É armadilha entoar hinos à democracia sem definir a qual democracia se refere

Por Roberto Romano

[na foto, o intelectual italiano Luciano Canfora, autor de A democracia – História de uma ideologia]

A democracia é uma palavra embreagem, no sentido a ser extraído de E. Benveniste: surge quando o discurso não tem condições de seguir uma linha lógica e factual consequente. Aí, a “embreagem” faz a narrativa seguir a marcha, deixando de lado terrenos perigosos, muito perigosos. Saliento neste artigo o elo entre as formas democráticas e as lideranças, algo que preocupa os analistas dos autoritarismos eleitos nos EUA, na Europa e no Brasil. Tal assunto mereceria um grande simpósio internacional e brasileiro, mas ele fica para quando a universidade assumir um papel de vanguarda na luta pela clarificação das falas políticas, uma das insuspeitadas fontes da tirania que surge, ameaçadora, no horizonte planetário.

O vocábulo “democracia”, à semelhança de inúmeros termos conexos, apresenta intensa polissemia desde o instante em que saiu da forja discursiva. Ele serviu, serve e servirá para indicar ou encobrir efetividades as mais conflitantes. Regimes políticos sanguinários surgem na história ostentando o adjetivo “democrático” mesmo quando o povo geme sob repressões, torturas, exílios, vetos ao livre pensamento e à sua expressão. É mesmo possível retomar aqui o dito de Madame Roland sobre a liberdade: “Democracia, quantos crimes foram cometidos em teu nome!”

Teóricos como Carl Schmitt afirmam que todo o seu pensamento, que justifica o nazismo, nada mais é do que… democracia “realmente entendida”. Impérios como o da Inglaterra predadora do mundo (“Perfidious Albion”) usaram a palavra para justificar cruentos golpes de Estado. É o caso do cometido em prol de seus interesses petrolíferos no Irã de Muhammad Mossadegh [1]. Depois instala-se a monarquia que manteve durante décadas o país sob o domínio inglês e norte-americano. A frente “ocidental” aliada de Pahlavi foi mantida até a proclamação da República iraniana. Esta última, por sua vez, colocou o poder em mãos de sacerdotes cujo entendimento político é no mínimo autoritário. Os agentes do FBI sob o comando de Hoover diziam combater em prol da ordem democrática, mas as bases de Estado de direito foram solapadas pelo macarthismo nos próprios EUA do mesmo período.

Mais exemplos exigiriam milhões de caracteres com espaços, apenas para nomear os atos e fatos ligados ao termo “democracia”. Nas próximas linhas vou me deter apenas na tarefa de indicar um livro que trata o problema ao expor o quanto há de equívocos, má-fé e propaganda no uso da palavra em toda ordem política. Refiro-me ao trabalho de Luciano Canfora: A democracia – História de uma ideologia [2]. Canfora é reconhecido analista da política antiga, moderna e contemporânea. Pertence ao número dos raros acadêmicos que no mundo atual assumem atitudes e teses ligadas ao pensamento progressista. Sua biografia de Cesar [3] traduzida no Brasil é um documento a ser lido quando o alvo é discutir assuntos como “populismo”, hoje tão em voga. Outro texto essencial publicado por ele também foi traduzido para nossa língua pela Editora Perspectiva: Um ofício perigoso [4] sobre os elos entre filósofos e poder, tema atualíssimo, em especial no Brasil de hoje.

Um volume essencial de sua lavra examina os conluios entre os especialistas no pensamento antigo, grego e romano – a elite intelectual – e os regimes nazistas ou fascistas que desgraçaram a Europa e o planeta no século XX [5]. Seu interesse pelos escritos de Tucídides o levou a publicar vários livros, sobretudo sob o ângulo do imperialismo, o que reverbera em nossos dias dominados por indivíduos como Trump, Bolsonaro e quejandos [6]. Na sua vasta e densa bibliografia encontramos títulos sobre a ordem social e política a mais recente, além de exames do pensamento revolucionário de Marx a Gramsci, intervenções diretas sobre a vida institucional da Itália, da Europa, do mundo. A consulta aos seus escritos serve como guia seguro para discutir dilemas do mundo civil à luz de um saber prudente e seguro. Sua trilha segue a perspectiva das Luzes e das transformações socialistas ocorridas no século XX. Dificilmente ele perde o senso crítico ou tomba em armadilhas ideológicas. Por tais motivos escolhi apresentar a sua poderosa crítica ao uso da palavra “democracia” [7].

