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Brasil, a proteção social após 20 anos de experimentação reformista

Sônia M. Draibe

O Brasil trouxe para o novo século as duas principais marcas da situação social que experimentou praticamente durante toda a segunda metade do século XX: uma das mais desiguais estruturas sociais dos países de médio e alto desenvolvimento econômico e um sistema de proteção social incompleto, frágil, incapaz de afetar positiva e significativamente os indicadores de desigualdade e exclusão social. É, portanto, ainda ampla a agenda de mudanças a ser percorrida pelo sistema, na busca de melhoras de orientação democrática e de justiça social.

Ainda assim, é inegável o grande esforço reformista realizado no passado recente e que, em boa medida, alterou a fisionomia do sistema pretérito de proteção social. Com efeito, já nos anos 80, uma agenda democrática de reforma social orientou um primeiro movimento de mudanças, sob a dupla chave da democratização das políticas e da melhora da eficácia do gasto social. Ao iniciar-se a democratização do país, o acerto de contas com o autoritarismo supunha um dado reordenamento das políticas sociais que respondesse às demandas da sociedade por maior eqüidade ou, se se quiser, pelo alargamento da democracia social. Projetada para o sistema de proteção social, tal demanda por redução das desigualdades e afirmação dos direitos sociais adquiriu as concretas conotações de extensão da cobertura dos programas e efetivação do universalismo das políticas. Registrada na nova Constituição de 1988, tal orientação logrou indiscutíveis êxitos ao longo dos anos 90.

Também a melhora da efetividade das políticas inscreveu-se naquela agenda reformista, tanto sob o signo da democratização quanto pelas pressões geradas pela instabilidade econômica e pelos sucessivos programas de estabilização. A melhora da eficácia impunha-se aí como meta, na medida mesmo em que se reconhecia a contradição entre um nível de gasto social já significativo e os medíocres resultados até então alcançados. No plano institucional, objetivos desse teor sustentaram proposições de descentralização, maior transparência e accountability dos processos decisórios, assim como a ampliação da participação social - grandes idéias-força que fechavam o círculo da democratização do Estado.

É verdade, entretanto, que as pressões advindas do sistema de forças políticas nem sempre tiveram essa conotação progressista: já no processo constituinte quando, depois, no subsequente movimento de implementação da nova legislação, fortes mobilizações corporativistas e os conhecidos mecanismos clientelistas (quase sempre associados a práticas populistas dos governos), tenderam a capturar as demandas e os ensaios de reformas, impondo limites aos escopos efetivamente democráticos de alteração do padrão de políticas. Não por acaso, o modo vago de expressão das demandas, sistematicamente, traduziu-se em pressões por ampliação dos programas sociais segundo a fórmula "fazer mais do mesmo". Condições, afinal, que tornaram mais difícil ainda, nos anos 80, a efetiva construção de uma alternativa democrática para a modernização e reforma das políticas sociais.

Foi sob uma nova agenda que, nos anos 90, passaram a se redefinir os termos da reforma do sistema brasileiro de proteção social. Já em um ambiente intelectual e valorativo de novo matiz, apoiado também na mais dura e densa experiência social da forte instabilidade econômica e, posteriormente, do programa de estabilização e ajustamentos, o reequacionamento da questão social e sua policies foi proposto sobretudo como um desafio, o de manter o compromisso social-democrata nas condições internacionais da globalização e no movimento doméstico de reformas orientada para o mercado.

Não se fez ainda um balanço completo das mudanças que, desde metade dos anos 90, vêm alterando o sistema brasileiro de políticas sociais. Nem há, no debate interno, qualquer consenso sobre o sentido ou a orientação das mudanças. Tal como ocorre no debate internacional, também no Brasil reitera-se com freqüência o argumento de que os governos contemporâneos tornaram-se, todos eles, prisioneiros do difícil dilema entre a nova política econômica e a política de proteção social, independentemente de suas orientações político-partidárias. Dito simplistamente, os governos - nossos governos - sob a forte pressão financeira internacional, teriam optado radicalmente por um lado da balança - o do ajustamento econômico e fiscal. Ao fazê-lo, teriam dado significativos passos em direção ao desmantelamento do antigo Estado de Bem-Estar Social. No caso latino-americano, do antigo e ainda embrionário Estado de Bem-Estar Social gestado em alguns poucos países da região.

