O neutrino é pop?

Por Paula Gomes

Representações da partícula no audiovisual norte-americano.

O episódio “There will be buds[1]” de Os Simpsons inicia-se com um locutor de rádio anunciando que uma partida de futebol infantil em Springfield está prestes a começar. Enquanto o primeiro time entra em campo, o locutor os apresenta: “Senhoras e senhores, os Neutrinos de Springfield!” Os jogadores são recepcionados por uma forte fumaça, lançada por equipamentos da organização do evento, que rapidamente cobre todo o campo. Sem enxergar nada, as crianças começam a correr desgovernadamente, trombando umas nas outras, para o desespero dos pais que estão na plateia.

Assumindo que, mesmo em condições atmosféricas melhores, o comportamento de crianças em um campo de futebol ainda pode ser considerado razoavelmente caótico, o nome do time parece bem apropriado. Os “verdadeiros” neutrinos de Springfield – e de todo o universo – são partículas subatômicas leves, sem carga elétrica, que transitam pelo espaço aos montes e em alta velocidade. No entanto, as “semelhanças” terminariam por aí. Diferentemente dos meninos, cujos corpos, ao encontrarem outros corpos, chocam-se, os neutrinos são partículas que quase nunca interagem com a matéria. As chances de um neutrino chocar-se com um átomo são bem menores do que as chances de você ganhar na megasena[2], por exemplo.

Os neutrinos também são muito difíceis de detectar. Laboratórios como o Cern, em Genebra, e o Fermilab, nos EUA, trabalham incansavelmente nessa árdua empreitada. Mas, nos muito mais interessantes universos da ficção científica, sua detecção é algo banal. Os sensores das naves espaciais que vemos na franquia Star Trek, por exemplo, conseguem identificá-los num piscar de olhos dos controladores. Apesar de eles serem inofensivos, geralmente são mensageiros de más notícias para os personagens: sua presença pode denunciar a aproximação de uma nave com um escudo de invisibilidade, ou então a chegada de uma nave por meio de um buraco de minhoca. A correlação entre naves e produção de neutrinos é uma incógnita científica que os roteiristas não parecem muito preocupados em explicar. Já sobre os neutrinos criados em viagens por buracos de minhoca, bem, acho que as partículas são o menor problema desse cenário.

No episódio “Prime factors[3]” de Star Trek: voyager, os viajantes do espaço encontram uma utilidade mais prática para os neutrinos: ao se depararem com uma tecnologia nova, capaz de transportar uma nave no espaço-tempo, Torres e Seska tentam, por meio de uma “engenharia reversa”, descobrir como ela funciona. Elas constatam a presença de muitos neutrinos perto do aparelho, levando-as a desenvolverem a hipótese de que o artefato seria uma espécie de “bolha” de neutrinos, capaz de transportar naves espaciais na velocidade da luz.  É bem verdade que os neutrinos são capazes de se locomover a uma velocidade próxima à da luz, mas levar uma nave inteira a tiracolo é pedir um pouco demais de partículas tão pouco sociáveis.

Neste mesmo episódio de Star Trek, somos apresentados ao gêmeo do mau do neutrino, o antineutrino. Uma grande quantidade dessa partícula é gerada enquanto Torres e Seska tentam criar a “bolha” de neutrinos, aumentando a temperatura do sistema da nave e as obrigando a abortar a missão. Em nosso universo, os antineutrinos também existem mas, até o momento, não foi descoberta nenhuma ação maligna vinda dessas partículas. Os antineutrinos são a parte antimatéria dos neutrinos, e o estudo dessas partículas pode nos ajudar a responder importantes perguntas da ciência contemporânea. Uma das que intriga os cientistas é: por que, se naturalmente matéria e antimatéria se equilibram, temos hoje muito mais da primeira do que da segunda.

Os neutrinos também fazem pequenas participações especiais em outra popular série de ficção científica: Doctor Who. Algumas tecnologias que aparecem na série são capazes de detectar neutrinos quando eles colidem com algum elétron. Além disso, a poderosa máquina Arkive[4], que foi atingida por uma supernova, passou a utilizar os neutrinos que absorveu dessa colisão para se comunicar. A ideia de utilização dos neutrinos para transportar informações é teoricamente bem interessante[5], já que a partícula atravessa corpos sólidos com rapidez e facilidade. Ironicamente, essa característica também seria a maior dificuldade do projeto: a maioria dos neutrinos simplesmente atravessaria os detectores utilizados para o recebimento das informações.

