Baía Urbana: documentário mostrou vida sob poluição de cartão postal do Rio de Janeiro

Por Monique Rached

Baía Urbana é o documentário que trouxe à superfície toda a biodiversidade marinha antes escondida dentro das águas da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. A obra, produzida pelo biólogo e cineasta Ricardo Gomes, foi lançada globalmente durante a primeira Conferência da ONU sobre os Oceanos, em Nova Iorque, em 2017.

Pouco tempo antes do lançamento do documentário, mais especificamente durante os Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro, a Baía de Guanabara recebia críticas mundiais a respeito da quantidade de poluição presente em suas águas. Apesar de ser um cartão postal notório do Brasil, a região costumava ser encarada como um local inóspito para a vida devido aos altos índices de lixo e esgoto despejados diariamente.

Foi justamente esse desconhecimento coletivo que impulsionou Gomes a mergulhar diversas vezes na Baía gravando imagens dos organismos para compor o documentário de 73 minutos. “Todo mundo falava que a Baía de Guanabara estava morta, eu mergulhei para provar que ela ainda estava viva, que vale a pena lutar por ela”, relata Gomes.

Entre registros icônicos como o de um golfinho esbarrando em uma embalagem plástica enquanto nada; e outro mostrando uma estátua de Iemanjá perdida no fundo do mar, o filme exibe imagens subaquáticas de diversos animais como raias, cavalos marinhos, esponjas-do-mar, lula, polvo, caranguejo-aranha, entre outros. Um ponto importante salientado é a quantidade de serviços ecossistêmicos ou, em outras palavras, os benefícios que essa riqueza de vida pode fornecer para os seres humanos direta e indiretamente. As esponjas-do-mar, por exemplo, são animais muito visados nas pesquisas científicas de desenvolvimento de fármacos e de combate a doenças como câncer. Isso se deve ao fato de as esponjas pertencerem a um grupo animal muito antigo na Terra – existem há mais de 650 milhões de anos – e, por serem organismos sésseis, que não se movimentam, adquiriram durante todo esse tempo uma série de mecanismos químicos de defesa contra uma infinidade de bactérias e outros microorganismos com as quais dividem o ambiente. Dentre essas substâncias produzidas pelas esponjas muitas podem ser úteis no controle de bactérias e até de células defeituosas que se proliferam sem controle no organismo humano.

Imagem: Ricardo Gomes

Outro exemplo citado em Baía Urbana aborda o valor de receita gerado pela exploração do turismo marinho que um único indivíduo de raia pode fornecer ao longo de sua vida. Em Bali, onde o governo indonésio instituiu leis de proteção a alguns animais marinhos, um único tubarão pode gerar até 2 milhões de dólares durante sua vida. Uma raia manta, que vive em torno de cem anos de idade, pode gerar 20 mil dólares por ano. Considerando que a Guanabara é uma das baías com maior diversidade de raias do mundo – contando com 7 espécies diferentes – há um grande potencial de mergulho turístico subaproveitado na região.

Desde seu lançamento, o documentário permaneceu “surfando” nos noticiários, acumulando dezenas de reportagens em mídias impressas e digitais, além de mais de 120 minutos em noticiários televisivos, segundo o diretor do filme. Baía Urbana teve o patrocínio da OceanPact e o apoio do Centro Mundial para o Desenvolvimento Sustentável (Centro RIO+), ligado ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Além disso, o filme contou com narração e uma música encomendada de Pedro Luís, fundador da banda Monobloco.

“Hoje as pessoas sabem que a Baía de Guanabara está viva. Ela foi sepultada, mas nós fomos lá e abrimos a porta do caixão, no sentido figurado, e mostramos que esse doente ainda não está morto. Essa é uma mudança de percepção muito importante para quem quer começar uma relação diferente com ela” diz Gomes.

