O pescado e a segurança alimentar

Por Juliana Schober Gonçalves Lima

Apesar da elevada qualidade nutricional do pescado, mecanismos que orientam os modos de produção e comercialização podem impedir que esse alimento seja amplamente consumido, sobretudo pelas populações que mais precisam, que são aquelas de baixo poder aquisitivo e subnutridas. Uma estimativa recente mostra que antes da pandemia de covid-19, quase 690 milhões de pessoas no mundo, ou seja, cerca de 8,9% da população global, estavam subnutridos (conhecido como “SOFI” report, 2020). Esse número elevado de subnutridos demanda estratégias eficazes de combate à desnutrição e o pescado tem um papel muito relevante nesse contexto.

Pescado é um nome genérico para diversas espécies aquáticas que são fonte de proteína animal para a dieta humana, como por exemplo peixes, crustáceos e moluscos. Além de espécies animais, nos ecossistemas aquáticos também são encontradas variadas espécies de plantas e algas aquáticas, cada vez mais utilizadas para alimentação humana. Apesar dos registros arqueológicos indicarem que a relação da humanidade com os ecossistemas aquáticos vai muito além dos requerimentos alimentares, historicamente as populações humanas sempre contaram com os alimentos de origem aquática para a sobrevivência em diferentes tempos históricos e em diferentes regiões do mundo.

A relevância do pescado para a alimentação humana é muitas vezes expressa em manifestações que evidenciam o pescado como elemento central dos modos de vida de diferentes sociedades, concretizando em diferentes povos uma cultura alimentar voltada à produção e consumo de organismos aquáticos. Nesse contexto, existem inúmeros exemplos espalhados pelo mundo. Na Amazônia brasileira certas comunidades desenvolveram modos de vida muito próprios determinados pela dinâmica da pesca e consumo do Pirarucu (Arapaima gigas). Para os Inuit, no Canadá, as interações sociais e compartilhamento de alimentos são a base de uma cultura na qual o modo de vida é determinado pela captura e consumo de peixes e mamíferos aquáticos que compõem parte de uma dieta tradicional. Em seu livro Caviar – A estranha história e o futuro incerto da iguaria mais cobiçada do mundo, a jornalista Inga Saffron descreve a história do caviar que, antes de se tornar uma iguaria na Europa aristocrática e ser comercializada globalmente, foi alimento corriqueiro de camponeses russos que costumavam utilizar o peixe esturjão como alimento, incluindo as ovas salgadas.

Um dos documentos mais relevantes para se observar as tendências da produção e consumo de pescado no mundo é o “The State of World Fisheries and Aquaculture”, um relatório publicado a cada dois anos pela FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação). O último relatório foi publicado no ano 2020. Segundo esse relatório, o consumo global de pescado para alimentação humana aumentou em uma taxa média anual de 3,1 % de 1961 a 2017, crescimento maior do que o consumo de outras fontes de proteína animal no mesmo período. Em 2017, o consumo de pescado representou 17% da ingestão global de proteína de origem animal, indicando um aumento da importância relativa do pescado com relação ao consumo de proteína de origem animal no mundo. Globalmente, o consumo per capita de pescado para alimentação humana aumentou de 9kg em 1961 para 20,5kg em 2018, sendo determinante para o aumento per capita da ingestão diária de proteína animal para bilhões de pessoas (SOFI 2020).

Apesar do expressivo aumento global do consumo de pescado, existem grandes diferenças regionais na quantidade de pescado consumido nas diferentes regiões do mundo e essas diferenças devem ser observadas quando se busca compreender o papel do consumo de pescado para a segurança alimentar e nutricional.

