Herton Escobar: Em situações normais, ciência é vista como cosmética

Herton Escobar é repórter especial do Jornal da USP

Conta como foi sua formação e trajetória até aqui.

Eu fiz minha graduação em jornalismo nos Estados Unidos, no estado de Michigan, numa universidade chamada Western Michigan University, localizada na cidade de Kalamazoo, que é uma insituição de tamanho médio, não é uma das grandes do estado de Michigan, mas é muito próxima de uma cidadezinha onde fiz intercâmbio na High School, quando eu estava no colegial, então conheci uma galera lá e voltei para o Brasil depois desse intercâmbio, terminei o colegial aqui, achei que seria legal fazer universidade fora e acabei indo para lá, porque é onde eu tinha contatos. Lá tinha um curso de jornalismo do programa de inglês com especialização em community journalism, jornalismo comunitário. Fiz o jornalismo lá, formação genérica de repórter sem nenhuma especialização em ciência. Aprendi muito jornalismo na prática no jornal da universidade, que chamava Western Herald, que é diário, impresso, com uma redação completa, com editorias, toda a estrutura de uma redação de jornal profissional, incluindo equipe de venda de anúncios, a parte comercial, e toda uma equipe de jornalismo produzindo conteúdo diário. Esse jornal era distribuído dentro do campus e também nas proximidades, dentro da cidade.

Então desde o meu segundo ano de faculdade eu já estava ali trabalhando de repórter, produzindo, fechamento, aquela rotina de repórter de jornal diário na prática, na veia. Aí virei editor e teve um ano em que fui editor-chefe do jornal da universidade. No último ano fiz um estágio no jornal da cidade, que era o Kalamazoo Gazette, como repórter foca, cobrindo tudo e qualquer coisa que aparecia. O que precisava de repórter me mandavam.

Me formei em 1999, voltei para o Brasil e fui convidado a trabalhar no Estadão. Fui lá me apresentar e gostaram de mim, me chamaram para trabalhar lá e comecei em janeiro de 2000 a trabalhar no Estadão como repórter foca também, cobrindo de tudo. Mas como eu tinha um interesse pessoal já em ciência e tinha o domínio de inglês, que era essencial para você conseguir acompanhar o noticiário de ciências global, fui me especializando. Então eu cobria de tudo, mas sempre que tinha oportunidade de eu mesmo propor alguma pauta para fazer, propunha alguma coisa relacionada a ciência e meio ambiente, que eram os temas que eu gostava, que sempre tive uma relação pessoal maior.

Aí fui me especializando, a Redação foi encolhendo, foi tendo cada vez menos repórter, e chegou um momento em que passei a cobrir só esses temas, me tornei repórter setorial, digamos assim. Quando comecei a trabalhar exclusivamente com ciência e meio ambiente busquei os cursos para me especializar. Então fiz aquela Knight Science Journalism Fellowship no MIT [Massachusetts Institute of Technology] e depois um ano de visiting scholar na Universidade da Califórnia em Berkeley.

Fiquei 19 anos lá no Estadão. No fim de 2018 eu saí e fui convidado para vir aqui para a USP trabalhar no Jornal da USP, que tinha acabado de passar por uma reestruturação. Até 2016 o Jornal da USP era impresso, quinzenal e distribuído só dentro do campus. E na gestão do Zago aqui eles fizeram uma reformulação, repensaram a parte de comunicação, e o jornal passou a ser exclusivamente digital e passou a ter um fluxo diário de produção de conteúdo, uma coisa muito mais parecida com jornal mesmo do que era antes. Entrei com isso já montado, começando a funcionar, e vim trabalhar como repórter especial cobrindo muita coisa de política científica em função da situação do país, política, econômica etc. Estou aqui desde o comecinho de 2019.

Na sua avaliação, com essa experiência toda, o que que você acha que são os maiores defeitos do jornalismo científico praticado hoje em dia no Brasil? Ou carências, ou coisas que poderiam melhorar?

Bom, carências é mais fácil. Primeiro, recursos humanos especializados. Antes disso, na verdade caminham juntos, ciência não recebe a importância que merece dentro das grandes empresas de comunicação, da grande imprensa, a não ser em situações extraordinárias como a pandemia, que virou um carro-chefe da cobertura. Mas em situações normais de temperatura e pressão, é um tema visto mais como uma coisa meio cosmética, de você em meio ao noticiário de verdade ter coisas interessantes, bacanas. Não é visto como uma parte essencial da cobertura jornalística das grandes mídias. E em cima disso você tem uma escassez de recursos humanos especializados na cobertura desse assunto.

Tem poucos repórteres se dedicando a esses temas dentro das redações, as redações não dão o destaque que o tema merece.

Então acaba tendo uma cobertura muito restrita, tem pouca gente, pouca atenção, você acaba dando atenção só a alguns poucos temas que são de maior visibilidade, tipo dinossauros, astronomia, essas coisas que têm boas imagens, temas de ciência voltados para as áreas da saúde: câncer, HIV etc. Coisas ligadas à saúde costumam ter mais atenção, mas os outros temas assim do dia-a-dia da ciência acabam passando muito despercebidos, porque não tem massa para cobrir esse tipo de coisa, só cobre coisas pontuais que são mais extraordinárias, ou que estão na moda, ou que são temas de algum debate político. Por exemplo, nos meus primeiros anos no Estadão eu cobri muito a questão dos transgênicos, mas não pela ciência dos transgênicos, e sim pelo uso dos transgênicos na agricultura se tornar uma grande discussão político-econômica de liberar ou não liberar, os impactos que isso poderia ter etc. Então quando a ciência transborda para um debate político ou econômico, aí ela ganha mais visibilidade.

