Temos o dia e a década do oceano; será que precisaremos de um século para salvá-lo?

Por Alexander Turra

E já não era sem tempo… Chegou a vez do oceano. Resultado de seis décadas de estudos, manifestações e negociações, o oceano ganhou uma posição de destaque em nível internacional. O oceano é importante para toda a humanidade, embora poucos compreendam seu papel no nosso dia a dia. O entendimento de que as atividades humanas dependem fortemente do oceano, mesmo que realizadas distantes dele, como a agricultura, catapultou a atenção dos tomados de decisão ao redor do planeta. E isso aconteceu, em especial, porque o ambiente marinho tem sido palco de uma degradação sem precedentes. Poluição, pesca excessiva e mudanças climáticas são algumas das causas do seu adoecimento. Algo urgente precisava ser feito.

Em 2008, a Organização das Nações Unidas (ONU) propôs o dia 8 de junho como o Dia Mundial do Oceano. Mas parece que a simbologia por traz desse dia não estava surtindo efeito. Um vultoso passo adicional foi dado recentemente nesse sentido pela ONU, de forma que o oceano terá mais uma grande aliada para sua transformação: a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável. Associada ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14 (“conservar e promover o uso sustentável do oceano, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável”) da Agenda 2030 da ONU, a Década do Oceano, que ocorrerá entre os anos de 2021 e 2030, irá ampliar os esforços para reverter a tendência de perda da qualidade do oceano e criar condições para seu uso sustentável.

Esse processo prevê um “chamado para ação”, para que a sociedade como um todo esteja mobilizada e atuante. O chamado para termos o “oceano que queremos” precisa ecoar amplamente. E como o oceano é um só, interconectado, temos que pensar no global ao mesmo tempo que agimos localmente. E agir significa valorizar a ciência e produzir e disseminar conhecimento sobre o ambiente marinho.

O Brasil já tem se mobilizado nesse sentido. A agenda do oceano ganhou destaque nacionalmente, especialmente após a Conferência das Nações Unidas sobre os Oceanos, realizada em 2017 em Nova Iorque. Além dos arranjos institucionais e das ações que já existiam no país, foi possível ampliar as ações em alguns temas, como adaptação da zona costeira às mudanças climáticas e lixo no mar. O Brasil tem atuado de maneira exemplar para implementação da Década do Oceano no território nacional. De fato, nem tudo está perdido.

A Década do Oceano busca produzir a “ciência que precisamos para o oceano que queremos”, ou seja, um oceano (1) limpo; (2) saudável e resiliente; (3) produtivo; (4) previsível; (5) seguro; (6) transparente e acessível e (7) inspirador e envolvente.

Para atingir cada um destes sete objetivos são necessárias diferentes ações, que cada vez mais deixam de ser facultativas e passam a ser emergenciais. Interconectadas, elas buscam criar as bases para definirmos o futuro do oceano e, consequentemente, o futuro do planeta. Vamos entender um pouco melhor o que a Década pretende.

O oceano está poluído, sujo. Esgoto, resíduos sólidos, produtos químicos, fertilizantes agrícolas, metais pesados e fármacos liberados pela urina humana são exemplos de contaminantes que acabam por chegar no mar. O oceano que queremos tem as fontes de poluição identificadas e reduzidas ou eliminadas. Para tanto, existem vários caminhos, como ampliar a rede de coleta e tratamento de esgotos, que no Brasil atende apenas 50% das moradias, fomentar a economia circular e fortalecer órgãos e procedimentos ambientais, como o licenciamento ambiental.

Um oceano saudável e resiliente tem a uma biodiversidade protegida e relações equilibradas entre os organismos e o ambiente. Portanto, o oceano que queremos possui ecossistemas marinhos conhecidos, protegidos, restaurados e gerenciados. Uma das lacunas para enfrentar esse problema é o conhecimento sobre a estrutura e o funcionamento dos diferentes ecossistemas e os impactos que eles vêm sofrendo, a fim de implementar ações que garantam sua proteção. Aumentar o número de áreas marinhas protegidas é uma ação fundamental e urgente.

Inúmeras atividades econômicas sustentáveis podem ser desenvolvidas no mar, incluindo a geração de energia limpa e renovável com baixa emissão de carbono, maricultura, biotecnologia e serviços para navegação. Muitas dessas abordagens que dialogam com o desenvolvimento tecnológico e inovação. Mas a nossa possibilidade em desenvolver a economia do mar pode ser comprometida pela poluição e pela perda de saúde e resiliência do oceano, o que tem gerado, por exemplo, o colapso da pesca. O oceano que queremos é, portanto, um ambiente produtivo que apoia o fornecimento de alimentos e uma economia oceânica sustentáveis.

Planejar o futuro envolve prever as mudanças que ocorrerão no oceano. Essas transformações são causadas por fenômenos naturais, pelas ações humanas e pelas mudanças no clima. Para tanto, fenômenos e processos físicos, químicos e biológicos precisam ser mais bem conhecidos. O oceano que queremos deve ser um ambiente previsível, compreendido pela sociedade, a qual pode responder às mudanças e às suas consequências. Uma compreensão integrada e uma previsão mais precisa dos fenômenos oceânicos, como tempestades, inundações ou mesmo o desaparecimento de estoques pesqueiros, apoiarão uma gestão mais eficiente. 

