A saúde pública espera vaga na UTI: coronavírus e a luta de classes

Por Inácio de Paula

Para os pesquisadores, apesar da tentativa de camuflagem por meio da retórica “estamos todos juntos”, a expansão da covid-19 se mostra uma pandemia de classe, de gênero e de raça. 

Coronavírus e luta de classes é um livro produzido pelos pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Mídia e Cotidiano, da Universidade Federal Fluminense (PPGMC-UFF). É uma coletânea de  seis textos que enfatizam o funcionamento de acesso desigual às medidas de saúde em tempos de pandemia. Uma narrativa científica construída através de olhares de nacionalidades distintas e conduzida pelo pensamento marxista. 

Ao se desdobrar em uma discussão multidisciplinar, a obra reflete sobre o efeito do recorrente aparecimento de doenças infecciosas e as tensões que isso tem provocado nas estruturas dos sistemas capitalistas, enfatizando o momento pandêmico do coronavírus. Traz para primeiro plano os pensamentos do historiador Mike Davis, do geógrafo David Harvey, do sociólogo Alain Bihr, do jornalista Raúl Zibechi e dos filósofos Alain Badiou e Slavoj Žižek.

“A crise do coronavírus é um monstro alimentado pelo capitalismo”, é o que afirma Mike Davis por meio do título do seu estudo. O historiador se prende ao cenário estadunidense, mas realiza arranjos entre acontecimentos que ocorreram em outros espaços e em outras temporalidades. São fios impregnados de história que ajudam a compreender a situação de (sobre)vida da humanidade.

Davis explica que momentos assim demonstram nitidamente os distintos grupos sociais e duas questões se destacam na sua pesquisa. Ele chama atenção para a monetização do direito de viver e aponta para o exclusivo interesse da indústria farmacêutica no lucro e não no benefício à saúde, uma questão que reaparece em seguida no estudo do geógrafo David Harvey.   

Segundo Mike Davis, essas fronteiras ficam mais evidentes ao passo que possuidores de planos de saúde têm mais chance de acesso ao tratamento e à cura, quando comparados aos que disputam vagas públicas e gratuitas, condição para permanecerem vivos. Ao encontro da insuficiência do sistema comum de saúde, o sociólogo Alain Bihr exemplifica, no terceiro texto da obra, o hospital público como vítima de um asfixiamento financeiro e de uma medicina liberal.

O historiador ressalta o empenho da indústria farmacêutica em produzir substâncias lucrativas, como as que tratam da impotência sexual masculina, em detrimento da produção de antibióticos e antivirais. O autor acentua o estrondo capitalista em busca exclusivamente do lucro como o mesmo som que silencia mortes por doenças emergentes e, para ele, o exemplo seria os casos relacionados à covid-19.

No texto seguinte, “Política anticapitalista em tempos de covid-19”, David Harvey assegura que os vírus estão por aí e mudam constantemente, mas o perigo que oferecem e como afetam os cidadãos depende mais dos comportamentos assumidos pelas sociedades. Do ponto de vista econômico e demográfico, o teórico britânico esclarece que os maiores impactos são decorrentes de rachaduras preexistentes na casca que protege a humanidade, ou seja, seu próprio funcionamento.   

Para o geógrafo, dois aspectos devem ser considerados no processo de circulação viral. Primeiro que as condições ambientais proporcionam a intensidade das mutações e, segundo, que a potencialidade de transmissão assume características peculiares, ou seja, dependente das condições do espaço.

Em consonância com que é dito por Harvey, o sociólogo Alain Bihr pondera que o atual panorama pandêmico é excepcional e, portanto, ele seria inconsequente se formulasse questões gerais. Em “França: pela socialização do aparato saúde, o sociólogo francês reforça que a saúde precisa ser enxergada e tratada como um bem público e que tal situação desmonta a ideia de que todos os cidadãos possuem e devem administrar o seu “capital de saúde”. Ele relaciona o bem-estar do indivíduo à salubridade da estrutura social.

Em “Coronavírus: a militarização das crises, o jornalista Raúl Zibechi explana que há uma legitimação de vigilância, militar e sanitária, sustentada pelo modelo panóptico. Historicamente, segundo o uruguaio, pessoas infectadas eram postas em quarentena – e não pessoas saudáveis, o que muda o modo de funcionamento das sociedades. Na China, por exemplo, a inspeção se ramifica perpassando fronteiras e se sustenta pela tecnologia, mas não exclui as brigadas formadas por moradores voluntários.

“Sobre a situação epidêmica”, penúltima parte do livro, o filósofo Alain Badiou contesta o que pensa o sociólogo Alain Bihr. Para ele, não há nenhum acontecimento extremamente novo agora, mas uma retomada que aperta mais uma vez os laços entre a saúde e o comportamento humano, mas que não assegura um estreitamento ou uma solidificação dos elos.

Badiou critica a negligência das autoridades em não terem previsto a pandemia, uma vez que era algo sinalizado pela sars-1, e não ter investido em pesquisas para a chegada deste momento. Segundo ele, a medicina mundial poderia agora usufruir dessas ferramentas no combate ao sars-2. A partir desse posicionamento do filósofo é possível entender que precaução não quer dizer necessariamente prevenção.

Como resposta à essa situação, o filósofo Slavoj Žižek pressupõe que a sociedade possa se ressignificar pelos gestos de solidariedade e cooperativismo mundial. Inspirado na produção cinematográfica Kill Bill: volume 2, Žižek intitula seu estudo de “Um golpe como o de ‘Kill Bill’ no capitalismo”. Ele descreve uma cena final do filme em que Beatrix mata Bill com o golpe mais poderoso e mortal das artes marciais, e relaciona a mitologia dessa luta à pandemia – e a parafraseia como a “técnica de cinco pontos para explorar um coração”.

Toda a obra é uma produção das ciências humanas e não se resume à tríade doença, tratamento e cura, pois escapa da saturação. Uma vez apropriada pela sociedade, contribui para que ela compreenda os (novos) movimentos feitos pela humanidade em momentos pandêmicos. Uma problemática que desestabiliza diversos campos do social e, como frisa o filósofo Alain Badiou, flagra a contradição entre econômico e político.

O download está disponível aqui.

Inácio de Paula é formado em jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria. Cursa especialização em jornalismo científico e mestrado em divulgação científica e cultural (Labjor/Unicamp).