Que o mar não leve a culpa…

Por Régis Pinto de Lima

Recentemente foi publicado o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC1) – Relatório do Grupo de Trabalho I (AR6 WGI) – finalizado e aprovado por 234 autores e 195 governos. Dentre os principais resultados, os cientistas não têm dúvidas de que as atividades humanas aqueceram o planeta. Mudanças rápidas e generalizadas ocorreram no clima do planeta e alguns impactos estão agora se concretizando.  O mundo natural será prejudicado por mais aquecimento e, portanto, os ecossistemas terrestres e oceânicos têm uma capacidade limitada para nos ajudar a resolver o desafio climático. O IPCC também lançou o Atlas interativo do IPCC WGI, uma nova ferramenta para análises espaciais e temporais sobre mudanças climáticas observadas e projetadas2, com cenários de nossos possíveis futuros climáticos.

Como oceanógrafo não é difícil interpretar estas informações científicas e entender a estreita relação entre os oceanos e o clima do planeta e como estes cenários são preocupantes. Os oceanos são complexos e de dimensões imensas, difícil para que possamos exemplificar de forma simples, por exemplo, quais os processos envolvidos no aquecimento e acidificação das águas, pela provocada migração e mobilidade das espécies, bem como dos processos físicos que envolvem os eventos extremos.

O Brasil tem uma extensa contribuição na geração de dados e informações oceanográfica do Atlântico sul ocidental. Num artigo de agosto deste ano, vários pesquisadores avaliam os sistemas de observação e modelagem de oceanos costeiros no Brasil, discorrendo sobre as iniciativas e perspectivas futuras3. Também temos no nível nacional, a Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM), criada em 1974 para coordenar a Política Nacional para os Recursos do Mar. Dentre vários colegiados importantes está o Grupo de Integração do Gerenciamento Costeiro/GI-Gerco, onde se discute e se prioriza ações relacionados ao Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro/PNGC e seus instrumentos4. Coordenado pelo MMA, além representantes governamentais, sua composição também inclui a sociedade civil, universidades, associações e representantes dos estados costeiros, sendo responsável pelo Plano de Ação Federal para a Zona Costeira (PAF-ZC). Foi do Gi-Gerco a iniciativa de elaborar e lançar o Guia de Diretrizes de Prevenção e Proteção à Erosão Costeira5. Ativo desde 1996, a última reunião deste importante fórum sobre a gestão costeira ocorreu em agosto de 2019…

É justamente na zona costeira, região de interface entre os continentes e os oceanos, onde temos a oportunidade para sensibilzar nossa sociedade sobre as graves implicações sobre às mudanças do clima. É na linha de costa onde as pessoas tem um maior contato com os oceanos, seja pela utilização da orla como lazer, esporte, férias, moradia ou negócio. Sobretudo associamos à beira mar como uma área de diversão, descanso e contemplação. Porém, você já ouviu falar em perigos e os riscos costeiro? E sobre a vulnerabilidade costeira? Melhor ir se acostumando ou procurando saber. Neste sentido, a NASA6 acaba de lançar uma excelente ferramenta que mostra quanto o nível do mar vai subir em todo o mundo!

O Brasil possui aproximadamente 10.800km de linha de costa, tendo 443 municípios costeiros7 em dezessete estados, onde residem 26,6% da população brasileira ou mais de 50 milhões de pessoas. Destes, estados como o Amapá e o Rio de Janeiro, por exemplo, possuem mais de 80% de sua população residente na zona costeira8. Segundo a publicação9 de 2018 – Panorama da erosão costeira no Brasil, cujo Prefácio do Prof. Dieter Muehe De forma muito generalizada os resultados do levantamento, agora apresentado, mostram que nas regiões Norte e parte do Nordeste do país, cerca de 60 a 65% da linha de costa está sob processo erosivo, ao passo que no Sudeste e Sul esse percentual, com cerca de 15%, é bastante inferior, devendo porém ser ressaltado, no Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, o elevado percentual de trechos com indicação de tendência erosiva…” .

