Capitalismo e fome

Por Plínio de Arruda Sampaio Júnior

O problema não é a existência de um excedente populacional insustentável, como apregoam as teorias de inspiração malthusiana muito em voga nos meios reacionários. Não existem dificuldades materiais insuperáveis que expliquem a fome. Sabe-se perfeitamente que há muito tempo a capacidade de produção de alimentos é mais do que suficiente para satisfazer toda população mundial. Hoje, ela é mais do que o dobro da necessária.

O contraste gritante entre o colossal desenvolvimento das forças produtivas e a presença de imensos contingentes populacionais submetidos à fome é prova cabal do absoluto fracasso do capitalismo como projeto civilizatório. Passados dois séculos e meio da Revolução Industrial, que consolidou as bases materiais do modo de produção capitalista, desencadeando uma escalada exponencial na produtividade do trabalho, mais de 1/4 da humanidade ainda vive diariamente o flagelo da fome.[1]

O mito liberal de que a “mão invisível” do mercado transformaria o egoísmo em virtude social, tornando a mercantilização da vida social na mola propulsora do bem-estar, apregoada por Adam Smith em A riqueza das nações e repetida ad nauseam pelos seus epígonos, verificou-se um engodo. A sociedade burguesa desenvolveu a capacidade de fazer guerra nas estrelas, mas não resolveu a questão da fome. O problema não é a existência de um excedente populacional insustentável, como apregoam as teorias de inspiração malthusiana muito em voga nos meios reacionários. Não existem dificuldades materiais insuperáveis que expliquem a fome. Sabe-se perfeitamente que há muito tempo a capacidade de produção de alimentos é mais do que suficiente para satisfazer toda população mundial. Hoje, ela é mais do que o dobro da necessária.[2]

O problema reside na extrema concentração da renda. Numa sociedade totalmente mercantilizada, quem é privado de dinheiro não possui meio de acesso à comida. O crescente descompasso entre a ampliação desenfreada da riqueza e a perpetuação de gigantescas carências sociais é uma realidade inerente à relação capital-trabalho. Como mostrou Karl Marx em O Capital, a contradição entre o caráter social da produção de mercadorias e a apropriação privada do excedente econômico faz com que a expansão da riqueza e a ampliação da miséria constituam faces inseparáveis da extração de mais-valia que impulsiona a acumulação de capital. A fome é a expressão máxima da desigualdade social inerente ao modo de produção capitalista.

Numa sociedade baseada no trabalho assalariado, em que a relação de exploração não é mediada diretamente pela coerção política ou religiosa, mas depende de um contrato jurídico entre o trabalhador e o capitalista, livremente estabelecido, o espectro da fome é um elemento estratégico de coerção econômica para compelir as pessoas, pela pressão das necessidades, à venda de sua força de trabalho. A presença de uma grande massa de trabalhadores pauperizados que vivem no limiar da sobrevivência biológica rebaixa o nível tradicional de vida do conjunto da classe trabalhadora. A miséria em grande escala funciona, assim, como uma âncora que reduz o custo de reprodução da força de trabalho, potencializando a extração de mais valia e a elevação da taxa de lucro. A relação entre acumulação de capital e acumulação de pobreza é direta e inexorável. Ao substituir sistematicamente trabalho vivo por trabalho morto – a quinta-essência da lógica que impulsiona o desenvolvimento capitalista das forças produtivas –, a busca incessante de aumentos na produtividade gera uma superpopulação relativa que engrossa o componente latente, intermitente e pauperizado do exército industrial. A tendência à pauperização é, portanto, uma lei inarredável da acumulação de capital. Marx sintetizou a questão nos seguintes termos:

"Quanto maiores forem a riqueza social, o capital em funcionamento, o volume e o vigor de seu crescimento e, portanto, também a grandeza absoluta do proletariado e a forca produtiva de seu trabalho, tanto maior será́ o exército industrial de reserva. A força de trabalho disponível se desenvolve pelas mesmas causas que a força expansiva do capital. A grandeza proporcional do exército industrial de reserva acompanha, pois, o aumento das potências da riqueza. Mas quanto maior for esse exército de reserva em relação ao exército ativo de trabalhadores, tanto maior será́ a massa da superpopulação consolidada, cuja miséria está na razão inversa do martírio de seu trabalho. Por fim, quanto maior forem as camadas lazarentas da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior será́ o pauperismo oficial. Essa é a lei geral, absoluta, da acumulação capitalista".[3]