O oceano que queremos é seguro, no qual a vida e os meios de subsistência são protegidos dos perigos relacionados a ele. Assim, a correta avaliação e previsão desses perigos, assim como a formulação de respostas adaptativas, são necessárias para reduzir os riscos de curto, médio e longo prazo à vida, às propriedades e às atividades humanas em terra e no mar.

Garantia de acesso às informações sobre o oceano é fundamental para o avanço no conhecimento. O oceano que queremos é acessível com disponibilidade equitativa de dados, informações, tecnologia e inovações. Para tanto, também é necessário que a transferência de tecnologia seja fomentada, para fortalecer e emancipar países emergentes economicamente e cientificamente. 

Enquanto não trouxermos para a sociedade uma discussão crítica sobre estes assuntos, não teremos mudanças significativas na condição em que o oceano se encontra. Para tanto, temos que promover a alfabetização sobre o oceano e encurtar a distância entre cidadãos, cientistas e tomadores de decisões. O oceano que queremos é, portanto, inspirador e envolvente, devendo ser compreendido e valorizado pela sociedade quanto ao seu papel no bem-estar humano e na promoção do desenvolvimento sustentável.

De fato, para atacar os desafios que a busca da sustentabilidade do oceano nos coloca e aproveitar o momentum dessa agenda internacional, é necessário ampliar o entendimento da sociedade em relação ao oceano. É fundamental, portanto, que sejam ampliadas significativamente as ações de comunicação e divulgação, tanto do oceano quanto do conhecimento científico gerado. Para tanto, os princípios da cultura oceânica (do inglês, Ocean Literacy), já bastante amadurecidos e internalizados em países como Estados Unidos, Irlanda e Portugal, também precisam ser disseminados, em especial, no Brasil.

Uma estratégia é inserir o tema nos currículos do ensino fundamental e médio no país. Isso demanda uma articulação com o Ministério da Educação e com as Secretarias Estaduais de Educação, para que a temática possa ser debatida e internalizada como oportunidade para tratar os princípios e competências trazidos pela Base Nacional Comum Curricular.

De forma semelhante, mostra-se altamente importante uma atuação ampla e integrada na formação de professores, inclusive para desenvolver estratégias para abordá-la em sala de aula, considerando as mais diversas realidades no país. Assim, dado o caráter transversal que o oceano tem, a internalização do tema nos cursos de licenciatura mostra-se premente, independentemente da área específica de formação do professor: biologia, geografia, física ou química; uma vez que todas as disciplinas interagem de uma forma ou de outra com o oceano.

Outra frente corresponde ao papel que a mídia, nas mais variadas formas e veículos, pode ter na comunicação sobre o oceano. Esse tema frequentemente aparece nos meios de comunicação, mas não necessariamente de uma forma apropriada. Abordagens sensacionalistas despertam a atenção das pessoas, mas não aprofundam o entendimento do funcionamento e da importância do oceano. Um exemplo é a pirotecnia no tratamento do tema lixo nos mares. Outro é a falta de clareza na relação entre o oceano e as mudanças no clima. Portanto, é fundamental que essa temática ganhe mais espaço e um novo enredo na mídia nacional, que venha a fortalecer o jornalismo e a divulgação científica.

Uma quarta frente deve considerar a formação de outros profissionais que lidam direta ou indiretamente com o oceano, como promotores e procuradores de justiça e juízes. Esses, dentre outras atribuições, são responsáveis pelo cumprimento das leis ambientais e pela garantia dos interesses difusos, ou seja, da sociedade. À medida que eles venham a conhecer as peculiaridades do oceano e a entender sua importância, mais condições o país terá de zelar por esse ambiente.

Por fim, é necessário atuar fortemente na formação de profissionais competentes, engajados e éticos para lidar diretamente com essa temática, tanto em nível de graduação quanto pós-graduação. Essa ação demanda esforços articulados, como aqueles que vêm sendo feitos pelo Programa de Formação de Recursos Humanos em Ciências do Mar, ligado à Comissão Interministerial para os Recursos do Mar. Mas há também a necessidade de uma formação adicional, diferenciada e voltada para uma inserção e um posicionamento político desses profissionais. Nesse sentido, não basta que esses profissionais compreendam a estrutura e o funcionamento do oceano. Eles devem compreender a relação entre o oceano e a sociedade e contribuir para promoção do desenvolvimento sustentável. Assim, para avançar nessa meta, é necessário desenvolver o conhecimento científico, aproveitando, estimulando e coordenando os esforços de pesquisas interdisciplinares sobre o mar e suas relações com a sociedade.

A Década do Oceano pretende que novos conhecimentos sejam gerados e que eles sejam compartilhados e utilizados pela sociedade. É um grande desafio que teremos que superar. Caso contrário, teremos que começar a planejar a proposta de um Século para a busca da sustentabilidade do oceano. Só resta saber se o oceano, e a humanidade, aguentam esperar tanto…

Alexander Turra

Cátedra UNESCO para Sustentabilidade do Oceano

Instituto de Estudos Avançados e Instituto Oceanográfico

Universidade de São Paulo

Colaboraram: Tássia Biazón e Monique Rached