Enquanto a participação do neutrino é um pouco tímida, o fictício z-neutrino tem uma participação[6] bem mais memorável na mesma série. A partícula tem a assustadora capacidade de desativar campos eletromagnéticos. Ao desativar a energia que conecta os átomos entre si, um feixe de z-neutrinos é capaz de decompor qualquer matéria em seus componentes básicos. Ou seja, tem o poder de destruir quase todo o universo.

O episódio piloto[7] da série animada Rick e Morty intensifica um pouco a linha apocalíptica de Doctor Who: na primeira cena, o cientista Morty acorda seu sobrinho Rick de madrugada, revelando que naquela noite, durante um delírio alcoólico-existencial, criou uma bomba de neutrinos capaz de destruir toda a humanidade. A ideia de uma bomba com esse poder de letalidade a base de simpáticos neutrinos não é apenas improvável, como exageradamente ineficiente. Na realidade, é difícil imaginar um elemento que seja mais ineficiente para matar algo do que um neutrino. A bomba de neutrinos de Rick, dessa forma, é uma brincadeira de quebra de expectativas em relação a essa partícula.

Distanciando-se dessas perspectivas criativas e arrojadas de utilização do neutrino, a série televisiva The Big Bang Theory, explora seu caráter mais “comum”. A série, do gênero sitcom, que retrata cientistas da área da física, utiliza material deste campo do conhecimento para produzir muitas de suas piadas. Ao longo de suas 12 temporadas, os neutrinos são referenciados em mais de uma ocasião. As piadas envolvendo essas partículas parecem ser estruturadas de modo bastante interessante, podendo ser decodificadas simultaneamente tanto pela parcela do público que tem algum (ou muito) conhecimento de física, quanto pelos que não estão familiarizados com a área.

No episódio “The Skywalker Incursion[8]”,  os amigos Sheldon e Leornard estão viajando de carro, a caminho de um congresso. Sheldon desafia Leonard a jogar uma variação de um popular jogo social norte-americano. O jogo convencional chama-se “I spy”, e consiste em um jogador informar aos outros o que está observando, e fornecer dicas de sua cor, forma, proximidade, enquanto os outros tentam adivinhar o que ele está vendo. Sheldon explica que a sua variação foi pensada para ser jogada por físicos, chamando-se “I can´t spy”. Nesta versão é preciso adivinhar qual partícula subatômica, ou ondas, fora do espectro visível, o outro jogador não está vendo. Sheldon começa, dizendo que “não está vendo” algo que está passando através de seus corpos e o amigo responde: “hum, se 65 bilhões de neutrinos solares passam por segundo em um centímetro quadrado, e a área total deste carro é de aproximadamente 60 mil centímetros quadrados, isso dá 9 x 1015 neutrinos solares?”

Em outro episódio, Sheldon convida um antigo ídolo de infância para a sua casa: um cientista que costumava ter um programa televisivo de ciências voltado para crianças. Seu personagem no programa chamava-se Dr. Proton. Quando o cientista chega à casa de Sheldon, ele pergunta o paradeiro do boneco de manipulação que estrelava um quadro no programa, chamado “Gino, the neutrino”. Dr. Proton confessa que hoje em dia odeia o boneco, pois sua ex-mulher o traiu com o homem que o manipulava. Sheldon, surpreso, diz que não é possível, “como alguém pode odiar Gino, the neutrino?”, e mostra a sua própria versão do boneco, que comprou no Ebay por 20 dólares (com o frete incluso). O preço módico do boneco sugere não só o baixo interesse de qualquer um, exceto Sheldon, pelo boneco, mas também uma brincadeira com a ideia da quantidade abundante da partícula, que, em um sistema capitalista, diminuiria seu valor. Gino é azul e todas as outras características físicas, bem como seu nome, remetem a estereótipos de um italiano: ele tem um grande bigode e usa uma roupa de navegador de gôndolas venezianas embaixo do seu jaleco de laboratório. A brincadeira é uma referência a Enrico Fermi, o físico italiano que, entre outras contribuições importantes para a ciência, sugeriu o nome de “neutrino” em 1932 para essa partícula, cuja existência só viria a ser comprovada em 1956.

How could anybody hate Gino the Neutrino?

Em outro episódio[9], os colegas de Sheldon, Howard e Leonard, entram em sua sala enquanto ele  trabalha em um equação na lousa. Sheldon diz, animado: “olhem, eu encontrei meu neutrino desaparecido!”. A equação na lousa é relacionada ao decaimento beta, processo no qual um próton se transforma em um nêutron, ou um nêutron se transforma em um próton, produzindo um pósitron/elétron e um neutrino/antineutrino. Howard reponde, irônico: “que bom, podemos tirar o nome dele da caixa de leite, então”. A piada, novamente, parece brincar com o fato de a partícula ser tão comumente encontrada no universo.

