Gênero e raça na interface tecnociência, cultura e política

Por Márcia Maria Tait Lima e Paula Carolina Batista

O saber da ciência moderna e todo saber hegemônico naturalizou a dicotomia masculino/feminino assim como outras como mente e corpo, razão e emoção, cultura e biologia, relacionando o feminino ao polo menos prestigiado dessas dicotomias. Assim, a ciência tem produzido e reproduzido, ao longo da história, conhecimentos que não atendem os interesses emancipatórios feministas, de “produzir e disseminar saberes que não sejam apenas sobre ou por mulheres, mas também de relevância para as mulheres e suas (nossas) lutas”.

Na divulgação científica e cultural nos deparamos constantemente com as noções “dimensão cultural” e “dimensão tecnocientífica” e a proposta de uma mútua interpelação dessas dimensões. Essas noções circulam no imaginário social, meios de comunicação e em campos de estudos diversos, mobilizando conceitos já tradicionais como os de identidade, gênero e raça, e mais recentemente, outros como cibercultura e ciberativismo.  O “tecnocultural” aparece apresentado algumas vezes como motor do processo de acumulação acelerado e desigual. Outras, como panaceia para todos os males da democracia, da participação política, até da economia – mas esta segunda forma de remédio universal, entretanto, já perde seu poder de convencimento diante da realidade. No final, a existência de múltiplas abordagens teóricas parece tornar ainda mais complexas questões envolvendo a produção de significados-conhecimentos, sociabilidades e tecnologias não hegemônicas.

Muitas vezes experimentamos, enquanto comunicadoras sociais, pesquisadoras, militantes, um sentimento de impotência diante da “escolha” entre: cenários fatalistas com pouca possibilidade de agência pessoal e coletiva; ou da ação na incerteza das consequências, que poderiam tanto fortalecer quanto romper com os mecanismos produtores de opressões e discriminações e sofrimentos.

Obviamente, indagações tão angustiantes quanto amplas. Mesmo assim, partiram delas a motivação para escrever este artigo com reflexões sobre o produzir e o circular de enunciados sobre gênero e raça.

Para estabelecer essas reflexões propomos um diálogo entre campos de estudos cujas primeiras contribuições remontam a década de 60/70 e tiveram desdobramentos ou influenciariam indiretamente abordagens mais recentes. A década de 1960 é reconhecida como momento de importantes transformações socioculturais. Contexto no qual emergiram movimentos sociais com marcas identitárias que promoveram questionamentos aos padrões de comportamento coletivo e pessoal, como os movimentos em torno de questões raciais e de gênero.

Os movimentos sociais feminista, negro, pacifista, ambientalistas, contra-culturais desse período continuaram existindo como ações coletivas dinâmicas, com momentos de “alta e baixa”, com conflitos, com cisões e diversificações, que transmutaram, mas não se diluem motivações centrais – os múltiplos feminismos atuais, o movimento LGBTQ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros, queer) e os movimentos anticapitalistas (Ocupas, Indignados, entre outros). Também nesse período co-emergem teorias e categorias sociais que ainda são influentes para pensar o mundo atual, como: direito reprodutivo, gênero, multiculturalismo, pensamento ecológico e sistêmico, desenvolvimento humano, colonialismo.

Propomos um diálogo entre os estudos culturais e os estudos da ciência e tecnologia (em sua vertente feminista), destacando elementos da perspectiva interseccional e situada. Ao final, faremos relações desses com abordagens descoloniais latino-americanas. Por fim, buscaremos traçar um breve paralelo entre as contribuições teóricas e alguns levantamentos empíricos de significados difundidos na mídia digital (blogs, sites, vlogs) em temáticas raciais e de gênero. Terminaremos levantando outras questões para reflexão sobre aspectos comunicação/tecnologia/autonomia/resistência/identidades/militâncias.

Estudos culturais e feminismos: ampliação no entendimento sobre as culturas e os poderes

Entre 1960 e 1970 os estudos culturais se desenvolvem nos Estados Unidos e Inglaterra, influenciados pelos movimentos negro e feminista e por teorias pós-coloniais e multiculturalistas. É um campo de estudos em que diversas disciplinas se interseccionam para pensar nos aspectos culturais da sociedade contemporânea.  Propõem que por meio da análise da cultura – textos, artes, literatura, práticas cotidianas e cultura popular –  é possível entender as ideias compartilhadas pelos homens e mulheres que produzem e consomem os produtos e práticas culturais.

