Os jogos tradicionais e a representação midiática indígena

Por Marina Gomes

O tratamento midiático de assuntos relacionados às temáticas indígenas toma vieses bastante questionáveis, especialmente quando se observam os veículos de maior circulação nacional. Se delimitarmos temas polêmicos como a construção da usina de Belo Monte, na bacia do Xingu, ou a recente tentativa de abrir – de maneira discutível – a Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca) para exploração de mineradoras, esses expedientes são facilmente identificáveis.

Outros temas, que devem ganhar mais atenção dos meios de comunicação nos próximos meses, como as políticas públicas voltadas ao ingresso de indígenas no ensino superior, geralmente são discutidos a partir de perspectivas superficiais e estereotipadas.

Além dessas temáticas que, pelos critérios de noticiabilidade do jornalismo, têm espaço garantido na mídia, acreditamos ser importante também voltar o olhar para a abordagem dos Jogos Tradicionais Indígenas.

Iniciados em 1996, os Jogos Indígenas são manifestações que se desenvolvem nos cenários esportivos e culturais, celebrando a cultura e a memória dos povos originários do Brasil. Podemos entendê-los como construções sociais entre líderes indígenas, poder público e setor privado. Embora seja um movimento nacional, estão inseridos em uma agenda de reflexões e ações internacionais relativas ao indigenismo e construção e preservação de identidades.

O evento, realizado no Brasil entre 1996 e 2009 (além de outras versões, regionais e mundiais, que são realizadas atualmente), evoca a polissemia do conceito esporte, destacando-se, inclusive, contextos de ludicidade (Huizinga, 1980). Afinal, o lema do evento é “o importante é celebrar e não competir”.

Além disso, destacamos questões de empoderamento inerentes às celebrações de caráter nacional. Segundo Fassheber (2006), o etnodesporto indígena é:

Fundamentado na possibilidade de as culturas adaptarem e transformarem suas próprias tradições e adaptarem e transformarem as tradições advindas do contato. Mais que adaptar e transformar, o etno-desporto expressa o processo de ressignificação de valores culturais e uma re-inserção com o mundo dos brancos: a criação – pela mimesis – de uma segunda natureza. (Fassheber, 2006).

Trata-se de um processo de ressignificação de valores. Como construções sociais, os Jogos criam novos vetores de comunicação entre os povos, espaços de construção de identidades e alteridade. São espaços em que um grande número de etnias interage, dialoga, compartilha saberes, celebra e articula resistências. Não é dessa forma, porém, que o tema é retratado na imprensa.

As reportagens são práticas discursivas de produção de sentido que pautam e irrigam o debate público sobre determinados temas. Nesse sentido, a análise do material publicado na imprensa sobre o evento nos possibilita compreender melhor suas possíveis implicações no debate nacional sobre o tema.

Analisamos a cobertura de jornais brasileiros de 10 edições dos Jogos, desde a primeira celebração, em 1996, em Goiânia (GO) até 2009, em Paragominas (PA). Para selecionar o material, elencamos os principais jornais de cada região que sediou o evento. A coleta das publicações do período em que os Jogos foram realizados resultou em um universo de mais de 500 reportagens. Esse material foi analisado conforme os preceitos da análise de conteúdo, que nos permitiria analisar uma grande quantidade de informações por um longo período de tempo, observando tendências em diferentes momentos históricos (Herscovitz, 2007).

A análise de conteúdo é utilizada para descrever e classificar produtos jornalísticos, avaliar características de grupos e organizações e comparar o conteúdo de diferentes mídias. Conforme Bardin (2011):

Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando a obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. (Bardin, 2011).

As reportagens foram categorizadas como unidades jornalísticas, UJ, (Marques de Melo, 1972), e, por análise comparativa, houve base para que se explicitasse o comportamento editorial da imprensa em relação à divulgação dos Jogos. Algumas das perguntas que pautaram a pesquisa foram: (1) haveria diferença no teor das reportagens nacionais e regionais? (2) as notícias teriam caráter descritivo ou sensacionalista/preconceituoso/estereotipado?

De acordo com os procedimentos metodológicos, cada unidade jornalística recebeu uma classificação temática. Observamos também as particularidades inerentes às classificações temáticas, de acordo com o veículo onde eram publicadas. A título de exemplo, podemos citar a temática “política”. Enquanto no veículo nacional ela abrangia principalmente questões de verba destinada aos Jogos e interesses políticos propriamente ditos (sem, contudo, se aprofundar), nos jornais regionais a palavra designava matérias de teor social e político mais controverso, como demarcações de terra, atuação da Funai etc. Na mídia nacional, a questão política, na verdade, encaixava-se muito mais na temática “personalidades” – quando um ou outro governante havia comparecido ao evento.

Das sete reportagens publicadas na Folha de S. Paulo online durante o período, apenas uma tratava da competição/celebração dos Jogos, enquanto quatro eram sobre personalidades políticas presentes, sem maiores aprofundamentos.

Na versão impressa da Folha, de 10 unidades jornalísticas, cinco eram sobre questões políticas/personalidades políticas e problemas de ordem logística e econômica (adiamento, falta de recursos, investimento do governo). Apenas duas matérias traziam informações/cobertura dos Jogos. Duas matérias eram sobre a imprensa (dificuldade/desinteresse na cobertura) e uma tratava da presença de estrangeiros no evento. Há também duas cartas de leitores criticando o pouco espaço dedicado ao tema e a cobertura deficiente, com os títulos: “Cobertura infeliz” e “Erro imperdoável”.

Um fato notável, verificado nas análises, foi a perda de força e abrangência, na imprensa nacional, ao longo dos anos, de cobertura dos Jogos. Uma hipótese a ser explorada em relação a essa queda é a perda de influência da Funai como pautadora da mídia ao longo dos anos (agenda setting).

