comunidade. Quando o estudante começa a desenvolver projetos porque tem causa, propósito, mesmo que vá para o exterior não vai esquecer da comunidade dele e vai contribuir de alguma forma – esses laços são mais fortes. Aqueles que entram simplesmente pensando ‘Eu consegui passar no vestibular e eu sou muito bom’, em que a questão de se sentir responsável, de senso de comunidade, não foi trabalhada, mesmo que tenham bolsas de entidades públicas acabam não tendo o mesmo compromisso. Temos de cultivar esse espírito.”
Ricardo Whiteman Muniz é editor da revista ComCiência e professor da Especialização em Jornalismo Científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp (Labjor)