Sem condições de erradicar as desigualdades sociais, a pobreza e a fome, o pensamento burguês trata a questão, sem nenhuma preocupação em enfrentar seus condicionantes histórico-estruturais. A necessidade de obnubilar uma compreensão crítica do problema e defender a continuidade do sociometabolismo do capital impõe malabarismos teóricos e retóricos incontornáveis. A justificativa incondicional do status quo é combinada com a ilusão de um capitalismo edulcorado, que nunca se realiza, numa operação ideológica que lança mão ora do sofismo cínico que naturaliza a realidade; ora da mistificação do poder providencial do Estado burguês como demiurgo do bem comum; ora do conformismo autocomplacente das políticas assistencialistas focalizadas, tão em voga nos dias atuais; ora, em manifesto reconhecimento de impotência e desespero, da hipocrisia e do moralismo pelo apelo à filantropia como única esperança para mitigar o sofrimento dos desvalidos. 

A unidade necessária entre os processos de produção e distribuição implica que o padrão de desigualdade social em cada formação social seja historicamente determinado pelas condições objetivas e subjetivas que determinam a produtividade e a taxa de exploração do trabalho. Os determinantes da desigualdade social em cada sociedade nacional e, portanto, da pobreza relativa e absoluta correspondente, são, assim, condicionados em cada momento histórico pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas, pela estrutura técnica e financeira do capital que condiciona o padrão de concorrência intercapitalista, pela posição da economia na divisão internacional do trabalho, bem como pela correlação de forças entre o capital e o trabalho na luta pela determinação dos salários.

Dentro de tais parâmetros, a possibilidade de interferência nas condições que regem as desigualdades sociais depende fundamentalmente da intervenção do Estado na apropriação e alocação da renda, processos associados à estrutura tributária e à composição dos gastos públicos de cada sociedade nacional. Em circunstâncias conjunturais muito particulares, as lutas econômicas e políticas da classe trabalhadora podem, portanto, atenuar temporariamente os efeitos devastadores do desenvolvimento capitalista sobre as condições de vida dos trabalhadores. Não conseguem, entretanto, alterar a natureza do capital e anular as leis responsáveis pela formação de uma superpopulação relativa pauperizada. O desenvolvimento capitalista virtuoso não passa de uma construção ideológica para apaziguar a classe trabalhadora e legitimar a ordem burguesa.[4]

Nas formações sociais de origem colonial enredadas no círculo de ferro da dependência e do subdesenvolvimento, como é o caso do Brasil, a desigualdade social inerente ao capitalismo é extrema. O baixo grau de desenvolvimento das forças produtivas, a presença de uma imensa proporção do exército industrial de reserva que vive no subemprego, condenado à pauperização, e a sistemática transferência de recursos para o exterior, decorrente da posição subalterna no sistema capitalista mundial, levam ao paroxismo o descompasso entre riqueza e pobreza.

Sem a superação dos determinantes estruturais do círculo vicioso da pobreza, é limitadíssima a possibilidade de mitigar os efeitos da desigualdade social pela intervenção direta do Estado na distribuição do excedente social, sobretudo quando se leva em consideração que à concentração da riqueza corresponde uma correlata concentração do poder político. O controle do Estado por plutocracias ultra egoístas cristaliza-se numa estrutura particularmente regressiva de arrecadação e utilização dos recursos públicos que deixa baixíssima margem de manobra para transferência de renda e realização de políticas sociais voltadas para a população carente. As sociedades que ficaram presas ao circuito de ferro do subdesenvolvimento revelam-se, assim, particularmente herméticas às pressões democratizantes das classes subalternas.[5]

Na era da crise estrutural do capital, o capitalismo atual, o espaço para a contenção das taras da exploração capitalista é mínimo. O capitalismo em descenso não tem o que ceder ao trabalho, pois a burguesia não consegue superar as contradições responsáveis pelas crises cíclicas do processo de acumulação de capital, sem agravá-las logo em seguida. A ofensiva permanente sobre os direitos dos trabalhadores, o desmonte das políticas públicas e a mercantilização de todas as esferas da vida, com seus inevitáveis efeitos perversos sobre o meio ambiente, são os principais meios de contrabalançar a tendência decrescente da taxa de lucro. O capitalismo que tapa um buraco, cavando um buraco maior ainda, para utilizar a didática metáfora do filósofo István Mészáros, caminha inexoravelmente para uma crise social e ambiental cataclísmica e não tem como ser contido. A superação da marcha insensata para a barbárie requer mudanças qualitativas que vão muito além do capital.[6]