Os estudos culturais nascem da observação e questionamento de perspectivas dos estudos literários. A arte é entendida como essencialmente conectada com as questões e contextos sociais e históricos do período e local em que ela é produzida. A partir desse ponto de vista, não existe mais a noção de alta cultura, toda a expressão cultural é cultura e ela merece investigação. Nesse contexto “definir cultura é pronunciar-se sobre o significado de um modo de vida” (Cevasco, 2003).

Com base nesse pensamento é possível olhar para os espaços de investigação e de produção de conhecimento de maneira menos hierarquizada, cabendo assim pensamentos e conhecimentos outros, o que permite interpretar e “compreender a complexidade do mundo e intervir adequadamente sobre ele” (Restrepo, E.; Rojas, 2010).

Essa hierarquização está muitas vezes relacionada a pressupostos definidos com base em classes sociais privilegiadas, sistemas opressivos, de maneira que os estudos culturais acabam também sendo um veículo de expressão da produção de populações menos favorecidas e invisibilizadas. Os diferentes aspectos culturais passam a ser colocados como objeto de estudo, ganhando valor dentro dos campos científicos e fora deles.

Nos anos 1970 ampliam-se os trabalhos em torno ao feminismo e a ideia de resistência. Stuart Hall, um dos expoentes dos estudos culturais, aponta o feminismo como favorecedor de transformações importantes no próprio campo e destaca sua influência para: a abertura para o entendimento do âmbito pessoal como político e suas consequências na construção do objeto de estudo dos estudos culturais; a expansão da noção de poder; a centralidade das questões de gênero e sexualidade para a compreensão da própria categoria poder; a inclusão de questões em torno ao subjetivo.

Até meados da década de 1980 os movimentos feministas já tinham avançado no debate público sobre violência sexista, mercado de trabalho, liberdade sexual, classe, raça e subordinação capitalista, influenciando as teorias sociológicas e os estudos sobre produção do conhecimento científico. A categoria gênero começa a ser aplicada no campo das políticas públicas e produção teórica. A historiadora estadunidense Joan Scott em seus trabalhos contribui para potencializar o uso desta categoria, com o artigo “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, publicado originalmente em 1986, a autora apresenta o gênero como um saber sobre as diferenças sexuais, um saber que é dual e hierárquico e, por isso, não pode ser pensado fora do entendimento sobre as relações sociais, de privilégio e poder. Antes de Scott, ainda na década de 1970, a antropóloga estadunidense Gayle Rubin em seus trabalhos analisou as origens do “sistema sexo/gênero”, buscando entender a transformação de “uma fêmea da espécie humana em uma mulher domesticada” e assim desnaturalizar a opressão das mulheres.

Ciência e tecnologia sob a ótica feminista

A emergência dos estudos de ciência e tecnologia (vertente europeia) ou ciência tecnologia e sociedade (vertente norte-americana e latino-americana), ambos conhecidos em inglês pelo acrônimo “STS” (science and technology studies e science, technology and society), também acontece entre as décadas de 60-70.

Essas teorias preocupadas com a relação ciência, tecnologia e sociedade acompanham um sentimento de alerta, de correção do otimismo do pós-guerra que culminou no simbólico ano de 1968 com o movimento contra-cultural e as revoltas contra a guerra do Vietnã. Nesse momento, os movimentos sociais fizeram da tecnologia moderna e suas políticas científico-tecnológicas dos Estados objetos de crítica e luta. Esses estudos, assim, como os estudos culturais, têm uma tendência multidisciplinar e interdisciplinar e desenvolveram-se também enquanto pluralidade de enfoques – economia e inovação; conflitos e relação entre atores e instituições; na descrição antropológica de espaços de produção tecnocientífica; enfoques orientados em relação a tecnologias, trabalho e classes sociais; e também “enfoque de gênero”.

O “enfoque no gênero” deu origem a uma vertente específica – estudos feministas da ciência e tecnologia. Nesses estudos, as mulheres na produção de pesquisas e tecnologias ganham mais destaque a partir das décadas de 1980 e 1990. Também nesse campo se repetem algumas divergências, que se observam na existência de duas denominações: estudos de ciência, tecnologia e gênero e estudos feministas da ciência e tecnologia. Os estudos do primeiro tipo destacariam questões de diferença numérica e dificuldades de acesso e permanência de mulheres nas carreiras e cargos de pesquisa e necessidade de “igualdade de oportunidades”, mudanças em nível cultural e educacional para essa inserção. Já os estudos feministas, destacariam a necessidade de transformar as próprias instituições acadêmicas, os métodos e os pressupostos das teorias científicas.