O vasto horizonte desenhado por Canfora na caça aos sentidos ideológicos da palavra “democracia” tem como ponto estratégico a figura do condutor das massas. Apresentado em várias teorias políticas e sociológicas, entre elas a de Max Weber (a liderança carismática) o problema da orientação a ser dada às multidões segue em paralelo, nos tempos atuais, ao enigma do regime democrático. Muitos entendem a liderança de um grupo ou indivíduo como o exato oposto do ideal democratizante. O culto à personalidade (que marcou o nazismo, o estalinismo, o fascismo) trouxe graves frutos para a vida coletiva. Contra aquela forma política, após a Segunda Guerra Mundial foi acentuada a maneira burocrática e institucional do mando político. Mas nos últimos tempos ocorre o renascimento do Chefe na figura de histriões como Donald Trump, Berlusconi, Boris Jonhson, Jair Bolsonaro e outros. Há uma retomada do governo que une diretamente o eleito para o setor Executivo e as massas que o sufragaram nas urnas. Corremos o perigo de cair, se já não caímos, na “democracia acéfala” profetizada por Weber. Nela, a suposta defesa dos “excluídos” (e presas do ressentimento) se faz na verdade em favor de elites econômicas e sociais, contra os alvos dos setores dominados [8].

A figura do líder segue toda a escrita de Canfora no livro em questão. Sua primeira linha traz o nome de Garibaldi, o qual instaurou a ditadura em 1860 inspirado na ditadura romana. Nesta última, aquela forma de governo garantia ao seu usuário poderes absolutos, mas por meses. Entregue o cargo vinha o exame das despesas em dinheiro e seres humanos. Com Cesar o tempo ditatorial aumenta e diminui a prestação de contas, salvo em manifestações demagógicas. Garibaldi visita a Inglaterra e causa temores na classe dirigente porque, possivelmente, poderia levantar radicais contra a ordem estabelecida. E radicais aos milhares o receberam, entusiasmados com o condottiere. Karl Marx, no entanto, considerou as manifestações de júbilo da massa entusiasta de Garibaldi como “um miserável espetáculo de imbecilidade”. Contrário a lideranças e favorável aos partidos revolucionários, o autor de O capital via na liderança de Garibaldi um retrocesso político que traria obstáculos à organização da classe trabalhadora.

Personificando de modo eminente o revolucionário, Lênin assegura “a mais profunda estima pelos grandes revolucionários burgueses”. Ele aprecia em Robespierre e Garibaldi a qualidade de chefes. Gramsci por sua vez afirma : “em qualquer classe dominante há necessidade dos chefes”. Quando preso, ele nota, desconfiado, a diferença entre a ideia de chefia e a que surge com Hitler e Mussolini. Sua distinção entre os dois tipos de liderança é pouco convincente: há o cesarismo “progressista” e o “regressivo”. É muito e pouco ao mesmo tempo.

Estudiosos do nexo entre massas e lideranças analisaram aquele vínculo de vários modos. Chefes como Filipe da Macedônia podem ser grandes políticos e ao mesmo tempo enormes criminosos, perseguidores acostumados ao perjúrio. O despotismo do líder se torna essencial ao jogo político, talvez mais do que a organização da massa em movimentos, partidos. Rousseau via no despotismo o beco para o qual segue todo poder. “Eis nas minhas velhas ideias o problema político que comparo ao da quadratura do círculo (…) achar uma forma de governo que ponha a lei acima do homem (…) Não vejo um meio suportável entre a mais austera democracia e o perfeito hobbismo (…) Mas os Calígulas, os Neros, Deus meu! rolo pelo chão e gemo por ser homem”.