A série animada Futurama também cita algumas vezes os neutrinos. No episódio Mars University[10], o professor Farnsworth diz para Bender que a disciplina que ministra na Faculdade de Marte se chama “mathematics of quantum for neutrino fields” (algo como “a matemática dos campos quânticos de neutrinos”), e que colocou o nome para repelir alunos. Bender, por sua vez, entende que o professor disse “mathematics of wonton burrito meals” (“a matemática das refeições de burrito de wonton”), e fica muito interessado na aula.

De fato, o professor parece ter empreendido grande esforço para criar um nome que associa áreas e temas percebidos como áridos pelo público em geral, como matemática, neutrinos e a teoria quântica dos campos. Se fizéssemos uma rápida pesquisa com algumas pessoas, perguntando qual desses três nomes soa mais assustador, possivelmente encontraríamos ao menos uma pessoa com medo de matemática, uma com medo de neutrinos e uma com medo da teoria quântica dos campos. Encontraríamos pessoas com medo das três também, certamente.

Por esse motivo, quando comecei essa pesquisa sobre a recorrência de neutrinos no audiovisual norte-americano, estava preparada mentalmente para o fracasso. Apesar de eles estarem em toda parte, as chances de encontrar neutrinos na TV, ou em plataformas de streaming, me pareciam tão remotas quanto as chances de algum deles se chocar contra meu corpo. No livro Praticamente inofensiva[11] de Douglas Adams, somos convidados a imaginar que um dia, um evento deste tipo ocorreu:

A Terra que nos interessa aqui, devido à sua orientação particular dentro da Mistureba Generalizada de Todas as Coisas, foi atingida por um neutrino que não atingiu nenhuma das outras Terras… um neutrino colidiu com um átomo. Tudo depende do que você entende por “ser atingido”, é claro, já que na verdade a matéria consiste quase que inteiramente em absolutamente nada. As chances de um neutrino atingir de fato alguma coisa enquanto viaja por esse imenso vazio são comparáveis às de jogar aleatoriamente uma bolinha de metal de um Boeing 747 em pleno voo e acertar, digamos, um sanduíche de ovo”. (Adams, 2006: 23).

Pegando de empréstimo a analogia visual de Douglas Adams, minha primeira percepção era a de que encontrar referências a neutrinos na cultura pop norte-americana pudesse ter as mesmas chances de sucesso de uma bolinha de metal acertar um sanduíche de ovo. Ou então, de um neutrino acertar essa bolinha de metal enquanto ela atinge um sanduíche de ovo. Para minha surpresa, descobri que neutrinos e cultura pop colidem com uma frequência bem maior. Às vezes o resultado dessa colisão desafia as leis da física – e do bom senso. Às vezes nos fornece interessantes pistas sobre como nós estamos aprendendo a lidar com a descoberta de algo que está em toda parte, não interage conosco, é difícil de compreender e observar e pode guardar respostas para algumas das grandes perguntas da ciência contemporânea.

  • Colaborou com o texto o físico Guilherme Faria Lemos de Lucca

Paula Gomes é doutora em multimeios pela Unicamp. Mestra em imagem e som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Possui graduação em comunicação social com habilitação em radialismo pela Unesp. Cursa a especialização em jornalismo científico e cultural do Labjor/Unicamp.

Notas e referências

[1] Episódio número 6 da 28ª temporada, veiculado em 6 de novembro de 2016 nos EUA no canal Fox.
[2] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gKO8f79Ekew. Acesso em: 20/09/2019
[3] Episódio 10 da primeira temporada da série, veiculado no dia 20 de março de 1995 no EUA, no canal UPN.
[4] Baxter, S. Doctor Who: The wheel of ice. Londres: Random House, 2012, p.297.
[5] Disponível em: <https://blogs.scientificamerican.com/observations/message-encoded-in-neutrino-beam-transmitted-through-solid-rock/>. Acesso em 23/09/2019
[6] Episódio 13 da 4ª temporada, veiculado no dia 5 de julho de 2008 no Reino Unido, no canal BBC One.
[7] Episódio 1 da 1ª temporada veiculado no dia 3 de dezembro de 2013 nos EUA, no canal Cartoon Network
[8] Episódio 8 da 19ª temporada, veiculado no dia 2 de abril de 2015 no EUA, no canal CBS
[9] Episódio 4 da 2ª temporada veiculado no dia 13 de outubro de 2008 nos EUA, no canal CBS
[10] Episódio 2 da 2ª temporada veiculado no dia 3 de outubro de 1999 nos EUA, no canal FOX
[11] Adams, D. Praticamente inofensiva.  Rio de Janeiro: Sextante, 2006.