| Políticas públicas e informações 
              estatísticas: a informação estatística 
              como política pública Luiz 
              Henrique Proença Soares
 O jogo 
              de palavras que dá título a este breve artigo visa 
              atrair a atenção e o interesse dos leitores para alguns 
              aspectos relativamente pouco discutidos do uso das informações, 
              envolvendo a oferta e a demanda de um tipo específico - as 
              informações estatísticas - produzidas por 
              agências públicas voltadas para esse fim, configurando 
              assim o campo das estatísticas públicas ou 
              estatísticas oficiais1: 
              trata-se das condições institucionais de sua produção, 
              envolvendo a configuração da oferta e a captação 
              da demanda, à luz das transformações por que 
              vem passando o funcionamento do setor público no Brasil. 
               Não 
              nos deteremos aqui na demonstração do quão 
              importante são as informações, de um modo geral, 
              para as atividades humanas nos tempos em que vivemos. A ponto de 
              que mal nos damos conta do uso que delas fazemos em nossas vidas 
              quotidianas. O mesmo ocorre com organizações mais 
              complexas, como empresas e governos, em que se supõem como 
              correntes as práticas da racionalidade, do controle, da fundamentação 
              das escolhas e da transparência, e que têm, portanto, 
              seus processos decisórios mais e mais assentados sobre a 
              consulta e análise de informações de variada 
              natureza2.  Assim, 
              também as políticas públicas, em todos os domínios 
              de intervenção do estado, necessitam e vêem, 
              de fato, crescentemente, se apoiando em informações 
              como insumo básico para o seu desenho, acompanhamento, avaliação 
              de impactos e de resultados e eventuais correções 
              de curso.  Atribui-se 
              ao pesquisador alemão Aschenwall (1719-1772) a criação 
              da palavra Estatística, entendida como ciência 
              do Estado, que permitia ao governante obter um quadro mais objetivo, 
              porque traduzido em cifras (e não em relatos textuais), dos 
              fatos concernentes aos seus domínios. Logo essa atividade 
              passou a ser desenvolvida por agências cada vez mais especializadas, 
              constituídas no seio do aparelho de Estado, envolvendo a 
              produção de normas de classificação 
              e ordenamento que permitissem a comparabilidade das informações 
              e uma certa estabilidade no tempo, e de técnicas e metodologias 
              de trabalho que ensejassem a produção de cifras cada 
              vez mais precisas em relação à realidade que 
              se pretende mensurar. Credibilidade e legitimidade passaram a ser 
              características fundamentais a serem perseguidas, tanto pelas 
              estatísticas como pelas agências que as produzem, sob 
              pena de, ausentes tais atributos, umas e outras perderem completamente 
              o sentido e a própria razão de serem. Competência 
              técnica e isenção constituem objetivos permanentes 
              para esse tipo de entidade. Ao 
              mesmo tempo, expandiu-se para fora dos limites do aparelho de Estado 
              o interesse e a pressão pelo conhecimento dos fenômenos 
              sócio-econômicos e demográficos investigados, 
              fazendo com que a informação estatística passasse 
              a ser demandada por vários segmentos da sociedade, em ritmos 
              historicamente variados, mas muito associados ao fortalecimento 
              do Estado de direito, liberal e moderno3. 
               Mas, 
              afinal, o que são as estatísticas? Apresentamos abaixo 
              duas das muitas aproximações possíveis, e que 
              muito interessam ao que se quer aqui discutir:  1) 
                  "As estatísticas são o resultado da observação. 
                  A estatística nos permite obtê-los e tratá-los, 
                  o que nos faz constantemente esquecer que os fatos numéricos 
                  não provêm de uma simples operação 
                  de medida.  Todo 
                  mundo sabe que os ‘fatos’ são construídos e que 
                  a observação é um processo de definição 
                  do objeto.(...) As 
                  estatísticas não refletem a realidade, refletem 
                  o olhar da sociedade sobre si mesma." E, 
              mais adiante, ainda o mesmo autor: "A 
                  comensurabilidade não é uma propriedade dos objetos, 
                  mas uma qualidade que lhes atribui o observador."4 2) 
                  "...as informações estatísticas 
                  intentam expressar, na linguagem universal dos números, 
                  múltiplos organizados, sempre a partir de algum princípio 
                  de equivalência previamente estabelecido, contribuindo 
                  distintamente para tornar o mundo ausente e distante, desconhecido, 
                  pensável et pour cause governável, o que 
                  quer dizer que se nos apresentam a um só tempo como instrumentos 
                  de saber e de poder. Dessa forma, a informação 
                  estatística se oferece de modo muito especial à 
                  ação dos que governam, entendendo-se por governar 
                  a capacidade de alguns agirem sobre outros (coletividades), 
                  o que, de certa forma, todos têm, ainda que em formas 
                  e conteúdos diferentes, mormente no tempo presente, sob 
                  o renascer do liberalismo, em que as autonomias decisórias 
                  parecem ter atingido uma descentralização ou desconcentração 
                  administrativa e política jamais vista antes5. 