Para a teórica feminista brasileira Cecília Sardenberg a crítica feita pelas epistemologias feministas sobre o padrão da ciência moderna se formula com base numa reformulação da própria história do conhecimento humano e de como essa ciência, nas mais variadas disciplinas, objetificou as mulheres e negou-nos a capacidade e autoridade do saber. O saber da ciência moderna e todo saber hegemônico naturalizou a dicotomia masculino/feminino assim como outras como mente e corpo, razão e emoção, cultura e biologia, relacionando o feminino ao polo menos prestigiado dessas dicotomias. Assim, a ciência tem produzido e reproduzido, ao longo da história, conhecimentos que não atendem os interesses emancipatórios feministas, de “produzir e disseminar saberes que não sejam apenas sobre ou por mulheres, mas também de relevância para as mulheres e suas (nossas) lutas”.

Ponto de vista científico a partir “de baixo”

Ainda dentro dos estudos feministas da C&T, Donna Haraway propõe uma noção de objetividade que depende da prática de localizar a produção do conhecimento para assumir uma posição responsável pelo objeto que se constrói. Além de adotar o ponto de vista a partir “das margens”, porque a partir do “ponto de vista dos subjugados” seria mais fácil visualizar os mecanismos produtores das hierarquias, discriminações, desigualdades. Para Haraway, reconhecer e explicitar os elementos subjetivos nas análises aumentaria a objetividade e responsabilidade sobre as pesquisas e conhecimentos produzidos. A abordagem do conhecimento e a proposta de “objetividade forte” de Sandra Harding (Aymoré, 2017) reconhecem a implicação social e pessoal nos pressupostos e na produção de conhecimentos e defende uma “ciência a partir de baixo”, sensível aos valores e interesses dos grupos vulneráveis.

Localizar e também adensar e complexificar o sujeito político, a identidade estratégica “mulheres” e “feministas” foi uma das implicações do conceito de interseccionalidade. Desenvolvido principalmente por feministas negras, este conceito ressalta a combinação entre marcadores sociais de diferença na produção de desigualdades e discriminações. Ao pensar na intersecção dos marcadores – principais deles gênero, raça, etnia, classe social, sexualidade, geração, nacionalidade – contribuiu para evidenciar as diferenças entre as opressões que as mulheres e outros grupos sociais sofrem de acordo com múltiplas dimensões. Em outros termos, permite colocar de maneira mais concreta, “corporificar” dimensões múltiplas e interdependentes que estruturam formações socioculturais capitalistas, eurocêntricas e racistas, sexistas e patriarcais.

Para a socióloga afroamericana Patricia Hill Collins, uma das responsáveis por desenvolver este conceito, a interseccionalidade denuncia a violência das opressões e nos coloca diante de possibilidades de agência e autonomia e produção de conhecimentos a partir de situações, contextos de vida específicos. Ao priorizar as experiências das mulheres negras, impulsionou novas interpretações sobre as relações sociais de dominação e as ações de resistência. A antropóloga afrobrasileira Lélia Gonzalez é considerada uma das precursoras do feminismo interseccional, denunciando a exclusão das mulheres da “América Africana”. Em seus trabalhos, escritos ainda na década de 1980, convoca ao rompimento com o imperialismo dos feminismos brancos e hegemônicos, recuperando histórias de resistência e luta dos povos colonizados, defendendo a valorização das culturas das mulheres negras e indígenas da América Latina e Caribe.

Na América Latina, ações coletivas protagonizadas por mulheres têm apontado para resistência epistêmica cotidiana e para outras formulações teóricas como feminismo camponês, feminismo decolonial e feminismo comunitário e indígena, que têm sublinhado as noções de bem comum, comunidade, bem viver e articulado as preocupações feministas as lutas nos territórios e por um buen vivir em comunidade que inclui o exercício da empatia, cuidado e proteção à natureza.

Noções, conhecimentos e poderes

De onde vem a maior parte do conhecimento e da interpretação de mundo que conhecemos hoje? As noções de bom e ruim; superior e inferior; positivo e negativo; virtuoso e deficiente; forte e fraco; bonito e feio; desenvolvido e subdesenvolvido, entre outros conceitos que utilizamos para definir e classificar, são dados a partir de um pensamento etnocêntrico, considerando apenas o modo de vida e compreensões associadas à própria formação cultural, definidas intrinsecamente como superiores a outras formações culturas.