A erosão costeira é um dos principais problemas ambientais e sociais do litoral brasileiro, causando danos em diversos setores atuantes nesta parte do território nacional. A perda do valor imobiliário das edificações, comprometimento do potencial turístico, gastos para recuperação dos locais impactados, a redução da largura de praias e desequilíbrio de habitats naturais como manguezais, dunas e restingas, são alguns dos impactos negativos já apontados, potencializados em linhas de costa densamente ocupadas10. Por todos esses impactos, e devido a frequência e relevância econômica e social do fenômeno na Zona Costeira brasileira, fez com que a erosão costeira fosse elencada no rol de Desastres Naturais (CENAD, 2012) reconhecidos pela Classificação e Codificação Brasileira de Desastres (Cobrade). O que demonstra também a preocupação da sociedade e do poder público para a busca de soluções e medidas para enfrentar/combater a erosão costeira11. Dentre os principais fenômenos que já estão expondo a costa brasileira às mudanças do clima, os eventos extremos causados por grandes tempestades e consequentemente associado a marés meteorológicas, estão causando impactos e danos frequentes nas principais capitais do litoral, como Florianópolis, Rio de janeiro, Vitória e a maioria das capitais do Nordeste.

Dentre as políticas públicas que tratam deste importante no Brasil, a Política Nacional para as Mudanças do Clima (PNMC) foi definida na forma da Lei Nº 12.187 de 2009. Posteriormente em 2016 é lançado o Plano Nacional de Adaptação/PNA12, que traz no capítulo relacionado a zona costeira, que as principais exposições e enfrentamentos são a elevação do nível do mar, os eventos extremos e a elevação da concentração de gás carbônico, com impactos como a erosão costeira, a intrusão salina, comprometimento dos recursos naturais e da biodiversidade, eventos extremos e a acidificação.

Em junho de 2017, o Brasil esteve representado na Conferência dos Oceanos da ONU em Nova Iorque, grande evento mundial que tratou do Objetivo do Desenvolvimento Sustentável14 – A vida abaixo de água. Nesta oportunidade foi dada continuidade ao desenvolvimento das políticas públicas relacionadas às mudanças do clima e a zona costeira, tendo a delegação brasileira apresentado o Compromisso Voluntário Nº 19679 – Implementation of the National Program for the Conservation of the Brazilian Coastline.

O PROCOSTA13 “Programa Nacional de Conservação da Linha de Costa, foi lançado pelo Ministério do Meio Ambiente em de março de 2018. Este Programa14 também foi incluído no IV PAF-ZC.

Composto por quatro eixos/projetos principias, este programa em escala nacional preve a utilização do conhecimento científico multidisciplinar para definição de uma linha de costa geofísica, onde cenários temporais poderão prever o avanço, recuo ou estabilidade do litoral, detectando os perigos e calculando os riscos costeiros. Ao mesmo tempo, propõe a capacitação de recursos humanos, a utilização de software de modelagem costeira, a produção de guias e protocolos, bem como de um portal com todas as informações sobre as obras costeiras e a priorização das mesmas em função dos perigos e riscos costeiros.

