A violência que não comove

Por Sophia La Banca de Oliveira

Fatores culturais e sociais ajudam a explicar por que a violência contra indígenas não causa comoção.

Em junho de 2016 cerca de 300 indígenas Guarani e Kaiowá retomaram uma área de terra da reserva Dourados Amambaipeguá I, então ocupada por fazendeiros no município de Caarapó, no Mato Grosso do Sul. Ao saber que a polícia não interviria na situação, os fazendeiros cercaram os indígenas com mais de 40 caminhonetes e atacaram com rojões e armas, matando uma pessoa e ferindo oito.

Esse foi apenas um dos casos de violência contra povos indígenas citados no relatório Violência contra povos indígenas no Brasil – 2016, material divulgado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário. O relatório aponta que, em 2016, foram registrados 118 homicídios dolosos, 23 tentativas de assassinato, 17 casos de racismo, 13 casos de violência sexual, 11 casos de lesão corporal e outros 11 homicídios culposos. Outra iniciativa que visa dar visibilidade a esse tipo de violência é a plataforma Caci, desenvolvida pela Fundação Rosa Luxemburgo, que georreferencia dados de violência contra indígenas.

Apesar de o relatório mostrar um aumento nos casos de homicídio em relação ao ano de 2015, pouca atenção é dada à violência contra essa e outras minorias. Vários fatores podem estar relacionados a essa falta de comoção.

Cobertura da mídia

Em seu livro Opinião pública, Walter Lippmann escreveu sobre como as opiniões, ações e sentimentos da população são direcionados pela imagem construída sobre um assunto, não pelos fatos. Também falou que cabe à mídia construir essa imagem. Diversas pesquisas realizadas indicam que a imagem que a mídia de massa constrói dos povos indígenas são, em grande parte, negativas, além de raramente apresentar a perspectiva dos próprios indígenas.

Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, destaca também a importância do espaço destinado pela mídia para a violência contra essa população: “Assuntos que têm uma densidade menor de cobertura por parte da mídia hegemônica tendem a ter menos espaço nas agendas públicas e também não serem objeto de preocupação por parte dos indivíduos”. Ele também explica a relevância da mídia para guiar a opinião pública: “Ela tem o poder de agendar os assuntos em pauta nas discussões públicas. Hierarquiza os temas que são objeto de maior preocupação por parte da opinião pública. Dá visibilidade, estabelece parâmetros para construção de análises e decisões, tomadas de posição, entre outros”.

Infra-humanização e personalidade autoritária

De acordo com Marcos Emanoel Pereira, professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), as pessoas criam mecanismos para aceitar a violência como forma de manter a estabilidade da sociedade. Dois desses mecanismos são a essencialização e a infra-humanização.

A essencialização é processo de atribuir uma essência a todas as pessoas de um certo grupo. Como algumas características estariam ligadas a essa essência, passa-se a acreditar que todas as pessoas desse grupo possuem essa característica de maneira imutável. “Supomos que as pessoas são dotadas de uma essência que as torna aquilo que elas são”, diz. A infra-humanização acontece quando se acredita que essas características tornam as pessoas do outro grupo menos humanas.

Para Pereira, isso é feito no caso dos povos tradicionais por meio da animalização, e ajuda a explicar porque a violência contra eles não causa os mesmos sentimentos. “O sujeito acredita que essas pessoas não possuem uma dimensão mais fina e mais sofisticada, porque eles são fundamentalmente animais. E, sendo animais, não pertencem à categoria dos humanos. E se eles não são humanos, por que eu iria devotar a eles o mesmo sentimento que temos em relação aos humanos?”.

Nem todos, claro, ficam indiferentes à violência contra esses grupos. Um dos fatores que pode explicar as diferentes respostas frente à violência é a dominância social. Essa característica explica a relação das pessoas com as desigualdades presentes na sociedade – algumas pessoas são mais igualitárias, enquanto outras são mais hierarquizadoras. As pessoas muito hierarquizadoras tendem a desenvolver um tipo de personalidade chamada de personalidade autoritária que, entre outras características, tendem a valorizar muito o seu próprio grupo e serem hostis com outros grupos.

Empatia e neurônios-espelho

Outra característica envolvida nesse processo é a empatia, a capacidade de compartilhar os sentimentos e sensações de outras pessoas. Assim como a dominância social, as pessoas apresentam diferentes capacidades de empatia.

No cérebro, a empatia é relacionada a neurônios que se ativam tanto quando a pessoa passa por uma experiência, quanto quando ela observa ou imagina outras pessoas passando por essas experiências. Por causa dessa característica, esses neurônios ficaram conhecidos como neurônios-espelho.

A atividade desses neurônios é afetada por vários fatores psicológicos e sociais. Vários estudos mostram que ela é diferente em pessoas com diferentes personalidades. A percepção de justiça também influencia a atividade desses neurônios. Uma pesquisa realizada na Universidade de Londres mostrou que, quando homens viam outras pessoas levando choque, esses neurônios são ativados, mas quando eles acreditavam que a pessoa havia trapaceado em um jogo, outra região do cérebro, associada a atividades que geram recompensas, era ativada. Esses neurônios também respondem mais ativamente quando a pessoa sofrendo faz parte do mesmo grupo de quem observa, em vez de grupos diferentes.

Como mudar

Esse cenário pode mudar. Uma forma bastante estudada de reduzir o preconceito é o contato com pessoas do outro grupo. Décadas de estudo mostram que, quando algumas condições estão presentes, como uma convivência constante em vários ambientes diferentes, o contato com pessoas de um grupo minoritário pode reduzir as atitudes negativas contra esse grupo.

De acordo com Dennis de Oliveira, da USP, a mídia tem um papel importante nesse processo, ao tratar o tema com responsabilidade. “É preciso contribuir para que a sociedade pense racionalmente o porquê destes problemas e como coletivamente pode-se tomar decisões para impedir que isto aconteça novamente, não caindo no discurso fácil do justiçamento”.

Já Pereira, da UFBA, adverte que diferentes abordagens são necessárias para obter um maior alcance. Enquanto campanhas coletivas são importantes, algumas pessoas são mais sensibilizadas por intervenções individuais. “Para pessoas mais refratárias às intervenções da grande mídia talvez seja necessário desenvolver programas específicos. Aí entrariam escolas, universidades, locais de trabalho onde possam se identificar grupos com características específicas e desenvolver materiais voltados a esses grupos”.

Para concluir, ele destaca o papel de outra instituição. “O papel da escola, dos educadores, dos estudantes, é um papel decisivo e fundamental. Todo preconceito é aprendido na família e na escola. Se a escola não coloca um freio nisso, ela estará contribuindo para a manutenção desse estado”, finaliza.

Sophia La Banca de Oliveira é formada em ciências farmacêuticas (UFPR), mestre em bioquímica (USP). Cursa doutorado em psicobiologia (Unifesp) e é aluna do curso de especialização em jornalismo científico Labjor/Unicamp.

*Phillipe Pessoa colaborou com a entrevista de Marcos Emanoel Pereira nesta reportagem.