A demagogia tem limites na lei soberana. O assunto é antigo e Rousseau nada inova aqui. A ideia de que a lei – nomos – deve assumir o lugar de um soberano de carne e osso surge aproximadamente em 500 a.C. Na poesia de Píndaro a tese recebe sua fórmula perene: Nómos ho pántōn basileús [9]. Voltemos a Rousseau : “Se houvesse um povo composto por deuses ele se governaria democraticamente. Um governo tão perfeito não convém a homens” [10]. A prudência filosófica de milênios busca remediar o descompasso entre a falha básica da democracia e o governo das leis. A soberania do povo, quando absoluta, se transforma na tirania da massa e termina na tirania de um só indivíduo ou grupo. Tal argumento foi usado por liberais como Benjamin Constant [11]. A própria noção de tirania de um indivíduo é pensada com base no contexto social em que ela se insere. Assim, segundo Aristóteles (Constituição de Atenas) “o tirano…sai do povo e da massa para os proteger contra os notáveis, afim de que o povo não sofra nenhum malefício de sua parte”.

Entre o governo das leis e o de um indivíduo ou grupo, a democracia balança desde os seus inícios na Grécia. Canfora indica algo precioso para os estudos sobre o regime democrático, normalmente pouco discutido na ciência política. Democracia, adianta ele, era o termo usado pelos adversários do regime “popular” cuja essência era a Assembleia dos Cidadãos (Ekklèsia), usado na realidade para desqualificar aquela forma política. Na palavra “kratos”, acrescida ao Demos eles viam o caráter violento e liberticida das massas. A democracia foi encarada pelos seus críticos, logo nos seus inícios, como o governo da massa sem freios. Entende-se as invectivas platônicas da República, na qual o poder democrático é o último átimo da liberdade desprovida de controle, o que abriria a passagem ao mando tirânico. Daí a via para o poder pessoal de indivíduos sobre os “muitos”, coetâneo e coessencial à democracia [12].

Tucídides, adianta Canfora, vê em Péricles, o condutor democrático durante bom tempo, um “princeps” exercitando poder pessoal que terminou por acabar com a harmonia entre os poderes. O texto de Tucídides citado por Canfora é explícito: o governo de Atenas “só tinha o nome de democracia, mas de fato era dirigido pelo prôtos anêr” (Tucídides, II, 65). A tradução de Thomas Hobbes é fiel: It was in name a state democratical, but in fact a government of the principal man. Assim era a democracia grega que serve como ilusório modelo para os dias atuais. Na tarefa de retomar um regime político idealizado, o projeto de Constituição para a Europa, sob auspícios conservadores diga-se de passagem, inicia com frases truncadas e sem o sentido original, infiel ao discurso de Péricles (Canfora fala numa falsificação pura e simples, que finalmente foi extraída do texto) sobre a “democracia” [13].

A língua grega usada na época romana (recordemos o peso da Grécia para governantes e juristas de Roma) apresenta um termo revelador que modifica o sentido da palavra democracia. Trata-se do vocábulo dêmokrator, o indivíduo que tem poder sobre o povo. Apiano comenta a luta entre Cesar e Pompeu e fala que se tratava de uma disputa pela “dêmokratia” ou seja o poder sobre o povo. Dion Cassius atribui a Sila o qualificativo de “demokrator” como sinônimo de ditador. A ditadura, mesmo a definida pelo costume e que permaneceria por seis meses, seguida de prestação de contas, dava ao governante o poder de estar acima das leis. E no caso de Sila tal poderio foi usado e abusado.

A conclusão provisória de Canfora é que existe na encruzilhada entre democracia e poder pessoal de lideranças uma linha política que vai da ambígua relação entre mando sob a lei e dirigentes políticos. Tal senda segue da Grécia ao cesarismo e ao bonapartismo e daí ao fascismo. A liderança posta acima da lei traz problemas para a democracia. Mas sem liderança, a lei não se efetiva em favor das massas. Como resolver semelhante aporia?

Loas são entoadas para a democracia ao modo norte-americano desde o final da Segunda Grande Guerra. Foi com ela desenhado um modelo a ser seguido e imposto aos países sob tutela daquela potência. Em Cuba, Guatemala, Filipinas, Vietnã, Iraque, Líbia, Afeganistão, a escalada em prol do parâmetro estadunidense chamado “democracia” trouxe frutos amargos e virulentos. Na chamada guerra contra o terror, o dogma definido não permite desvios dos países submetidos: o paradigma democrático norte-americano deve ser copiado sem retoques. Mesmo apesar de advertências de seus próprios funcionários postos na espionagem e na defesa, a doutrina guarda sua rigidez e intolerância [14]. É interessante notar que muitos políticos, empresários e acadêmicos norte-americanos, antes da Segunda Guerra, foram claramente favoráveis ao nazifascismo.