Essas construções delimitam – por meio da raça, classe e gênero, localização – qual conhecimento é legítimo. E os conhecimentos que fogem do modo eurocêntrico ou dos centros geopolíticos são desconsiderados inferiores. É o que se entende nos Estudos Decoloniales (Restrepo; Rojas, 2010) como colonialidade do saber, ou seja, mecanismos epistêmicos que se articulam a colonialidade do poder, juntos “saber-poder” formam as estruturas, valores, meios, que fundamentam o exercício de dominação, subalternização e discriminação de povos e suas culturas e conhecimentos. Uma multiplicidade de modos de vida, organizações políticas e sociais, e conhecimentos foram considerados “incivilizados” e “folclóricos” por não corresponderem às modalidades de produção do conhecimento ocidental associadas à ciência moderna. Na verdade, a colonialidade e modernidade, para os descoloniais, surgiriam juntas, a segunda dependendo da primeira.

Dito isso, é possível imaginar como tem sido enquadrada e considerada as produções de conhecimento de negros, mulheres, indígenas e LGBTQs, principalmente se tais produções estiverem relacionadas com assuntos do universo desses grupos.

Grada Kilomba, escritora, teórica, psicóloga e artista portuguesa, numa palestra performance que realizou em 2016 no Brasil, pontuou: “Epistemologia define não somente como, mas também quem produz conhecimento verdadeiro e em quem acreditamos.” O exercício então é pensar como podemos quebrar esses padrões. Um exemplo recente de como mudar as regras pré-estabelecidas da produção de conhecimento é o livro O que é lugar de fala, de Djamila Ribeiro, em que a autora utilizou como referência bibliografia de 90% de autores negros e mulheres. No livro, ela afirma que a hierarquização de poder e de saber definem quem pode falar e o que, e propõe o seguinte exercício: “quantas autoras e autores negros o leitor e a leitora, que cursaram a faculdade, leram ou tiveram acesso durante o período da graduação? Quantos professores ou professoras negros tiveram?”. É extremamente necessário considerar que essas pessoas também produzem ciência e conhecimentos.

Compreender o funcionamento desse sistema é importante para construirmos epistemologias que fujam desse padrão e, principalmente, questionarmos esse funcionamento. Descolonizar o conhecimento é compreender que cada epistemologia parte de lugares, tempos, realidades e histórias distintas e que não existem discurso nem ciência neutra e muito menos universal.

Circulação de narrativas-resistências na internet

A partir da década de 1990 as tecnologias da comunicação e informação (TICs) e principalmente a internet se tornaram objetos de e para estudos cada vez mais relevantes nos campos da comunicação, conhecimento, informação e para as humanidades em geral. Da interação entre eles surgiram novos conceitos e abordagens como comunicação em rede, ciberespaço, ciberativismo e, mais recentemente, humanidades digitais.

Gostaríamos, aqui, de trazer algumas experiências de usos e apropriações dos recursos digitais e da internet (entendida como espaço de agência e comunicação) em diversos formatos para produção e circulação de informações, sob a responsabilidade de coletivos que militam em questões de gênero e raça no Brasil. Mostrando, assim, algumas ações em plataformas digitais que permitem ver esses espaços como possibilidade para que grupos historicamente invisibilizados possam colocar suas demandas, corpos, narrativas e produzir conhecimentos.

No âmbito dos feminismos, nos últimos três anos, aconteceram várias campanhas antissexistas pela internet com uso de hashtags como forma de agrupar as interações e conteúdos produzidos pelos apoiadores e ampliar a visibilidade e disseminação das informações. Algumas campanhas marcantes foram: #meuamigosecreto #nenhumamenos #vivasnosqueremos #metoo. A primeira com mais alcance no Brasil, deu visibilidade a relatos pessoais de situações de assédio e violência de gênero; duas outras de alcance latino-americano e a última de alcance global, também destacaram o tema do assédio, violência de gênero e feminicídio.

Na última década também houve um reaquecimento da militância por meio de blogs e redes de blogs, sendo que muitos dos mais acessados são voltados aos temas feministas e antirracistas. Além de debates, campanhas, denúncias e temas urgentes para esses grupos, esses espaços têm permitido acesso a informações e conhecimentos teóricos e também promovido uma verdadeira pesquisa e divulgação de autoras, pensadoras e militantes negras de feministas.