Existem medidas voltadas para se evitar os impactos da erosão costeira e (prevenção), assim como existem medidas para atenuá-la (mitigação). As medidas preventivas devem se basear no reconhecimento da linha de costa como um território nacional especial, sob ameaça de forças naturais extremas, necessitando de uma agenda integrada para enfrentamento da escassez de areia nas praias e o avanço do nível do mar. Neste sentido é urgente o ordenamento do litoral, estabelecendo uma faixa de segurança costeira, onde o serviço ecossistêmico de proteção possa ser naturalmente disponibilizado pelos ambientes de praia, dunas, restingas, manguezais e marismas. Especial atenção à recuperação dos recifes costeiros no litoral nordeste, que funcionam como uma barreira natural à ação das ondas no litoral, ecossistemas muito castigados pela exploração direta (cal) ou indireta (coleta e caça). Além disso, em determinados trechos costeiros poderá ser necessário a remoção ou o recuo das construções, como também à recuperação dos ambientes de dunas. As medidas mitigadoras são construções, obras de engenharia utilizando-se muros ou anteparos fixos na linha de costa. Essas estruturas rígidas, como quebra-mares, muros de contenção, diques, gabiões entre outras, tem atuação localizada e em geral causam um sério efeito colateral que é deslocar o processo erosivo para as áreas adjacentes, causando da mesma forma prejuízos para o patrimônio público e privado, geralmente em obras classificadas como emergenciais. A recuperação das praias, com alimentação e aumento do estoque de areia tem sido utilizado internacionalmente como uma das melhores soluções para fazer face aos efeitos da erosão e às mudanças do clima5.

No Rio de Janeiro, o aterro do Flamengo, a praia da Urca e da praia de Copacabana são exemplos de sucesso de alimentação e recuperação de praias no Brasil, assim como em Santa Catarina (Florianópolis e Piçarras) e Pernambuco (Jaboatão dos Guararapes). Ao mesmo tempo, é necessário um monitoramento (custos) destas alimentações de praias para avaliação do balanço sedimentar e da necessidade de reposição de areia, para não pôr em risco todos estas dezenas de milhões aplicadas em cada uma destas obras. Neste momento (setembro de 2021) a praia de Camboriú/SC está em pleno processo de alargamento, com alimentação de areia proveniente de dragagem. Independente de questões técnicas ou controversas, podemos destacar a divulgação pública desta obra desafiadora, seja pela mídia ou mesmo por um canal de comunicação on line15 para a população acompanhar, inclusive virando um local de curiosidade e observação sobre este processo de manejo da linha de costa.

A preocupação dos brasileiros com relação às mudanças do clima e os oceanos com certeza é muito diferente das nações insulares do Pacífico, por exemplo, onde a água do mar já ameaça o território destes Estados soberanos e a sobrevivência de sua nação. Ou mesmo com o exemplo tão bem conhecido da Holanda, países baixos, onde o manejo da linha de costa é uma realidade e uma necessidade. Aqui, temos aproximadamente 40% do litoral em processo de erosão, com riscos ambientais, sociais e econômicos que podem representar grandes quantias de recursos públicos e privados destinados à sua mitigação.  Porém, com aproximadamente ainda 60% da costa em processos de equilíbrio ou sem processos erosivos ainda detectados, devemos avançar urgentemente na definição e demarcação destas áreas de segurança costeira, onde os serviços ecossistêmicos produzidos por manguezais, marismas, dunas, restingas e recifes cumprem uma função de proteção natural aos efeitos produzidos pelas mudanças do clima.

Se as políticas de planejamento e ordenamento territorial utilizarem dos conhecimentos técnico científicos disponíveis sobre as praias e a erosão costeira, isso evitará o desperdício de recursos públicos e privados com obras de engenharia costeira que não cumprem a função de proteção permanente, acelerando a erosão local ou afetando outros pontos da costa, consequentemente aumentando o risco e a vulnerabilidade ambiental, social e econômica daquela parte do litoral.

Caso contrário, ou no ritmo lento de mobilização nacional para o enfrentamento de um problema de tal magnitude, temos que reconhecer que o mar não pode levar a culpa…

Régis Pinto de Lima, oceanógrafo, foi coordenador-geral de Gerenciamento Costeiro do Ministério do Meio Ambiente entre 2016 e 2018

