Memórias da Internet no Brasil

Por Nelson Pretto

“A Bahia caiu na rede”, “A terra do axé na internet”, “A Bahia vai se ligar ao mundo com a internet”, “Órgãos do governo entram na era da internet em 96” foram algumas das inúmeras manchetes e títulos de artigos nos jornais da Bahia nos anos 1994 e 1995. Era o início do oferecimento da internet comercial no Brasil e a Bahia, através do seu comitê gestor local, também dava o pontapé inicial para a ampliação do acesso à ainda pouco conhecida rede de informação e comunicação.

Esse comitê gestor local foi instituído em 21 de novembro de 1994, em uma inédita associação entre entes locais como o governo do Estado, a prefeitura de Salvador, as federações da indústria, do comércio e da agricultura, o Sebrae e a Telebahia. A UFBA, já desde o final da década de 1980 sediava o Ponto-de-Presença (POP Bahia), nó regional da Internet – e escrevíamos assim, com o I maiúsculo! O ponto se implantava sob a liderança de Tadao Takahashi a partir de um projeto nacional coordenado pelo CNPq.

Não tenho dúvidas em afirmar que a implantação da internet em nosso país se constituiu verdadeiramente em uma política de Estado e não de governo. Desde aquele tempo, até os dias de hoje, seguimos em uma rota relativamente estável e segura na gestão e ampliação da rede. E isso é muito bom.

Destaque merece ser dado ao importante Comitê Gestor da Internet (CGI.br), criado por decreto presidencial em 1985 e que está estruturado em um formato multissetorial, representando assim os diversos interesses dos setores governamental, empresarial, acadêmico e do terceiro setor.

Essa é uma história relativamente recente do ponto de vista do tempo histórico, mas intensa do ponto de vista do tempo vivido pela sociedade brasileira. Sem dúvida, a repercussão na mídia e na sociedade que aconteceu na Bahia se repetiu em diversas outras capitais do país naqueles não tão longínquos anos 1990.

A montagem dessa grande rede articulou nossas universidades e centros de pesquisa, de forma a montar o primeiro backbone (espinha dorsal da rede) nos idos dos anos 1990, conectando inicialmente somente o setor acadêmico, tanto em termos nacionais como internacionais. Esse primeiro backbone conectava 11 capitais (Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Salvador, Recife, Fortaleza e Belém) e, em 1995, mais 10 POP foram implantados (Campo Grande, Goiânia, Cuiabá, Palmas, Maceió, Campina Grande, Natal, Teresina, São Luís e Manaus), totalizando os primeiros 21 Pontos-de-Presença da internet no Brasil.

Em 1985, com a abertura comercial, potencialmente todos os cidadãos poderiam se conectar à rede. Apesar desse esforço, ainda eram poucos os que tinham acesso à essa tecnologia, ainda muito nova. Inicia-se, nesse momento, um importante debate que mobilizou muita gente, especialmente o terceiro setor e a academia, na busca de superar mais uma desigualdade no país, a digital, debate esse ainda presente e que precisa ser enfrentado urgentemente com políticas públicas muito bem desenhadas e implantadas.

Recuperar essa história através da memória daqueles que ainda estão entre nós e que viveram esses momentos é fundamental, pois a construção de políticas públicas depende de um profundo conhecimento do tempo vivido, quando tudo isso ainda era uma novidade. Novidade revolucionária para uns, como nós do grupo de pesquisa Educação, Comunicação e Tecnologias (GEC) da Faculdade de Educação da UFBA, pois acreditávamos na potencialidade da rede para que fosse um instrumento efetivo de democratização da sociedade e, mais do que tudo, um importante elemento para que a educação pudesse ser radicalmente transformada. No entanto, essa potencialidade está sendo sequestrada pela onipresença das plataformas de redes sociais pertencentes aos grandes grupos empresarias internacionais que adentram de forma avassaladora o cotidiano da vida privada e institucional, no Brasil e no mundo.

Não me alongo aqui nesse aspecto da questão, uma vez que o GT Plataformização da Educação, liderado pelo conselheiro Rafael Evangelista, do CGI, tem produzido importantes documentos baseados em uma significativa quantidade de trabalhos acadêmicos debruçado sobre o tema.

Ao fazer aqui um pequeno resumo desse magnifico percurso da implantação da internet na Bahia e no Brasil quero chamar a atenção para a necessidade de investirmos mais profundamente na recuperação dessa história.

Nesse sentido propusemos ao CGI.br a ideia de um processo de registro de depoimentos de todos aqueles e aquelas que contribuíram, a partir da produção de uma série de documentários sobre o tema. Na proposta apresentada, sugerimos a realização de um chamamento público através de editais regionais, acompanhados de um Termo de Referência, para que cada localidade possa produzir um documentário registrando sua história da implantação da internet. Com linguagem cinematográfica, esses documentários seriam realizados a partir de roteiros elaborados por pessoal especializado, com a obrigatoriedade de uma assessoria de pesquisadores e profissionais que atuaram ou atuam na implantação e manutenção da internet nessas regiões.