O recém lançado relatório “The State of Food Security and Nutrition in the World” 2021 exibe dados alarmantes indicando o aumento expressivo da insegurança alimentar,  que alcança agora cerca de 2,36 bilhões de seres humanos, ou seja, 30,4% da população mundial. O relatório anterior, do ano 2020, mostrou um aumento nos últimos anos do consumo de pescado, mas esse aumento ocorreu principalmente em países do Hemisfério Norte que não se encontram em situação crítica de insegurança alimentar. Nesse cenário, qual o papel do pescado para a segurança alimentar das populações vulneráveis? Será que o pescado está sendo mais consumido pelas populações com maior necessidade, ou seja, pelas populações que se encontram subnutridas? Será que os modos de produção e comercialização do pescado contribuem de forma efetiva para o fortalecimento da segurança alimentar de populações vulneráveis?

Diversos estudos científicos buscam compreender o impacto da redução dos estoques pesqueiros sobre o consumo de pescado das populações humanas e suas relações com a segurança alimentar e nutricional. Um artigo publicado em 2016 na Nature por Golden e colaboradores, intitulado “Fall in fish catch threatens human health” (tradução livre: Queda na captura de pescado ameaça a saúde humana) afirma que mais de 10% da população global pode enfrentar deficiências de micronutrientes e ácidos graxos caso os estoques pesqueiros naturais diminuam nas próximas décadas, comprometendo a disponibilidade de pescado para consumo humano. Os autores salientam os riscos que a falta de pescado pode causar para as dietas humanas:

Considering nutrients found only in foods derived from animals, such as vitamin B12, and DHA omega-3 fatty acids (...), we calculate that 1.39 billion people worldwide (19% of the global population) are vulnerable to deficiencies because fish make up more than 20% of their intake of these foods by weight.

Ainda segundo Golden e colaboradores, o impacto da redução dos estoques pesqueiros sobre a saúde nutricional global será mais severa nas regiões onde há maior dependência do pescado, como é o caso da África subsahariana onde há grande dependência do pescado obtido pela pesca artesanal e elevada ocorrência de deficiências de micronutrientes (Golden et al 2016).

Apesar do aumento global do consumo do pescado mostrado em SOFI (2020), é preciso cautela ao associar esse aumento de consumo e o aumento da produção global de pescado com a garantia de segurança alimentar. De fato, segundo SOFI (2020), a produção mundial de pescado alcançou o recorde de 178,5 milhões de toneladas em 2018, e grande parte dessa produção foi destinada ao consumo humano (156 milhões de toneladas foram usadas para consumo humano). Porém, populações extrativistas ou dependentes dos recursos pesqueiros, no Brasil ou em outros territórios, continuam relatando a redução do pescado para a alimentação, além de estudos científicos mostrando exemplos da redução de determinadas espécies aquáticas importantes para a alimentação humana, indicando a necessidade de esforços maiores para viabilizar políticas de manejo dos recursos pesqueiros visando a garantia da segurança alimentar.

A aquicultura, atividade que visa a produção de pescado através de técnicas de cultivo, tem sido a grande promessa para o aumento da produção de pescado no mundo e a expressão “Revolução Azul” tem sido utilizada para se referir ao aumento da produção de pescado pela aquicultura nos últimos anos. Dos 178,5 milhões de toneladas de pescado (peixes, crustáceos, moluscos e outros animais aquáticos) produzidos em 2018, o pescado produzido pela aquicultura contribuiu com 46% do total da produção global e 52% do total pescado destinado ao consumo humano (SOFI 2020). Esses valores expressam o imenso potencial da aquicultura para aumentar a produção mundial do pescado mundial, entretanto, ainda não existem certezas sobre se esse aumento no volume de produção do pescado pela aquicultura irá de fato contribuir para assegurar a segurança alimentar das populações mais vulneráveis. Enquanto a aquicultura tem sido associada a diversos impactos sociais e ambientais negativos, determinados sistemas aquícolas manejados por pequenos produtores podem gerar um alimento de elevada qualidade nutricional a preços acessíveis para comunidades rurais e costeiras.