No capítulo mais importante do livro de Canfora no meu entender, “Guerra Fria e recuo da Democracia”, o começo é exemplar. Ele cita o projeto Mundt-Nixon, proposto para o controle das atividades subversivas, no qual se exigia que todo membro do Partido Comunista dos Estados Unidos fosse registrado pelo Procurador Geral. O projeto foi relevante para o início da campanha liderada por McCarthy na caça aos comunistas do país inteiro, em nome da civilização ocidental cristã e da democracia. Thomas Mann, exilado nos EUA desde 1938, denunciou a situação em discurso feito no Peace Group de Hollywood. Segundo ele, “Tudo o que ocorre atualmente (a caça às bruxas em nome da democracia) é o fruto da raiva e do lamento de não ter vencido a Rússia ao lado da Alemanha, em vez de vencer o fascismo ao lado da Rússia”. Em 1944, um senador republicano e doze deputados acusam Roosevelt de participar de gigantesco complô destinado a “vender nossa democracia aos comunistas”. O projeto Mundt-Nixon abre o caminho rumo à consolidação do fascismo norte-americano. Em tal ímpeto, intelectuais como Thomas Mann, Charlie Chaplin, Moses Finley e Daniel Hammett foram ditos comunistas. O antissemitismo de Nixon seguiu sua posição pró fascista. Quando documentos de sua presidência vieram a público em 1999 pode-se ouvir dele: “Quero controlar todos os setores sensíveis onde há judeus (…) Existem exceções mas, em geral não confio naqueles bastardos”. Caça aos comunistas, ódio aos judeus, nacionalismo: temos aí a receita fascista ainda hoje retomada por Donald Trump.

Um nome citado pelos admiradores da democracia ao modo estadunidense é George Orwell, cuja denúncia do Estado totalitário soviético surge quando se trata de atacar o socialismo e as tendências de esquerda. No final de sua vida ele delatou 38 intelectuais não apenas como adeptos do comunismo, mas também como judeus: Chaplin, Isaac Deutscher e outros. Hoje, quando alguém deseja exaltar o modelo “democrático” segundo os parâmetros estadunidenses, 1984 e outros da lavra orwelliana vem à fala ou à escrita. Devemos recordar o enunciado de Erich Auerbach (Mimesis): o mundo é um enorme palco onde inúmeras cenas estão expostas. O propagandista coloca o holofote sobre algumas cenas. Quem assiste adquire a certeza de que o que nelas é exposto é verdade. E se trata de um fato. Mas, adianta Auerbach, da verdade faz parte toda a verdade. É preciso tempo para examinar cada cena e o conjunto integral. Para semelhante fim é preciso tempo. Mas os tempos da propaganda, da economia, da política, da ideologia são cada vez mais acelerados. Não há tempo para pesquisar verdades e o conjunto das verdades. Falar em democracia ocidental sem questionar o que se faz e se fez em seu nome é um dispêndio temporal dado a muito poucos seres humanos. Diga-se além disso que desde o início do termo na Grécia existe nela uma raiz etnocêntrica e preconceituosa, que hoje receberia condenação quase unânime dos que se imaginam democratas [15].

Assim, uma falta de rigor histórico e político, para não dizer filosófico, mantém discursos e práticas que apelam para um nome abstrato – democracia – e confunde doutrinas, ações, razões de Estado e razões de interesse os mais diversos. Para usar a terminologia hegeliana, “democracia” é um universal abstrato que não sintetiza plenamente múltiplas determinações, não atinge o conceito: não é “unidade do diverso” [16].