Poderíamos inicialmente ter registro e produção dos primeiros 21 documentários, contemplando somente a realidade dos primeiros POP. Posteriormente, haveria um outro, a ser realizado a partir desses, numa espécie de meta documentário, que contaria essa história utilizando o depoimento daqueles que, em nível local e nacional, coordenaram essa empreitada chamada internet brasileira. Esse conjunto de 22 documentários contaria essa magnífica história e poderia ser negociado com as redes de televisão públicas do país para se constituir em uma série, que também estaria disponível, licenciada de forma aberta (licenciamento cultura livre), para ser utilizada amplamente pela sociedade e, em especial, na educação.

Na Bahia não ficamos inertes perante essa situação e já demos o primeiro pontapé. Associado a um projeto maior, financiado pelo CNPq, denominado Memória da Educação da Bahia, começamos de forma muito tímida a gravação de alguns depoimentos, que estão se constituindo no subprojeto Memória da Internet na Bahia.

Esses projetos integram as ações de nosso grupo de pesquisa GEC que compreende, de forma muito clara, a universidade pública, como tendo indissociável o ensino, a pesquisa e a extensão universitária, isso não podendo ser compreendido apenas como uma importante letra da Carta Magna brasileira e, muito menos, como algo que deva ser realizado no interior das universidades por professores que se dedicam a uma ou outra dessas frentes. Essa indissociabilidade precisa estar presente de forma integrada nas ações de todos os professores e pesquisadores de uma universidade pública, que deve, antes de tudo, estar comprometida com a sociedade na busca da formação da cidadania e do avanço das pesquisas, em todas as áreas do conhecimento. Essa é a mola propulsora do projeto Memória da educação na Bahia, cujo objetivo maior é o de resgatar, através de depoimentos, a vida, o pensamento e as ações de educadores baianos com significativa contribuição para o Estado.

Assim, inspirado nesse projeto maior, começamos a aproveitar a infraestrutura que dispúnhamos para registrar um pedaço da história da internet em nosso Estado. O Memória da Internet na Bahia já conta com oito entrevistas com duração entre 15 a 54 minutos cada, totalizando cerca de quatro horas e meia de depoimentos. Entre os entrevistados estão os profissionais que atuavam à época no antigo CPD – Centro de Processamento de Dados da UFBA (hoje STI – Superintendência de Tecnologia da Informação), como Claudete Alves, hoje responsável pela Rede Metropolitana de Alta Velocidade (Remessa); Luis Cláudio Mendonça, atual Superintendente da STI; e Aloísio Reis, servidor técnico do CPD, hoje aposentado.

Também estão disponíveis os depoimentos da professora Nice Americano da Costa Costa Pinto, à época Pró-Reitora de Planejamento da UFBA e Nelson Pretto, à época assessor do Reitor e coordenador do Comitê Gestor. Além desses estão disponíveis os depoimentos de Antônio Atta, à época estagiário no CPD da UFBA e um dos fundadores do primeiro provedor comercial de internet em Salvador (ServNet) e Isamar Maia, à época bolsista do projeto, hoje empresário do ramo de tecnologia. Cleiuza Andrade também está entre esses primeiros depoimentos, tendo sido ela o elo de ligação da UFBA com o governo do Estado, uma vez que dirigia o Centro de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CADCT), que fazia parte da secretaria do Planejamento de Ciência e Tecnologia do Estado da Bahia (Seplantec). Outro depoimento do projeto, esse realizado de maneira amadora com um celular, é o de Tadao Takahashi, coordenador da implantação da internet no Brasil.

O referido projeto foi lançado em Salvador por ocasião dos 25 anos do grupo de pesquisa GEC, num evento que contou com a presença de Tadao Takahashi, Nice Americano da Costa Costa Pinto, João de Deus (Telebahia), Claudete Alves e Luis Cláudio Mendonça. Também esse material está disponível no site do projeto.

Dessa forma, acreditamos ter dado um singelo passo na busca para registrar essa memória e, com isso, fazer jus àqueles e àquelas que efetivamente transformaram em realidade as primeiras ideias de uma conectividade planetária em solo baiano. Com isso, imaginamos e muito queremos estar provocando, mais uma vez, agora publicamente, o CGI para que dê início a esse processo de construção da memória da implantação da internet no Brasil o que, certamente, será muito rico para a história da ciência e da tecnologia em nosso país.

Colaboraram Rafaela Marques e Luan Veloso, bolsistas PIBIC (CNPq e Fapesb).

Nelson Pretto é professor da Faculdade de Educação da UFBA. Membro da Academia de Ciências da Bahia. Assessor do reitor da UFBA entre 1994 e 1996. www.pretto.info / @nelsonpretto. nelson@pretto.pro.br.