Breves considerações sobre o mercado futuro de gás lacrimogêneo

Por Artur Araújo

Sociedades hiperdualizadas desequilibram catastroficamente as condições de exercício da democracia política, que tem um “limite máximo de elasticidade” frente ao nível de desigualdade entre os eleitores. Só podem se manter coerentes com crescente apelo ao gás lacrimogêneo, às cercas eletrificadas, aos capacetes, aos escudos, aos canhões de água e aos cassetetes. Como frisava Karl Polanyi, foi o século liberal britânico, com pleno domínio da alta finança sobre tudo e todos, que resultou em duas guerras globais, separadas no tempo por profunda crise no centro do sistema.

Mantida por mais alguns anos a hegemonia da fração financista sobre os demais setores do capital, um bom consultor de investimentos recomendará, com convicção e sucesso, a concentração de portfólios em opções de bens como cassetetes, canhões de água, escudos, capacetes, cercas eletrificadas, gás lacrimogêneo e outros itens de controle de distúrbios civis, via contratos em bolsas de mercadorias e futuros.

Também orientará seus clientes a reforçar a carteira de ações com papéis de empresas privadas de segurança patrimonial, vigilância eletrônica, administração de presídios e blindagem de veículos.

Se tais produtos financeiros, por grosseira falha de mercado, não estiverem disponíveis, imediatamente sugerirá aos magos do “venture capital” a incubação e futuros IPOs de iniciativas que preencham esse vácuo.

Ganhará gordas comissões em todos os casos.

Feito, aí acima, esse anúncio bombástico e distópico, truque barato de autor para ganhar atenção, vamos ao que importa e que nos foi o encomendado: algumas rápidas ideias sobre inter-relações entre desempenho econômico e solidez (ou fragilidade) democrática.

Desde a década de 1970, o capitalismo passa por uma contínua movimentação de placas tectônicas, no que se convencionou chamar de “revolução neoliberal”. Sucedendo os “trinta gloriosos” anos do pós-guerra – em que o keynesianismo como marco teórico e o Estado de bem-estar como meta político-social dominaram o pensamento e ação dos dirigentes capitalistas por todo o mundo –, a recuperação ideológica, política e econômica do laissez-faire de matriz oitocentista deslocou com violência inaudita o Estado, as políticas públicas, as redes de proteção social e saíram de cena instrumentos de controle de circulação internacional de capitais, abrindo-se uma era de especulação global.

Até mesmo ideias-força como “coletivo”, “comum”, “social”, “solidário”, foram substituídas, inclusive no senso comum de multidões, pelo primado do “indivíduo”, da “identidade”, do “privado” e do “mercado” (neste último caso, um ente quase-vivo).

Prisioneiro de sua necessidade intrínseca de acumulação exponencial – e liberado dos freios que o pacto social anterior lhe impunha – o capital avançou celeremente sobre dois elementos fundamentais de equilíbrio social: o preço direto e indireto do trabalho humano (salários, direitos sociais associados ao trabalho e serviços públicos universais e gratuitos, principalmente) e a organização defensiva dos assalariados (com destaque para sindicatos, entidades associativas, partidos políticos, processos eleitorais, meios de comunicação não-oligopolizados).

E o fez por razões eminentemente racionais: maximização de lucros via redução de custos diretos (os salários) e de tributação (o “estado mínimo” é muito mais “barato”). Isso foi acompanhado de redução do poder de intervenção e defesa dos que passariam a ser mais espoliados e que, também, reforçavam “barreiras à acumulação”, como a da preservação do meio ambiente, do acesso social aos bens naturais e da qualidade mínima de vida extra trabalho.

A megacrise de 2008 demonstrou empiricamente uma falha estrutural do sistema: a acumulação preponderante de capital fictício, em detrimento da acumulação pela via da produção e consumo de bens e serviços, é inerentemente instável e sujeita a cataclismos imprevisíveis, pois baseada em “crença nos valores dos ativos” e não em seu valor real.

No entanto, rapidamente, a pensata neoliberal se recuperou do choque e retornou ao comando do espetáculo, inclusive aguçando alguns de seus aspectos mais deletérios em um frenesi exuberante e irracional.

Concomitante ao domínio das finanças ocorreu um processo acelerado de progresso material – a redução estrutural da necessidade de trabalho humano direto na produção, provocada pela crescente automação. Dadas as condições reais de comando das sociedades capitalistas, a dispensa de força de trabalho não resulta, como poderia e deveria ser, em diminuição da carga laboral individual e melhoria da vida cotidiana. Ao contrário, sua consequência mais visível é o desemprego endêmico, já que os ganhos de produtividade são apropriados exclusiva e privadamente como lucros empresariais ou ganhos de capital. A saída “fácil”, pregada pelo mercado, é também socialmente disfuncional: as várias modalidades de “uberização”, sem regras, direitos, barreiras defensivas e qualquer segurança de continuidade.