A suposta contraposição das formas políticas norte-americanas ao totalitarismo cai por terra quando é examinada a formação do Estado naquela federação, sob o patrocínio de forças que, antes e depois da Segunda Guerra, estavam unidas por laços ideológicos pouco condizentes com os ideais alardeados de liberdade e democracia. Canfora então reitera algo bem conhecido dos pesquisadores que reuniram documentos sobre a política externa dos EUA após o grande conflito guerreiro. Vale a pena retomar suas argumentações no relativo ao tema.

Vencida a guerra, os EUA se dedicam ao rearmamento da Alemanha federal. É negada qualquer proposta de neutralidade, o que poderia dar andamento à reunificação do país. A Alemanha entra no sistema defensivo e ofensivo do Ocidente. Quase ao mesmo tempo uma inimiga acérrima da “democracia”, a Espanha de Franco, entra para o Pacto Atlântico, com aprovação unânime da Câmara estadunidense dos Representantes. Mas o eixo (sem nenhuma insinuação, claro) da política norte-americana de leniência e cumplicidade com regimes e pessoas fascistas tem seu ápice na Alemanha. Tete Harens Tetens, judeu alemão emigrado aos EUA, professor universitário, dá o sentido da atividade americana na Alemanha:

“Se observamos o conjunto do sistema político da república de Bonn, é forçosamente preciso constatar que os nazistas recuperaram tranquilamente quase todos os setores. Da Chancelaria até embaixo, passando em cada um dos serviços do governo, partidos, parlamentos dos Estados, polícia, sistema escolar e imprensa: os antigos nazistas estão confortavelmente instalados em numerosos cargos essenciais” (no livro: The new Germany and the old nazis, citado por Canfora).

Tetens revelou o caso de Hans Globke, um dos criadores das leis raciais nazistas [17]. O advogado criminoso foi protegido por Adenauer. Com ele surge o Deutsche Partei contrário a desnazificação e adversário do processo de Nuremberg. O partido também acusava todos os que “difamavam o soldado alemão”. O governo repleto de nazistas pede à Corte Constitucional alemã que declare a inconstitucionalidade do Partido Comunista. A desculpa? O KPD seria uma “ameaça ao sistema democrático e liberal”. Assim, o partido Comunista seria inconciliável com a Constituição, mas os nazistas aos montes, a exemplo de Globke, seriam muito, muito conciliáveis. Como a Corte tergiversou (só decidiu a pendenga em 1956), a técnica para expulsar os comunistas do Parlamento residiu na cláusula de barreira (o partido que não obtivesse 5% de votos em escala nacional). Pela primeira vez depois da Guerra tal recurso foi usado para barrar a existência, na Europa, de um pensamento oposto ao oficial.

A famigerada divisão entre democracia e totalitarismo recebe um golpe sério. Como um poder mundial que afirma ter lutado contra a tirania nazista, fascista, franquista, salazarista, absorve novamente a campanha antissemita e contra o socialismo, transforma seu próprio país na pátria da caça às bruxas com o macarthismo? Não irei alongar a análise, mas creio que ao fazer uma paráfrase do volume publicado por Canfora, indiquei pontos que até hoje e ainda durante muito tempo tornam a democracia uma palavra embreagem, no sentido a ser extraído de E. Benveniste: ela surge quando o discurso não tem condições de seguir uma linha lógica e factual consequente. Aí, a “embreagem” faz a narrativa seguir a marcha, deixando de lado terrenos perigosos, muito perigosos. Salientei o elo entre as formas democráticas e as lideranças, algo que preocupa os analistas dos autoritarismos eleitos nos EUA, na Europa e no Brasil. Tal assunto mereceria um grande simpósio internacional e brasileiro, mas ele fica para quando a universidade assumir um papel de vanguarda na luta pela clarificação das falas políticas, uma das insuspeitadas fontes da tirania que surge, ameaçadora, no horizonte planetário.

