‘Museu da revolução’, de João Paulo Borges Coelho

Por Gabriela Beduschi Zanfelice

Van para os brasileiros, chapa para os moçambicanos, carrinha para os portugueses: é no interior deste veículo, especificamente de modelo Toyota Hiace, que se passa Museu da revolução (2021) de João Paulo Borges Coelho. Ou talvez seja melhor dizer que é através deste veículo que se desenrola a narrativa, uma vez que o cenário temporal e geográfico deste belíssimo romance finalista do Prêmio Oceanos 2022 se expande por fronteiras situadas muito além daquelas estabelecidas pela lataria da Hiace. Representante emblemática de uma das principais formas de transporte coletivo em Moçambique nas últimas décadas, a van é pilotada por Bandas Matsolo, um ex-guerrilheiro da guerra de libertação de Moçambique, e co-pilotada por Jei-Jei, um moçambicano apaixonado por Jazz – cujo nome constitui uma homenagem ao trombonista estadunidense J.J. Johnson e a Ricardo Rangel, falecido fotógrafo moçambicano que foi também um grande entusiasta deste gênero musical – e dono de uma inclinação imaginativa que o impele a contar (e a co-criar), junto do anônimo narrador do romance, muitas das intrigantes e complexas histórias que lemos ao longo de Museu da Revolução.

Na Hiace, cruzam-se os destinos de personagens que, à primeira vista, surgem-nos como bastante distintas, mas que gradativamente descobrimos terem mais em comum do que imaginamos. Além dos dois moçambicanos, também integram a viagem a sul-africana Elize Fouché, filha de um falecido ex-soldado do apartheid; Artur Candal, um ex-soldado português que integrou as forças coloniais em Moçambique durante a luta de libertação (ou guerra colonial); e Leonor Basto, filha de um soldado colonial português que descobre ter raízes moçambicanas após a revelação de que a sua mãe biológica (que nunca chegou a conhecer) era a moçambicana Mariamo, habitante do aldeamento de N’Cungas na altura da guerra da libertação. As diferentes paisagens percorridas pela van constituem também um importante elemento para o desenrolar dos acontecimentos, promovendo mudanças interiores nas personagens e contribuindo na definição dos caminhos – literais e metafóricos – a serem tomados, com a natureza e os animais ocupando um lugar tão central quanto os elementos humanos ao longo da narrativa.

No primeiro capítulo estamos em Mihama, Japão. O jovem Toichiro Yamada, treinado no mundo de ondulações mansas e certas do rio para ser pescador como o seu velho pai, sente a energia rompante e errática do mar pela primeira vez. Um acidente de contornos confusos e imprecisos, no entanto, interrompe a educação que o velho usho, mestre da pesca com aves, passaria ao pequeno Toichiro, fazendo com que dez anos mais tarde o rapaz inicie uma vida completamente diferente na ilha de Hokkaido, ajudando um tio no transporte de peixes entre mercados e restaurantes locais.

Apenas o mar, que havia visto em Mihama pela primeira vez na companhia do velho pai, permaneceu como o grande tema do seu pensamento. E o som das ondas era uma espécie de leitmotiv que surgia para o resgatar sempre que sentia fugir-lhe a capacidade de imaginar a imensidão azul a partir da cidade interior onde vivia (p. 12).

Com o intuito de expandir o comércio do tio, Toichiro compra a referida Hiace, colando na traseira do veículo o adesivo de um rinoceronte, símbolo da força e da resolução com que se empenhava no transporte de peixes. Dentro da Hiace, Toichiro e sua amada Ayumi passavam madrugadas a olhar o mar na península de Notsuke e a contar histórias sobre suas origens: Ayumi, por exemplo, revelou ser filha de uma sereia – uma ama-san, como são chamadas as corajosas mulheres que se aventuram no perigoso ofício de mergulhar no mar em busca de crustáceos e algas para vender. Novo acidente de “contornos fantásticos” (p. 21), nova mudança na vida do rapaz: a partir de “uma bifurcação entre o real e o sonho” (p. 22) que levou a “esta segunda via sem que lhe tivesse sido dada a possibilidade de escolher” (p. 22), Toichiro perde o controle da Hiace e capota o veículo, num acidente grave que o faz desistir do negócio com o tio e desfazer-se da van.