                   Para 
              irmos mais diretamente ao ponto que gostaria de ressaltar, os trechos 
              acima reproduzidos deixam claro que o processo de produção 
              das estatísticas está longe de ser algo neutro e objetivo. 
              Ao contrário, desde a escolha dos temas a serem investigados 
              até os conceitos e muitos outros aspectos metodológicos 
              da produção de estatísticas públicas, 
              tudo é produto de escolhas feitas pelo "observador". 
               Certamente 
              que mais de um século de produção sistemática 
              de estatísticas por agências especializadas em todo 
              o mundo ocidental acabou produzindo um rol de atividades mais ou 
              menos comuns a vários países. Essa convergência 
              tem sido ainda mais acentuada com o avanço simultâneo 
              do progresso técnico das comunicações e da 
              globalização, que facilita o acesso e intensifica 
              a necessidade de dispor-se de estatísticas comparáveis 
              entre as diversas nações, para tornar o mundo ausente 
              e distante, desconhecido, pensável et pour cause governável. No 
              entanto, restam às agências produtoras largos espaços 
              de manobra, tanto na composição de suas agendas de 
              pesquisas como no encaminhamento dos debates metodológicos 
              sobre as formas como estas são produzidas, o que exige tanto 
              maiores atenções quanto mais aumentam a demanda e 
              o uso de informações, especialmente das estatísticas 
              públicas. No 
              Brasil as estatísticas públicas são produzidas 
              por um conjunto de entidades, das quais a mais importante é 
              o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, 
              que é a agência nacional coordenadora do Sistema Estatístico 
              Nacional e o maior produtor de estatísticas sobre os mais 
              variados aspectos sócio-econômicos e demográficos 
              do país. O IBGE é complementado em sua missão, 
              por agências estaduais extrememente diversificadas em suas 
              atividades e recursos técnicos, existentes na maior parte 
              dos estados, das quais as mais conhecidas são: a Fundação 
              Economia e Estatística do Rio Grande do Sul, o Ipardes no 
              Paraná, a Fundação Seade em São Paulo, 
              o Cide no Rio de Janeiro, a Fundação João Pinheiro 
              em Minas Gerais, o Instituto Jones dos Santos Neves no Espírito 
              Santo, a SEI na Bahia, a Fundação Joaquim Nabuco em 
              Pernambuco, o Iplance no Ceará, o Idesp no Pará e 
              outros. Em quase todos os casos, tratam-se de agências públicas, 
              ligadas à área de planejamento dos governos - federal 
              no caso do IBGE e estaduais nos demais.  De 
              modo geral, ao longo das últimas décadas pouco tem 
              sido feito no sentido do estabelecimento de mecanismos e instâncias 
              sociais de formulação de demandas e de acompanhamento 
              qualitativo da produção de estatísticas.  Do 
              lado das demandas governamentais – lembremo-nos de Aschenwal - as 
              atividades de planejamento público passaram, nos últimos 
              vinte anos, a ser menos articuladas e menos sistematizadas e mais 
              voltadas para ações de curto prazo. A democratização 
              do Estado no Brasil também resultou, lamentavelmente, em 
              fragmentação das atividades setoriais, apoiadas em 
              racionalidades próprias e interesses de grupos específicos, 
              sem um referencial estratégico capaz de estruturar suas ações, 
              restringindo-se as abordagens transversais a algumas iniciativas 
              que visaram, nos últimos anos, incentivar um desempenho gerencial 
              mais eficaz dos principais programas de ação governamental. Por 
              outro lado, o aumento (tão real quanto difuso) do interesse 
              pelas informações estatísticas do lado da sociedade 
              – aqui incluída a comunidade acadêmica - não 
              encontrou, a não ser muito episodicamente, formas de expressar 
              suas demandas em termos de informações, de participar 
              das discussões metodológicas concernentes à 
              sua elaboração e de externar suas preferências 
              quanto às formas de disseminação e acesso às 
              informações existentes.    Como 
              unidades vinculadas a governos, as agências produtoras de 
              estatísticas vêm, em geral, sofrendo as consequências 
              da persistente crise de financiamento do setor público. As 
              respostas a essa situação têm sido variadas. 