Autor: Edu Oliveira [https://www.instagram.com/eduoliveiraxx/]
Sociedades com os atributos acima esboçados, trazem em si algumas contradições antagônicas e explosivas:

1. Apesar de mitigado pela marcante expansão do crédito, o acesso ao consumo é fortemente decrescente, implicando sensíveis reduções de qualidade de vida, de atendimento de desejos e expectativas (inclusive as alimentadas pela propaganda dos produtores) e de vendas das empresas (o que impacta os próprios lucros e a acumulação de capital);

2. Com a redução do poder de compra dos assalariados é crescente a pressão de demanda por serviços públicos universais e gratuitos, ao mesmo tempo em que estes são muito reduzidos, ou mesmo extintos, pela pressão capitalista em favor do “estado mínimo”, da transformação dos serviços públicos em negócios privados e da redução da carga tributária sobre seus lucros;

3. A acumulação de capital pela via preferencial das finanças aguça a desigualdade social, quebrando o apelo da “próxima geração vivendo melhor do que a anterior” e o mito da “democratização da vida decente”, elementos ideológicos fundamentais para a crença dos assalariados nas “virtudes distributivas e equalizadoras” do capitalismo;

4. A hiperdualização das sociedades se torna fenômeno estrutural, criam-se dois mundos sem comunicação, sem interesses em comum, sem possibilidades de “ganha-ganha”. O fosso entre os “1%” e os “99%” se apresenta como cânion intransponível e em alargamento e aprofundamento;

5. Como o neoliberalismo opera no sentido de reduzir e eliminar todas as estruturas de organização, representação e expressão coletivas, inclusive fazendo das eleições espetáculos apolíticos de marketing, os canais formais de extravasão e resolução parcial das tensões sociais perdem poder ou extinguem-se. Essas tensões passam a se espraiar de modo cada vez mais individualizado, desordenado, desesperado e de forma extra institucional. Até marcas registradas de anomia – milícias, gangues, cultos, turbas – ganham legitimação e são naturalizadas como escoadouro das insatisfações e necessidades;

As três reações
As reações a tal estado de coisas têm diferido país a país, mas grosso modo pode-se identificar, nas economias capitalistas, três tendências principais: o muito mal denominado populismo de direita, a renascença socialdemocrata e o afogamento liberal.

O populismo de direita atende à angústia coletiva crescente pela via do reforço autoritário e da valorização da “ordem”, com flertes neofascistas, ao mesmo tempo em que esboça uma opção econômica mais intervencionista, mais estatista, marcadamente nacionalista e com ações reais no campo do emprego de massas.

Usando a tática milenar de culpar um inimigo “externo” – geralmente o imigrante ou minorias étnicas, mas também outras potências emergentes e mesmo grupos sociais internos –, busca minorar os efeitos do ultra liberalismo por meio de uma defesa do “nós, os compatriotas”. Trump nos EUA é a expressão mais conhecida dessa vertente, que também ganha corpo na Europa (Hungria, Polônia, Áustria, a França de Le Pen, o Reino Unido da Brexit, entre outros) e exerce sedução nas Filipinas de Duterte ou na Turquia de Erdogan.

A renascença socialdemocrata afirma sem rodeios seu compromisso com a democracia política ao mesmo tempo em que recupera a orientação macroeconômica “keynesiana” e se abre a alternativas instigantes, como é o caso da teoria monetária moderna (TMM), que desmonta velhas crendices acerca das finanças estatais – crendices ainda dominantes por sua alta funcionalidade para o rentismo característico da hegemonia financista –, alargando os horizontes de sustentação de políticas públicas includentes.

A candidatura de Bernie Sanders nos EUA, a renovação do trabalhismo britânico sob a liderança de Jeremy Corbyn, a France Insoumise e a Geringonça que governa Portugal com grande sucesso são manifestações positivas dessa rota.

No “resto do mundo”, o afogamento liberal se faz sentir enraizando todos os efeitos nefastos da hiperdualização e da quebra de solidariedade que são vitais para a sustentação da democracia política e de um pacto social minimamente estável. É o que se passa na América Latina, na Grécia e outros países periféricos da União Europeia e que assola África, Ásia e Oceania.