Um exemplo sobre como as questões relacionadas aos sistemas aquícolas e a segurança alimentar são complexas pode ser encontrado em uma das cidades costeiras mais antigas do Brasil, o município de São Cristóvão no estado de Sergipe. Nesse local, sistemas extensivos de aquicultura estuarina são utilizados para o cultivo do camarão marinho da espécie Penaeus vannamei junto com organismos aquáticos que adentram os viveiros através dos movimentos das marés, originando sistemas aquícolas de elevada biodiversidade. Essa biodiversidade desempenha papel relevante como alimento de elevado valor nutricional e preços acessíveis para as populações locais. São sistemas aquícolas de baixo impacto ambiental que utilizam poucos insumos e, aparentemente, apresentam um impacto direto sobre a segurança alimentar das populações costeiras locais. Estudos estão sendo realizados para maior compreensão da relação entre esses sistemas aquícolas e a segurança alimentar local.

Por outro lado, nas regiões costeiras tropicais, monoculturas de maior intensidade voltadas para a criação do camarão marinho da espécie Penaeus vannamei são abundantes e evidentes na paisagem. O papel desses sistemas aquícolas para a segurança alimentar das populações costeiras é muito questionado. Através de impactos ambientais, esses sistemas aquícolas podem reduzir a disponibilidade, no ecossistema adjacente aos sistemas aquícolas, de alimentos que garantem a segurança alimentar de populações extrativistas e pescadores artesanais. Além disso, quando a produção visa o mercado internacional a produção é vendida a preços mais elevados para mercados consumidores distantes, não contribuindo diretamente para a garantia da segurança alimentar das populações locais.

São Cristóvão é um breve exemplo sobre como o modo de produção do pescado pode ter impactos diferentes sobre a segurança alimentar das populações vulneráveis. Quando a segurança alimentar está em jogo, os modos de produção são muito determinantes e a contribuição da aquicultura rica em biodiversidade, ou da pesca artesanal, ou das atividades extrativistas, é diferente dos sistemas industriais de produção de pescado voltados ao abastecimento do mercado internacional. São sistemas de produção de pescado com objetivos diferentes.

O aumento da produção de pescado não é necessariamente uma garantia de segurança alimentar e nutricional, mesmo para as populações mais dependentes do pescado. Ainda pouco exploradas, as ferramentas de pesquisa da área da segurança alimentar, como por exemplo o uso das escalas de medição da segurança alimentar (Cafiero et al, 2014), podem contribuir muito para elucidar os desafios relacionados à produção de pescado para a garantia da segurança alimentar.

A iniciativa SANPEIXE (Segurança Alimentar e Nutricional, Pesca & Aquicultura), uma cooperação entre o Departamento de Engenharia de Pesca e Aquicultura da Universidade Federal de Sergipe (Brasil) e a Universidade McGill (Canadá), tem buscado reunir esforços para o desenvolvimento de pesquisas e atividades de extensão relacionadas a produção pesqueira e segurança alimentar. Outra iniciativa no Brasil, relevante nesse contexto, é a Rede de Pesquisa em Sustentabilidade na Aquicultura, liderada por Wagner Cotroni Valenti, que desenvolve pesquisas sobre a sustentabilidade dos sistemas aquícolas.

Juliana Schober Gonçalves Lima é engenheira de pesca  do Departamento de Engenharia de Pesca e Aquicultura da Universidade Federal de Sergipe. Contato: jsglima@gmail.com

Referências

SOFI 2020. FAO, IFAD, UNICEF, WFP and WHO. 2020. The State of Food Security and Nutrition in the World 2020. Transforming food systems for affordable healthy diets. Rome, FAO.

SOFI 2020. FAO. 2020. The State of World Fisheries and Aquaculture 2020. Sustainability in action. Rome.

Golden, C., Allison, E., Cheung, W. et al. Nutrition: Fall in fish catch threatens human health. Nature 534, 317–320 (2016).

Cafiero C, Melgar-Quiñonez HR, Ballard TJ, Kepple AW (2014). Validity and reliability of food security measures. Ann N Y Acad Sci. 1331:230-48. doi: 10.1111/nyas.12594.

SOFI 2021. FAO, IFAD, UNICEF, WFP and WHO. 2021. The State of Food Security and Nutrition in the World 2021. Transforming food systems for food security, improved nutrition, and affordable healthy diets. Rome, FAO.