              Downsizing, o puro e simples depauperamento e até 
              mesmo a extinção de agências produtoras e/ou 
              disseminadoras de informações têm sido algumas 
              das respostas produzidas.  Em 
              outros casos, resolveu-se sair em busca de receitas próprias, 
              elegendo-se como "clientes" possíveis os próprios 
              órgãos da administração pública 
              e as instituições de financiamento de pesquisas, como 
              forma de preservar, e até mesmo expandir as atividades das 
              agências produtoras. Foi este o caso da Fundação 
              Seade em São Paulo, que nos últimos oito anos passou 
              de irrisórios 2 ou 3% para cerca de 50% de suas despesas 
              obtidos através de contratos e convênios, complementando-se 
              com isso as dotações orçamentárias específicas, 
              provenientes do Tesouro, que permaneceram praticamente estáveis 
              no período.  Se 
              esse pragmatismo tem apresentado a indiscutível virtude de 
              permitir a sobrevivência da instituição e mesmo 
              o seu fortalecimento, pela necessidade de adequação 
              das atividades e produtos objeto dos contratos, por outro acabou 
              também por fornecer resposta ainda bastante incompleta à 
              ordem anterior de inquietações aqui expressas, a saber, 
              a composição da agenda de pesquisas da entidade produtora 
              de estatísticas, que passa a ser determinada em grande medida 
              pela demanda solvável desse "mercado" fragmentado 
              e instável.  Como 
              disse no início deste artigo, visava-se aqui tão somente 
              chamar a atenção do leitor interessado no tema, como 
              produtor ou como usuário de informações estatísticas, 
              para os rumos que essa atividade vem tomando e para suas articulações 
              com inúmeros outros aspectos ligados à função 
              pública e ao exercício da cidadania. Por certo, os 
              temas aqui elencados são polêmicos e comportam muita 
              discussão. Haverá desde quem defenda o status quo, 
              seja pela convicção de que o mercado, mesmo com essa 
              abrangência restrita, será o melhor formulador das 
              demandas, seja por reconhecer a inevitabilidade das restrições 
              do financiamento público, até quem propugne uma completa 
              reformulação desse quadro, mesmo que, para isso, deva-se 
              questionar princípios mais gerais de funcionamento do governo. 
               Muitas 
              possibilidades de desdobramentos são possíveis a partir 
              da situação acima configurada. Acredito que qualquer 
              que seja a resultante desse processo, não poderá prescindir 
              da participação dos segmentos organizados diretamente 
              vinculados ao tema, de representantes da sociedade mais ampla com 
              interesses difusos em matéria de informações 
              e de definições governamentais quer quanto às 
              suas prioridades como usuário de informações, 
              quer enquanto financiador da produção de informações 
              para o uso da sociedade, já que dificilmente essa atividade 
              encontrará seu custeio, ainda que parcial, pelos caminhos 
              do mercado externo ao setor público. Trata-se, portanto, 
              da formulação, pelos governos federal, estaduais e 
              nos municípios de maior porte, assim como nas regiões 
              metropolitanas, de políticas públicas de produção, 
              tratamento, análise e disseminação de informações 
              estatísticas, como caminho para dotar outras políticas 
              públicas de maior eficácia e como contribuição 
              para o fortalecimento da democracia em nosso país. Luiz 
              Henrique Proença Soares é sociólogo, pós-graduado 
              em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Urbanismo de 
              Paris, Diretor Adjunto de Produção de Dados da Fundação 
              SEADE/SP. As opiniões aqui emitidas são de exclusiva 
              responsabilidade do autor, não engajando a instituição 
              a que se vincula. Notas 
                1. 
              "'Estatística pública', ou 'estatística 
              oficial', refere-se à informação estatística 
              produzida pelas agências estatísticas do governo - 
              órgãos de recenseamento, departamentos de estatística 
              e instituições semelhantes. Elas são de especial 
              interesse para o sociólogo de ciência porque são 
              produzidas em instituições que são, simultaneamente, 
              centros de pesquisa, envolvendo, portanto, valores científicos 
              e tecnológicos, além de perspectivas e abordagens 
              típicas dos seus campos de investigação - e 
              instituições públicas ou oficiais sujeitas 
              às regras, valores e restrições do serviço 
              público. Os seus produtos - números relativos a população, 
              renda, produto nacional, urbanização, emprego, natalidade, 
              e muitos outros - são publicados na imprensa, utilizados 
              para apoiar políticas governamentais e avaliar os seus resultados, 
              e podem criar ou limitar direitos e benefícios legais e financeiras 
              para grupos, instituições e pessoas específicas. 
              (Schwartzman, S., Legitimidade, controvérsias e traduções 
              em estatísticas públicas, Dezembro, 1996, mimeo.) 
              [voltar] 2. "...com os números procura-se fazer 
              com que as ações e as decisões sejam racionais, 
              mais exatamente, impessoais; tudo se passa como se os números 
              tivessem decidido, ou ainda, tudo se passa como se diante de certos 
              números todos tomassem as mesmas decisões ou tivessem 
              as mesmas opiniões. Na verdade, embora os números 
              sejam peças chaves das tomadas de decisão, não 
              contêm em si mesmos as decisões, isto é, não 
              conseguem dispensar os decisores de assumirem os ônus das 
              escolhas, em decorrência os ônus das renúncias 
              (pois, quem escolhe, renuncia, o que é de fato o lado difícil 
              da decisão). (Senra, N.C., Política de informação 
              estatística, instrumento de regulação para 
              / pela coordenação, Rio de Janeiro, 2000, mimeo) [voltar]
 3. veja-se, a esse respeito Schwartzman, op. cit.). 
              [voltar]
 4. Besson, J.L. A ilusão das estatísticas, 
              na publicação de mesmo nome, organizada pelo mesmo 
              autor, Editora Unesp, São Paulo, 1995, pp 18-19. [voltar]
 5. SENRA, op. cit. [voltar]
 6. A exceção á a Fundação 
              Joaquim Nabuco, que tem abrangência e objetivos regionais 
              e vincula-se ao Ministério da Educação. [voltar]
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