Na periferia latino-americana do sistema capitalista mundial, a barbárie capitalista assume a forma de um processo de reversão neocolonial, cujo elemento central reside no colapso definitivo do Estado nacional como centro de comando de políticas públicas capazes de conter, ainda que minimamente, as perversidades do capital. No Brasil, a reversão neocolonial avança a galope. A crise terminal do processo de industrialização por substituição de importações, que implicou forte regressão das forças produtivas, desencadeou uma forte pressão para o rebaixamento do nível tradicional de vida dos trabalhadores. A desnacionalização da economia, patente no crescimento exponencial do passivo externo líquido, reforçou a necessidade de uma crescente transferência de recursos reais e financeiros ao exterior, exatamente no momento em que a maior dependência de commodities intensificou a tendência estrutural à deterioração dos termos de troca. A maior concentração e centralização do capital aumentou o poder dos monopólios sobre os setores estratégicos da economia brasileira e potencializou o controle rentista sobre o orçamento público. No campo, o avanço galopante do agronegócio revitalizou o latifúndio. A corrida desenfreada por terras, que atropela as nações indígenas e os povos quilombolas, agravou a concentração fundiária e a desnacionalização do campo. O avanço da terceirização e precarização do trabalho enfraqueceu a correlação de forças entre o capital e o trabalho, fato agravado pelo espectro de uma longa estagnação econômica que eleva o subemprego e o desemprego aberto. O desequilíbrio das finanças públicas decorrente fundamentalmente dos gastos com o serviço da dívida pública e das gigantescas renúncias tributárias concedidas ao grande capital, reforçados pela adesão das autoridades ao regime de austeridade fiscal, colocou no horizonte o congelamento dos gastos sociais. Por fim, o reforço do mimetismo cultural como norte do padrão de acumulação levou ao paroxismo a discrepância entre as prioridades que determinam o funcionamento da economia e do Estado e as necessidades reais do conjunto da população.[7]

Em suma, a persistência de um expressivo contingente populacional que vive na pobreza, a elevada proporção da população que ganha um salário insuficiente para comprar a cesta básica para sua sobrevivência e a grande vulnerabilidade da população carente às inflexões da economia e às mudanças na orientação da política fiscal revelam a ausência de qualquer base objetiva para uma estratégia sustentável de combate à pobreza e à desigualdade social. Sem transformações estruturais que ataquem as causas do problema – o papel estratégico da pobreza como fator determinante do rebaixado nível tradicional de vida dos trabalhadores –, é impossível vencer o círculo vicioso da pobreza, combater a desigualdade social e impedir a progressiva deterioração das condições de vida da classe trabalhadora. Ir além do capital, criando novas modos de viver e de produzir, é a única esperança de deter o avanço galopante da barbárie capitalista. Na periferia do sistema capitalista mundial, a urgência é máxima.

Plínio de Arruda Sampaio Júnior é professor aposentado livre-docente do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp), conselheiro científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), membro do conselho editorial do blog Marxismo XXI e autor do livro Crônica de uma crise anunciada: Crítica à economia política de Lula e Dilma, Ed. SG-Amarante, 2017.

[1] De acordo com o relatório “2020: The state of food security and nutrition in the world”, preparado pela FAO – Food and Agriculture Organizaton of the United Nations –, “dois bilhões de pessoas, ou 25,9% da população global, sofreu fome ou não teve acesso regular a alimentos nutritivos e suficientes em 2019”. A estimativa é que a crise econômica provocada pela pandemia de coronavírus deve acrescentar entre 83 milhões e 133 milhões de pessoas adicionais no contingente da população mundial subnutrida em 2020. Ver http://www.fao.org/3/ca9692en/online/ca9692en.html

[2] Ziegler, J. et all. The fight for the right to food, New York: Palgrave Macmillan, 2011, p. xiii

[3] K. Marx. O Capital, vol.1. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 469.

[4] Sobre a importância das lutas de resistência dos trabalhadores, ver seu opúsculo O salário, o preço e o lucro. São Paulo: Ed. Estampa, 1975.

[5] Para uma introdução à economia política do capitalismo dependente ver Sampaio Jr. P.S.A. Entre a nação e a barbárie: os dilemas do capitalismo dependente em Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Celso Furtado. Petrópolis, 1999.

[6] A interpretação sobre a crise estrutural do capital é desenvolvida no livro de István Mészáros Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.

[7] Ver Sampaio, Jr., P.S.A. “Metástase da crise e aprofundamento da reversão neocolonial”, in: Revista Crítica e Sociedade, Universidade Federal de Uberlândia, vol. 1, n. 3, 2011, jan 2012