Brasil: autoritarismo moralista + ultraliberalismo e globalismo subordinado
O processo brasileiro tem aspectos de “jabuticaba” desde o advento da singularidade que foi o ascenso do bolsonarismo. Combina o autoritarismo moralista e antidemocrático do populismo de direita com os mais abertos ultraliberalismo e “globalismo subordinado”, com marcada orientação de desnacionalização e privatização generalizadas. Seus flertes com o nacionalismo são meramente retóricos, enquanto os ataques ao “outro” – sejam feministas, LGBTs, “marxistas culturais”, “esquerdistas corruptos”, a “velha política” – se firmam como esteios ideológicos de massas. Os negócios de Estado, incompreensíveis para grande parcela da população, são exibidos de modo infantilizado, recorrendo-se ao patético e errado paralelo com a gestão doméstica e familiar.

Os caminhos do populismo de direita e do afogamento liberal compartilham uma característica fatal. O primeiro de forma aberta, como proposta explícita, e o segundo como consequência inevitável da piora da vida da maioria (provocada por ele), ambos conduzem as sociedades à contínua redução da democracia, tanto no campo institucional como no dia a dia do convívio social.

Sociedades com desigualdade muito acentuada – e com tendência ao contínuo aumento da desigualdade – são sociedades em que a componente repressiva, de dominação aberta, se sobrepõe à formação de consensos pela via hegemônica. O voto, a associação, a participação, a livre expressão, têm que ser, crescentemente, subordinados ao aparato de controle e comando de um Estado cada vez menos mínimo em sua atividade repressora. A empresa privada é alçada a paradigma da eficiência e funcionalidade, trazendo implícita sua marca “desburocratizada”, ou seja, impermeável a controles públicos.

Os condomínios fechados cercados por multidões de “bárbaros miseráveis” – vitimados pela soma do ataque liberal aos salários e serviços públicos com a reorganização produtiva em curso – só se mantêm incólumes se ao aparato privado de segurança privada que contratam adicionar-se o emprego, pelo Estado, dos produtos e serviços recomendados pelo consultor que estreou em nosso parágrafo de abertura.

Potencial explosivo
A percepção da crise antidemocrática que se forma – e de seu potencial explosivo ou distópico – não é mais um atributo exclusivo dos críticos do liberalismo pela esquerda.

Quadros intelectuais e lideranças empresariais umbilicalmente ligados à revolução neoliberal cada vez mais vocalizam alertas. De economistas de grande prestígio, como Stiglitz e Krugman, aos vinte bilionários estadunidenses que defendem o imediato aumento da tributação sobre suas próprias riquezas, passando até pelas recentes “heresias” de um liberal histórico como André Lara Rezende aqui no Brasil, há uma crescente onda de medo das consequências do liberalismo, seja pela aceleração da formação de crises sistêmicas (como a de 2008), seja por sua componente de ampliação irreversível da desigualdade que inviabiliza a própria democracia liberal.

Um projeto global de sociedade que não destrua a democracia implica o abandono do liberalismo econômico, pois, comprovadamente, a polarização que provoca, como efeito da acelerada ampliação das desigualdades sociais – e, mais diretamente, pela acelerada perda de qualidade de vida das maiorias – impede o exercício da via formalmente consensual expressa nos pactos democráticos.

Sociedades hiperdualizadas desequilibram catastroficamente as condições de exercício da democracia política, que tem como que um “limite máximo de elasticidade” frente ao nível de desigualdade entre os eleitores. Só podem se manter coerentes com crescente apelo ao gás lacrimogêneo, às cercas eletrificadas, aos capacetes, aos escudos, aos canhões de água e aos cassetetes. Como frisava Karl Polanyi, foi o século liberal britânico, com pleno domínio da alta finança sobre tudo e todos, que resultou em duas guerras globais, separadas no tempo por profunda crise no centro do sistema.

Dado o horror inumano que tais sociedades configuram, até mesmo para parte dos que são seus privilegiados, está em pauta um desafio: garantir a democracia e o convívio social minimamente para além do “estado de natureza” através da troca da pauta de produção e apropriação social do excedente por ela gerado.

Os mercados futuros lucrativos, que podem lastrear um futuro viável e vivível, têm que ser os de alimentos, vestuário, materiais de construção, fármacos, equipamentos de transporte de massas, produção de energia limpa, serviços de lazer, recursos educacionais, disseminação de arte e cultura.

Os ganhos de produtividade advindos do progresso tecnológico têm que ser socialmente apropriados e transformados em uma miríade de novas ocupações, decentemente remuneradas, para todos os que vão se livrando da servidão do trabalho físico e que não podem (nem precisam) ser atirados ao limbo do desemprego e do subconsumo.

A democracia e uma vida minimamente digna de ser vivida dependem de uma reorientação econômica profunda que leve a erro estratosférico a indicação de opções em mercado de futuros de gás lacrimogêneo.

Artur Araújo é consultor em gestão pública e privada, ex-diretor da Embratur e co-coordenador do Projeto Cresce Brasil da Federação Nacional dos Engenheiros. Cursou na Escola Politécnica da USP entre 1977 e 1981.