No segundo capítulo estamos já em Moçambique, com Jei-Jei e o anônimo narrador a explicar-nos as origens da relação entre a Toyota Hiace japonesa e a viagem por terras moçambicanas que tomará conta dos próximos capítulos do livro, após ambos terem se conhecido no Museu da Revolução situado em Maputo numa altura em que este ainda se encontrava aberto ao público. Com o gradativo crescimento do setor automobilístico japonês a partir de 1907 (data em que o Yoshida Takuri, primeiro carro japonês movido inteiramente a gasolina, foi inventado), no início dos anos 2000 o Japão havia se tornado o maior produtor mundial de automóveis, buscando na exportação uma possibilidade de escoamento dos milhares de veículos que produzia. Inicialmente, para os continentes europeu e americano e, num segundo momento, para o continente africano, uma vez que “A economia é uma fera caprichosa e insaciável, [e] a única maneira que temos de continuar a alimentá-la é ir alargando o seu pasto natural, o mercado” (p. 25).

Com o fim das guerras de libertação, a importação de veículos em segunda mão surgia como uma oportunidade mais barata para suprir tanto a demanda por métodos de transporte nos países africanos independentes quanto a necessidade de renovação dos automóveis japoneses, permitindo que o Japão, “por um novo caminho ainda, continuasse a alimentar a referida fera. Criou-se assim um poderoso canal que sugou um mar de veículos, entre eles os Toyota Hiace que, como nunca antes se vira, abriram a milhões de africanos anônimos a possibilidade de viagens e deslocações” (p. 25). Assim, a van de Toichiro despia-se dos sonhos de seu antigo dono para ser levada a Durban, na África do Sul, onde foi finalmente adquirida por Jei-Jei e Bandas Matsolo a pedido do Coronel Boaventura Damião, ex-camarada de Matsolo na luta de libertação e que agora o empregara como motorista da viagem.

A partir daí, muitos são os itinerários e os meandros percorridos pela magistral escrita de João Paulo Borges Coelho. Na obra, somos levados também por diversas viagens, passando pela experiência de Jei-Jei como operário na então RDA, República Democrática Alemã ou Alemanha Oriental, e os protestos dos magermanes, como eram chamados os trabalhadores moçambicanos na altura, em sua reivindicação pelos salários que nunca lhes foram pagos pelos governos moçambicano e alemão após a queda do muro de Berlim; pelos andares e objetos do Museu da Revolução, inaugurado em 25 de junho de 1978 como uma forma de homenagear a memória coletiva da luta de libertação moçambicana e que acabou, contraditoriamente, sendo adquirido enquanto posse privada do partido Frelimo em anos recentes e fechado para reformas que ainda hoje não foram concretizadas; pelo combate à pirataria de filmes nas periferias de Londres e os fluxos transnacionais de trabalho precário requeridos pela produção clandestina dos CDs entre Hong Kong, Dubai, Inglaterra e Moçambique; entre muitos outros.

A epígrafe do romance é um verso do poema Some there be de autoria da poeta sul-africana Ingrid de Kok: “Podem os esquecidos renascer numa terra de nomes?”. Museu da Revolução é um livro que se desenrola fundamentalmente ao redor de possíveis respostas a esta questão, tensionando e indagando discursos passados, presentes e futuros sobre a vida e a história de célebres e anônimas personagens, tornando-o uma leitura fundamental em Moçambique, no Brasil e no mundo.

Gabriela Beduschi Zanfelice é mestranda em Teoria e História Literária no Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (DTL/UNICAMP), bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo com o projeto “Crise ambiental, literatura-mundial e o paradigma do Índico em João Paulo Borges Coelho”. Durante o mestrado desenvolveu uma pesquisa na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) com o projeto “Ler a literatura de João Paulo Borges Coelho pelas lentes da Ecocrítica e dos Estudos do Oceano Índico”.. É membro do KALIBAN – Centro de Pesquisa em Estudos Pós-coloniais e Literatura Mundial (CNPq), atuando nos campos de Literaturas Africanas e Literatura Comparada, com ênfase em Literatura Moçambicana, Estudos do Oceano Índico, Literatura-Mundial e Teoria Pós-colonial.