Segundo Gomes, que é nascido e morador do Rio de Janeiro, hoje em dia, a percepção dos cariocas sobre a biodiversidade da baía é maior. Para ele, o despertar de um sentimento de pertencimento ao meio ambiente configura um marco importante no sentido de promover mudanças maiores como a implementação de um plano de tratamento de esgoto.

Esse princípio do sentimento de pertencer e zelar pelo meio ambiente é tão importante que faz parte do Programa de Despoluição da Baía de Chesapeake – o maior estuário dos Estados Unidos – e que já obteve resultados significativos no caminho da despoluição. O modelo de planejamento de Chesapeake, por sua vez, foi usado como referência na criação do Plano de Recuperação Ambiental da Baía de Guanabara. No plano inclui-se a divulgação de um Boletim de Saúde Ambiental da Baía, que é elaborado pela Universidade de Maryland, e no qual a ideia é trazer os dados da maneira mais didática possível, visando facilitar a compreensão do grande público.

O documentário busca trazer uma visão otimista e que impulsione a contemplação da Baía de Guanabara. Um dado apresentado no filme é de que a cada doze dias, em média, metade da água da baía é totalmente renovada devido ao movimento das correntes marítimas. Dessa forma, se deixarmos de despejar esgoto nas águas, ela conseguiria se recuperar facilmente.

Após o lançamento do documentário, Gomes fundou sua própria ONG, o Instituto Mar Urbano, e promove algumas ações ecológicas. Atualmente realiza a ação de replantio de 30 mil árvores de mangue na Baía de Guanabara, na área de proteção ambiental de Guapimirim. Em parceria com a ONG Guardiões do Mar, a ação deve ocupar uma área de 12 hectares, caracterizando a criação de uma mini floresta de mangue. Anteriormente, Gomes já havia promovido uma ação de replantio com 364 mudas de mangue, para zerar a pegada de carbono do documentário Baía Urbana. Recentemente o Instituto Mar Urbano inaugurou o Espaço Azul, um quiosque na orla de Copacabana que funcionará como uma sede para a organização de eventos como limpezas de praia e outras atividades no âmbito da conservação ambiental.

“Eu não troco um dia dessa vida de hoje por toda a vida que eu vivia antes de ter começado esse trabalho”, diz Gomes. “O projeto do documentário evoluiu para a aceitação da responsabilidade, do compromisso voluntário meu e dessa ONG para lutar por justiça ambiental”.

Fica explícito, tanto na obra quanto na fala do diretor, o quanto a igualdade social é importante na resolução de um problema como a poluição de um estuário tão grande e cercado por diferentes municípios. Pouca coisa mudou, efetivamente, desde o lançamento de Baía Urbana. O esgoto não tratado de milhões de pessoas, dos quinze municípios localizados no entorno da Baía, continua sendo despejado por via dos inúmeros rios que compõem a bacia hidrográfica da Baía de Guanabara. Segundo dados de 2014 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), apenas 35% do esgoto liberado por esses municípios recebe algum tipo de tratamento.

Considerando as décadas de descaso com a preservação da Baía de Guanabara, percebe-se que a recuperação da área só acontecerá a longo prazo e com a cooperação de diferentes atores da sociedade. Os avanços na despoluição são difíceis de detectar devido à imprecisão no próprio monitoramento da qualidade da água. Gomes revela ser esperançoso quanto à prospecção da situação e reforça a importância de ações continuadas na promoção de melhorias na qualidade de vida do planeta como um todo. “Em um filme no qual eu pensava que serviria para salvar a Baía de Guanabara, eu acabei percebendo que era muito mais um filme para tentar salvar o futuro da minha filha (que nasceu durante as filmagens), pois nossos impactos locais têm efeitos globais”.

Trailer de Baía Urbana: https://vimeo.com/248786915

Monique Rached é bióloga pela Universidade de São Paulo e especialista em jornalismo científico pelo Labjor-Unicamp. Trabalha como quadrinista e ilustradora de técnicas tradicionais e digitais. Atualmente é colaboradora na Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano e bolsista do programa Mídia Ciência da Fapesp.