Bibliografia

  1. Intergovernamental Panel on Climate Change/IPCC. 2021. AR6 Synthesis Report:  Climate Change 2022. Agosto de 2021. Disponível em https://www.ipcc.ch/report/sixth-assessment-report-cycle/
  2. Intergovernamental Panel on Climate Change/IPCC. 2021. IPCC WGI Interactive Atlas. Agosto de 2021. Disponível em https://interactive-atlas.ipcc.ch/
  3. Guilherme Franz, Carlos A. E. Garcia , Janini Pereira , Luiz Paulo de Freitas Assad, Marcelo Rollnic , Luis Hamilton P. Garbossa , Letícia Cotrim da Cunha, Carlos A. D. Lentini , Paulo Nobre, Alexander Turra, Janice R. Trotte-Duhá, Mauro Cirano, Segen F. Estefen, José Antonio M. Lima , Afonso M. Paiva, Mauricio A. Noernberg , Clemente A. S. Tanajura , José Luiz Moutinho, Francisco Campuzano, Ella S. Pereira , André Cunha Lima , Luís F. F. Mendonça, Helder Nocko, Leandro Machado, João B. R. Alvarenga, Renato P. Martins, Carina Stefoni Böck , Raquel Toste , Luiz Landau , Tiago Miranda, Francisco dos Santos, Júlio Pellegrini, Manuela Juliano , Ramiro Neves and Andrei Polejack. 2021. Coastal Ocean Observing and Modeling Systems in Brazil: Initiatives and Future Perspectives. Frontiers in Marine Science. Agosto 2021. Volume 8. Artigo Nº 681619. 25 p. https://doi.org/10.3389/fmars.2021.681619.
  4. Brasil. 1988. Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro/PNGC. Lei 7. 661 de 16/05/1988. Diário Oficial da União – Seção 1 – Página 8633. 
  5. Brasil. CIRM – Grupo de Integração do Gerenciamento Costeiro/GI-GERCO. 2018. Guia de Diretrizes de Prevenção e Proteção à Erosão Costeira – Brasília/DF, 111 p.: il.
  6. National Aeronautics and Space Administration/NASA. 2021. Sea Level Change – Observations from Space. Disponível em https://sealevel.nasa.gov/
  7. Brasil. Ministério do Meio Ambiente. 2021. Aprova a listagem atualizada dos municípios abrangidos pela faixa terrestre da zona costeira brasileira. Portaria Nº 34. D.O.U. 03/02/2021, Edição 23, seção 1, Página 53.
  8. Brasil. IBGE. 2011. Atlas geográfico das zonas costeiras e oceânicas do Brasil. Diretoria de Geociências. Rio de Janeiro. 173p, il.
  9. Brasil. Ministério do Meio Ambiente. 2018. Panorama da erosão costeira no Brasil. Organização Dieter Muehe. Brasília/DF. 759p, il.
  10. Souza, C.R.V. 2009. A erosão costeira e os desafios da gestão costeira no Brasil. Revista de Gestão Costeira Integrada / Journal of Integrated Coastal Zone Management, v.9, n.1, p.17-37, 2009b.
  11. Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (CENAD). 2013. Anuário Brasileiro de Desastres Naturais: Secretaria Nacional de Defesa Civil. Brasília: CENAD, 2013. 106p.
  12. Brasil. Ministério do Meio Ambiente. 2016. Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima: volume 2: estratégias setoriais e temáticas: portaria MMA nº 150 de 10 de maio de 2016 – Brasília: MMA, 2016. 2 v. 295 p., il.
  13. Brasil. Ministério do Meio Ambiente. 2018. Programa Nacional para Conservação da Linha de Costa. D.O.U. 28/03/2018, Edição 60, Seção 1, Página 161. Portaria Nº 76 de 26 de março de 2018.
  14. Brasil. Ministério do Meio Ambiente. 2018. Programa Nacional para Conservação da Linha de Costa – PROCOSTA. Ministério do Meio Ambiente, Secretaria de Recursos Hídricos e Qualidade Ambiental, Departamento de Gestão Territorial – Brasília, DF: 36p, il. MMA, 2018.
  15. Youtube. 2021. Alimentação da Praia Central de Balneário Camboriú Ao Vivo. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=fZnOLQo2rjk