Destacamos os blogs feministas brasileiros: Blogueiras Feministas, Ensaios de Gênero; Blogueiras Negras, Transfeminismo, Não me Kahlo, entre outros. A maioria desses blogs são mantidos por coletivos e grupos feministas que também se utilizam de outras aplicações e redes sociais como Facebook, Twitter e Youtube. O coletivo Não Me Kahlo, por exemplo, iniciou sua entrada no ciberespaço pelo Facebook – onde possui um perfil ativo com mais de 700 mil seguidores – e só posteriormente criou o seu blog.

O ativismo negro também tem ganhado muita força nos meios digitais. O portal da Geledés – Instituto da Mulher Negra, que em 2018 completa 30 anos, se tornou um importante espaço com grande credibilidade e relevância para o compartilhamento de ideias, debates e divulgação de conhecimentos sobre assuntos que antes não faziam parte da pauta da grande mídia.

É por meio de canais digitais de vídeos que demandas e assuntos de interesse de grupos excluídos também ganham visibilidades. Nos últimos anos, diversas vlogueiras e vlogueiros têm utilizado a plataforma de vídeos YouTube para compartilhar suas ideias, histórias e visão de mundo sobre assuntos diversos. Esses espaços, compreendendo a importância de tais conteúdos, dão maior visibilidade para essas vozes. Um exemplo disso é a iniciativa do Youtube Negro que reúne Youtubers para discutir questões raciais no canal, por meio da #YoutubeNegro. Essas pessoas estão se tornando digital influencers e criando novas configurações de conhecimento e de poder”, o que pode ser o início de processos de descolonização do conhecimento.

Questionar o reconhecimento exclusivo de alguns centros de poder produtores de epistemologias pode ser um primeiro passo para surgirem questionamentos sobre critérios de universalidade, objetividade e neutralidade. Duvidando da suposta superioridade epistêmica, que inferioriza ou invisibiliza as formas de conceber e produzir conhecimentos diversos e localizados.

Essas experiências de produção e circulação de enunciados-conhecimentos em torno das categorias gênero e raça, em distintos campos de conhecimento e na internet, permitem questionar o sentido unidirecional dado por algumas abordagens teóricas “à” cultura midiatizada e às identidades culturais. Como se tendessem à reprodução da diferença enquanto discriminação, ou existissem apenas provisoriamente como reminiscências de diversidades culturais que estariam sendo ou serão canibalizadas pelo capitalismo tecnológico. Essas existências que circulam no ciberespaço, são resistências e são políticas, questionam as discriminações e desigualdades de gênero, raça e também classe e fazem a disputa pelo controle das potências de futuro, das “virtualidades” (Santos, 2003).

Observar a circulação de significados teórico-políticos das categorias gênero e raça, também permitiu estabelecer um possível denominador comum entre os distintos campos teóricos e ação política. Existe uma inegável relação entre circulação de conhecimentos, momentos históricos e agência dos sujeitos coletivos. Nos fazem pensar em novas possibilidades para abordar a relação entre cultura e política e TICs. Possibilidades que apontam para o fortalecimento de “práticas-teóricas” militantes que se co-constroem nos enunciados no ciberespaço.

Para entender e agir diante da tensão permanente entre poder-sobre – totalizante e “canibal”, das estruturas tecnocientíficas – e poder-fazer – múltiplo, divergente/convergente, das ações coletivas –, parece importante nos mantermos atentas “às brechas e fissuras” que “permitem alteração do sentido ainda que de maneira lenta” (Josgrilberg, 2005), aos lugares-existências outros. Não nos deixando levar pelos impulsos de supervalorização da capacidade de agência e transformação dos movimentos sociais e suas configurações ciberativistas, nem pelos “superpoderes do sistema”.

Como bem sintetizou o teórico e revolucionário Antonio Gramsci, tentamos manter uma postura de “pessimismo da razão, otimismo da vontade” (Machado, 2015) – vontade-razão, pessimismo-otimismo numa permanente, dinâmica, incansável relação…

Márcia Maria Tait Lima é graduada em comunicação social, doutora em política científica e tecnológica e pós-doutora em filosofia. É professora no Mestrado em Divulgação Científica e Cultural (Labjor) e pesquisadora, com bolsa de pós-doutoramento da Capes, no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Atua também no Coletivo/Plataforma Sementeia.Org 

Paula Carolina Batista é jornalista, mestranda no programa de pós-graduação em divulgação científica e cultural da Unicamp

 

Referências

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