Da grave exposição feita por Canfora resta-nos salientar que, embora “todos saibam”, é uma armadilha discursiva e programática entoar hinos à democracia sem definir lógica e praticamente a qual democracia o texto ou fala se referem. Christopher Hill, em tirada de bom humor, mas realista, disse uma vez que a pergunta, sempre que alguém evoca a “liberdade” deve ser a seguinte: “Liberty for whom to do what? It is a question to which many answers can be given. Liberty for witch-hunters to burn witches, and liberty for wicked capitalists to grind the faces of the poor, have been two of the simpler and least convincing which I shall no be discussing” [18]. Perguntas similares devem ser feitas sobre a “democracia”. Sabemos muito bem que as formas democráticas defendidas por “wicked capitalists”, como ocorreu na Alemanha nazista, conduz às caçadas empreendidas contra as bruxas, sejam elas judias, comunistas, ou simplesmente liberais não adequadas aos alvos da razão estatal, uma série delirante de formas políticas que já levou milhões e milhões de seres humanos ao matadouro. As falas melífluas e suaves sobre a “democracia” quase sempre são cantos de sereias que fazem as massas perderem o pouco sentido de que usufruem no mundo. E nos dias atuais, o termo que enfeitiça, a democracia, surge em todos os ouvidos e olhos pregados na TV, ao rádio, às redes “sociais”. Nada mais saudável, quando ouvimos tais orações de encantamento, do que seguir o conselho spinozano: Caute!

Roberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles Brasil, Igreja contra Estado (Editora Kayrós, 1979), Conservadorismo romântico (Editora da Unesp), Silêncio e ruído, a sátira e Denis Diderot (Editora da Unicamp), Razão de Estado e outros estados da razão (Editora Perspectiva).

[1] Stephen Kinzer: All the shah’s men – An American coup and the roots of Middle East terror. (New Jersey, John Wiley & Sons, 2007). Kinzer demonstra que, para ajudar a Inglaterra em sua precisão de petróleo após a Segunda Guerra, e temendo a intervenção da URSS no Irã, os Estados Unidos cometem seu primeiro golpe de Estado, com aparato da CIA, movimentações de massas religiosas etc. É o início de uma trágica sequência de golpes para defender a “democracia”.

[2] La Democrazia. Storia di un´ideologia. Uso a tradução francesa : La démocratie. Histoire d´une ideologie. (Paris, Seuil, 2006).

[3] Giulio Cesare, Il dittatore democratico (Roma-Bari, Laterza, 1999).

[4] Un mestiere pericoloso. La vita quotidiana dei filosofi greci (Palermo, Sellerio, 2000).

[5] Ideologie del classicismo, (Turin, Einaudi, 1980).

[6] Tucidide e l’impero. Presa di Melo (Roma-Bari, Laterza, 1992).

[7] Referência muito rápida é feita ao volume de Canfora no artigo de François Hartog: “Fin de la démocratie athénienne”. Diz Hartog que para Canfora “é preciso analisar em termos de classe as realidades dissimuladas sob a casca dos sistemas políticos”. “Contrariamente a todos os que enxergam na Oração Fúnebre de Péricles um elogio da democracia, Canfora retém sobretudo o privilégio dado por Tucídides à liberdade”. In P.S. Pantel e F. de Polignac: Athènes et le politique, dans la sillage de Claude Mossé (Paris, Albin Michel, 2017), p. 313. Como se verá nas linhas adiante, é muito pouco para se descrever um livro denso, que vai com muita propriedade da Grécia clássica aos tempos modernos e contemporâneos.

[8] Jean-Claude Monod: Qu´est-ce qu´un chef en démocratie ? (Paris, Seuil, 2012).

[9] O tema é imenso, exigindo espaços incompatíveis com o atual. Mas vale recordar um polêmico livro de Marcello Gigante, Nomos Basileus, (Napoles, 1956). Ainda no campo da ordem democrática ou na ordem da lei, interessante exposição de Martin Ostwald: From popular sovereignty to sovereignty of law: Law society and politics in fifhth-century Athens (Berkeley, Univ. of California Press, 1986). É conhecida a proposição de H. Arendt (Between past and future) de que é partir do Górgias platônico a revolução do nomos basileus. Para contrabalançar a força das massas a lei precisa da religião: punições e prêmios após a morte, o que permite o comando sem demasiadas violências.

[10] Du contrat social III, chapitre 4, De la démocratie. Os humanos não possuem alma angélica, mas suas paixões e interesses marcam todos os seus atos. Já Maquiavel, recordado com precisão por Spinoza, afirma que os homens vivem apaixonadamente e tal coisa não deve servir como elemento de condenação, mas de entendimento, sobretudo no campo da política.