É possível observar que, na primeira edição dos Jogos, em 1996, em Goiânia, há uma maior variedade de assuntos cobertos, com destaque para aqueles com temática política. A Funai e as políticas de demarcação de terras são citadas várias vezes. Também temos 1 UJ que aborda a saúde. A matéria era voltada ao debate relativo à dizimação indígena por doenças e discutia a questão de maneira ampla, sem restringir-se à cobertura de algo pontual como uma epidemia de catapora – como visto em outras edições dos Jogos. O espectro de temas tratados, portanto, era muito maior.

A análise também apontou a presença significativa de reportagens classificadas com a temática “pitorescas” – classificadas dessa forma por abordar aspectos dos costumes indígenas de forma pouco respeitosa, ou até mesmo irreal.

Um exemplo desse tipo de abordagem foi publicado na Folha de S. Paulo durante os Jogos Indígenas do Pará (2006), escancarando a falta de cuidado da mídia com o tema. A reportagem “Corrida de mulheres com crianças no colo é novidade dos Jogos Indígenas do Pará”, discorre sobre uma modalidade inexistente e sem sentido – com destaque para a foto de uma fila de índias segurando suas crianças.

“Um tipo de corrida de mulheres com crianças no colo é uma das novidades da 3ª edição dos Jogos Tradicionais Indígenas do Pará, realizados neste ano em Conceição do Araguaia (1.094 km de Belém, no Pará), com encerramento previsto para a próxima quarta-feira. Corrida de tora, arremesso de lança, lutas corporais e arco-e-flecha estão entre as demais modalidades praticadas pelos mais de 600 participantes. Pela primeira vez um Fórum Social Indígena foi organizado paralelamente aos jogos. Do evento, participa um representante da etnia Navajo, dos Estados Unidos, que veio debater inclusão digital. A cidade de Conceição do Araguaia é candidata a receber a versão nacional dos jogos indígenas, que neste ano chega a sua 9ª edição”. (Folha de S. Paulo, 2006).

Jornais regionais

Constatamos sensíveis diferenças entre a cobertura dos veículos de grande circulação nacional e os jornais regionais. Dentre todo o material arrecadado nos jornais das cidades onde foram realizados os Jogos, destacamos duas, em especial, para a análise comparativa. A escolha recaiu sobre as edições de Goiânia (1996) e Campo Grande (2001), e se baseou não somente no número de unidades jornalísticas obtido, mas, principalmente, na variedade de veículos de comunicação dos quais obtivemos material, para que pudéssemos ter uma maior abrangência da questão.

Foram 32 reportagens dos jogos de Goiânia, obtidas nos seguintes impressos: O Popular, Diário da Manhã, Jornal de Brasília e Jornal do Tocantins. E 23 da edição dos jogos de Campo Grande: Correio do Estado, Folha do Povo, Diário do Pantanal, O Progresso e Primeira Hora.

Diante desse material, vimos que a questão da saúde foi tratada quatro vezes. E isso deve-se menos à preocupação com uma política pública voltada à questão – um problema nacional seríssimo –  e mais com o fato de ter havido um surto de catapora durante o evento.

Uma das reportagens traz a seguinte afirmação: “Algumas etnias acreditam que poderão perder a força para a competição caso sejam vacinadas e estão protelando para depois dos jogos”[1]. Colocado apenas dessa forma, sem contextualização, e utilizando-se do verbo “acreditar”, busca-se creditar aos costumes indígenas um raciocínio compreensível e cientificamente comprovado: as vacinas, muitas vezes, trazem reações adversas que deixam o organismo debilitado. Também em muitas outras reportagens observamos a descrição de costumes indígenas com um tom jocoso e anedótico.

Infelizmente, o que vemos na mídia é uma cobertura escassa, não objetiva nem isenta, e que tenta trazer o pitoresco, o inusitado, o diferente, sem respeitar ou entender as tradições.

Algo que se repetiu tanto nos jornais de circulação nacional quanto nos regionais foi o grande número de reportagens que apenas traziam a presença de personalidades e estrangeiros aos Jogos. Na primeira edição dos Jogos, das 78 reportagens recolhidas, 15 se referiam à presença de Pelé, que, na época, ocupava o cargo de ministro do esporte. Diante da falta de abordagens mais densas e responsáveis, essas personalidades poderiam, então, ser noticiadas de forma que sua presença e falas trouxessem visibilidade a questões importantes para os povos indígenas – mas não foi o que ocorreu.

Marina Gomes é formada em jornalismo (Unesp), com especialização em bioquímica, fisiologia, treinamento e nutrição desportiva (Labex/Unicamp) e mestrado em divulgação científica e cultural (Labjor/Unicamp).

Referências

Bardin, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.
Elias, N. Introdução à sociologia. Portugal, Lisboa: Edições 70, 1980.
Fassheber, J. R. M. “Etno-desporto indígena: contribuições da antropologia social a partir da experiência entre os Kaigang”. Tese de doutorado. Disponível em http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/275209/1/Fassheber_JoseRonaldoMendonca_D.pdf
Folha de S. Paulo. “Corrida de mulheres com crianças no colo é novidade dos Jogos Indígenas do Pará”. Reportagem. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2108200618.htm
Herscovitz, H. “Análise do conteúdo em jornalismo”. In: Lago, C. e Lago, M.. Metodologia de pesquisa em jornalismo. Petrópolis: Vozes, 2007.
Huizinga, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1980.
Marques de Melo, J. Estudos de jornalismo comparado. São Paulo: Pioneira, 1972.

Nota
[1]              Folha do Povo, 23/10/2001. Página A6, editoria Cidades.