Então tem uma carência de atenção, uma carência de pessoas qualificadas e tem uma carência de diversidade de temas que são alvo de cobertura, que são tema de uma cobertura sistemática, uma coisa não pontual “opa, saiu um estudo aqui, legal”, aí pum, você dá uma notícia, mas não existe um acompanhamento.

E a consequência disso é que o público enxerga a ciência só como uma coisa… parece que as grandes descobertas saem do nada. Aparece uma notícia “descobriram uma droga nova” ou “lançaram uma missão pra Marte” e a sociedade não vê todo o trabalho que veio antes dessas grandes descobertas, ao longo de muitos anos, décadas às vezes de muita pesquisa, muito erro, muita tentativa, muito investimento e muita discussão e isso passa despercebido, você só vê o resultado final e isso dá uma falsa impressão de que os cientistas podem tirar um coelho da cartola qualquer hora que um problema aparecer, e vão resolver.

Queria que você fizesse uma simulação na sua cabeça. Se você fosse convidado a dar um semestre de aula por exemplo no Labjor qual seria seu foco, sua prioridade?

Uma capacidade essencial que o jornalista de ciência tem que ter é ler um trabalho científico de forma crítica. Primeiro saber ler e entender um trabalho científico. E segundo fazer essa leitura de forma crítica, em que você não só aceita o que está escrito ali como uma verdade definitiva. Como jornalista a obrigação também é questionar todos os dados que são apresentados. Mas a primeira coisa é saber ler um trabalho. É o básico. Eu jamais ligo para um pesquisador para fazer uma entrevista sobre uma pesquisa sem ter lido o trabalho que ele publicou.

É essencial para você conseguir fazer um boa entrevista, é essencial para o pesquisador sentir, perceber que está conversando com uma pessoa qualificada, que teve um mínimo de cuidado e interesse de ler o trabalho que ele publicou. Então você cria uma relação de muito mais confiança e respeito entre jornalista e fonte. Você liga para alguém para fazer uma entrevista e faz perguntas que são equivocadas, ou que deixam claro que você obviamente não leu o que está publicado porque senão você não perguntaria aquilo… já tem uma quebra de confiança e de respeito que acho que desanda um pouco a relação.

A primeira habilidade que eu ensinaria é como ler um trabalho científico, interpretar e analisar de forma crítica, porque senão você não está sendo jornalista, está só sendo um comunicador. Está só comunicando “olha, esse cara publicou isso aqui e tá dizendo isso”. Se você não analisa aquilo de uma forma crítica você não está sendo um jornalista. Então acho que isso seria a primeira coisa.

Uma vez que você aprendeu a ler um trabalho e fez uma boa entrevista, você tem que ter habilidade de escrever uma reportagem que seja adequada para o seu público-alvo. Se o público-alvo é, vamos dizer, o público leigo, a sociedade de uma forma mais geral, você tem que saber escrever de uma forma que seja jornalisticamente e cientificamente correta ao mesmo tempo. O pessoal foca muito em que o texto do jornalismo científico tem de ser didático, para as pessoas entenderem, você tem que simplificar a ciência e tal, e isso é verdade, mas o grande desafio é você fazer isso sem perder a complexidade da ciência que é uma das coisas mais bonitas do trabalho científico.

Então você tem que colocar de uma forma que o leitor consiga entender, mas sem perder o respeito pela complexidade que está embutida naquela pesquisa. Isso tem que ficar claro para as pessoas também. Não pode parecer que é uma coisa simples. Voltando ao que eu disse antes, não pode ser “olha que incrível, pum!, descobriram esse novo tratamento para o câncer!”. Tem de ter um contexto também, de falar “olha, isso é resultado de 20 anos de pesquisas etc. etc. etc.” A matéria não pode só trazer o resultado final da pesquisa, tem de trazer a história e o contexto que levou àquele resultado. Isso é igualmente importante para que você gere também um subproduto de educação científica, de educar a sociedade sobre o que é ciência, como ela é produzida e porque ela é importante. Para as pessoas entenderem que as coisas não acontecem de noite para o dia, que elas exigem investimentos, exigem recursos humanos, saibam onde ela foi feita, ou seja, valorizem o trabalho das universidades. Não só fazer uma coisa fria, focada no resultado final, mas mostrar o resultado e contar a história de como aquele resultado foi produzido ao longo do tempo.

Jornalismo científico exige um processo contínuo de pesquisa e aprendizado. Você tem de estudar a sua vida inteira, porque a ciência produz uma quantidade de conhecimento gigantesca diariamente, evolui de uma forma bastante rápida, dinâmica e complexa e se você não estuda os temas que cobre, fica desatualizado muito rapidamente e não consegue fazer um bom jornalismo. Então exige que estude os assuntos que são tema da sua cobertura continuamente, ad eternum [risos].

E a formação para o jornalismo científico é muito específica, porque lida com temas que não são parte do cotidiano. Se você é um repórter que cobre metrópoles, polícia, judiciário, política, temas da cidade, são coisas que fazem naturalmente parte do seu dia-a-dia, mas ninguém cresce vivenciando pesquisa científica feita num laboratório. São coisas muito externas, ninguém tem um conhecimento intrínseco disso. Então você tem de ir atrás, estudar e conhecer.

Note que tem muita gente que confunde divulgação científica com jornalismo científico. Tudo que eu respondi é específico para o jornalismo stricto sensu. Se você vai ser um divulgador de ciências, um Átila Iamarino, aí são outras regras, outros conceitos, é outra coisa. Felizmente o Brasil tem ótimos divulgadores de ciência; alguns dos quais, inclusive, empregam princípios jornalísticos na sua produção de conteúdo, o que acaba compensando em parte as lacunas de cobertura de ciência na imprensa.