Entretanto, pelo menos no caso brasileiro, os estudos sobre as tendências e características das reformas recentes dos programas sociais não têm mostrado o (esperado) desmantelamento. Tampouco têm mostrado a simples permanência do antigo sistema nacional de políticas sociais. As evidências retratam sim um movimento de inflexão gradual do padrão pretérito de proteção social, verificado sobretudo no plano das instituições das políticas e programas, através da introdução ou reforço de pelo menos três características: a descentralização, os novos parâmetros para a alocação de recursos e a redefinição das relações público-privado no financiamento e na provisão de bens e serviços sociais. A nova institucionalidade das políticas sociais, que daí emerge, caracteriza-se ainda por uma expansão e multiplicação dos mecanismos participativos e, na grande parte dos programas, pelo reforço do poder regulatório estatal.

Em menos de uma década, o Brasil foi capaz de reduzir em cerca de um quinto a mortalidade infantil1 e o analfabetismo2, mas praticamente não obteve êxito nenhum na redução da desigualdade. Em 1999, verifica-se que os 10% mais ricos da população têm rendimento médio 19 vezes maior do que os 40% mais pobres. Ora, esta é a mesma variação de 1992, o que atesta que a desigualdade ficou inalterada.

Os dados, muito sumários, sinalizam para o contraditório quadro social de fundo, no qual deve se inscrever uma avaliação dos resultados das reformas sociais, no Brasil. Ninguém duvida de que, à introdução e ao reforço de programas como o de Saúde da Família, de Agentes Comunitários, de Aleitamento Materno ou de Atenção Materno-Infantil, devam ser creditados muitos - ou quase todos - os créditos da redução da mortalidade infantil. Nem que a redução do analfabetismo deva-se a programas de incentivo à permanência ou volta à escola, à educação de adultos, aos programas do Livro Didático, da Merenda Escolar etc.

Entretanto, os duros indicadores de pobreza e desigualdade apontam para os severos limites das políticas sociais, que esbarram aqui em fenômenos estruturais de secular duração, agravados nos anos recentes pelo desemprego, pela instabilidade do trabalho e pela redução da renda das famílias.

A modéstia dos resultados de nenhum modo faz justiça à intensidade das mudanças que vêm afetando os programas sociais desde a década dos 80, introduzindo inflexões importantes no perfil do Welfare State distorcido e centralizado que herdamos do regime autoritário.

Principalmente através dos casos das políticas de educação, saúde e assistência social, os últimos quinze anos registram um já expressivo volume de alterações e inflexões nos diferentes programas, afetando desde concepções até financiamento, organização, modo de operação e estilo de gestão. Projetados para o conjunto das áreas sociais, os resultados registram significativa mudança nos objetivos, eixos e orientações, mesmo quando nem todos os novos contornos das políticas tenham sido já suficientemente redesenhados.

Mas há outros aspectos que chamam a atenção. O Brasil não assistiu a um recuo do estado no campo das políticas sociais. Não foi esse o conteúdo ou a orientação das reformas, que afinal têm registrado resultados positivos no plano institucional, garantindo e ampliando o universalismo e reduzindo razoavelmente as distorções do sistema.
Não é aí, então - num suposto recuo do Estado - que se deve buscar explicação para os limites da política social frente à persistência da pobreza e da desigualdade.

A experiência brasileira recente de reformas na área social demonstra, uma vez mais, que as políticas sociais não podem tudo, muito menos sozinhas. Escapa às suas capacidades, desenhos e objetivos reverter ou mesmo reduzir níveis tão altos de pobreza e desigualdade quanto os apresentados pelo Brasil, quando o meio econômico em que opera é o do baixo crescimento, de forte desemprego, de fragilização das situações de geração sustentada de renda e de restrições fiscais tão duras, situação que fragiliza a elas próprias, as políticas sociais, mesmo quando melhoradas e aperfeiçoadas por reformas.

Sônia M. Draibe é Cientista Política; Professora do Instituto de Economia da Unicamp; pesquisadora senior e ex-diretora do NEPP - Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Unicamp; Secretária executiva da Associação Brasileira de Ciência Política.

Notas
1. Entre 1992 e 1999, a mortalidade infantil caiu de 44,3 para 34,6. crianças mortas por mil nascidas vivas. [voltar]
2. O percentual de analfabetos na população de15 anos ou mais de idade diminuiu de 17,2% para 13,3%, entre 1992 e 1999.
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Atualizado em 10/10/2002
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