[11] “Numa só palavra, só existem no mundo dois poderes, um ilegítimo, a força; outro legítimo, a vontade geral. Mas ao mesmo tempo em que se reconhece os direitos dessa vontade, a da soberania popular, é necessário, é urgente bem conceber a natureza e bem determinar a sua extensão. Sem uma definição exata e precisa, o triunfo da teoria poderia se tornar em uma calamidade na aplicação. O reconhecimento abstrato da soberania popular em nada aumenta a soma da liberdade dos indivíduos; e se atribuímos a essa soberania uma latitude que ela não deve ter, a liberdade pode ser perdida apesar desse princípio, ou mesmo por esse princípio”. Principes de Politique, chapitre 1, de la souveraineté du peuple.

[12] No século XX o já citado Carl Schmitt retoma sutilmente o nexo entre “nomos” e “liderança” pessoal, o que exalta o papel do Líder na condução das massas. Cf. Der Nomos der Erde im Völkerrecht des Jus Publicum Europaeum (Duncker & Humblot, 1997). Digo ser sutil porque o jurista em questão trata, em Nomos der Erde, do significado territorial e marítimo do direito, o que permite avançar justificativas guerreiras da Alemanha, com apoio de massas, o que Schmitt teoriza em outros escritos. “Para Schmitt, se a identidade democrática for levada às últimas consequências, só o povo deve decidir sobre seu destino político, e não representantes liberais, porque nenhuma outra instituição constitucional pode suportar a expressão da vontade popular”. Daniel Nunes Pereira: “Titanomachia – Oposições epistemológicas entre Kelsen e Schmitt” http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=73dc680c73e6a18c Mas sempre recordando que para o jurista, pelo menos durante o tempo em que esteve bem colocado no regime, o Líder define o direito, ou seja, a lei. Der Führer schützt das Recht in Deutsche Juristen-Zeitung, Heft 15 v. 01.08.1934. http://delete129a.blogsport.de/images/CS_DerFuehrerschuetztdasRecht.pdf

[13] Trata-se da célebre oração fúnebre na Guerra do Peloponeso (II, 37-46) sobre os mortos na guerra de Arquidamos (431-421).

[14] Um testemunho importante é o de Michael Scheuer, veterano da CIA em matérias ligadas à luta contra o terrorismo. Ele mostra a ausência de percepção, por parte do Estado norte americano, do que os atos imperiais daquele país causam na inteligência dos supostos aliados e adversários. A auto imagem de excelência causa uma cegueira política nos tratos internacionais dos EUA, com duras consequências planetárias. Cf. Scheuer, M.: Imperial hubris, why the West is losing the war on Terror. (Washington, Brassey´s, 2004). Os livros sobre o tema são muitos e variados.

[15] Das muitas fontes, temos Aristóteles: o poder real entre os bárbaros se aproxima da tirania, mas eles governam segundo a hereditariedade e as leis, “pois como os bárbaros são mais servis (doulikoteroi) em sua natureza do que os gregos, e os asiáticos mais do que os europeus, eles suportam o governo despótico sem nenhum ressentimento”. (Política, III, 1285a 20). Loeb Classical Library, Aristotle, XXI, p. 249.

[16] “…a Ideia é essencialmente concreta, porque síntese de distintas determinações” (…in sich selbst is aber die Idee wesentlich konkret, die Einheit von unterschiedenen Betimmungen). Vorlesungen uber die Philosophie der Geschichte, in Werke in zwanzig Bänden, (Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1978), p. 43. Para a crítica de Marx ao pensamento hegeliano, M. F. Touati: “L’action historique chez Hegel et Marx: de l’esprit aux masses”. https://www.cairn.info/revue-cahiers-philosophiques1-2010-1-page-33.htm

[17] Hans Josef Maria Globke trabalhou no Escritório para Assuntos Judaicos, onde definiu formas legais para o antissemitismo. Depois da guerra foi Secretário de Estado e Chefe do Estado Maior. Dirigiu a Chancelaria pondo gente sua no governo. Foi a maior ligação alemã com a Otan e a CIA.

[18] Puritanism and Revolution.